O espelho do banheiro refletia uma mulher tentando manter a compostura, mesmo que por dentro estivesse em frangalhos. Deise retocou a maquiagem com mãos trêmulas, tentando apagar os vestígios do beijo que ainda queimava em seus lábios. Miguel a deixara ofegante, confusa... e culpada. Mas, acima de tudo, viva. Pela primeira vez em muito tempo.
Respirou fundo. Endireitou os ombros. E caminhou até o escritório onde todos a aguardavam.
Ao abrir a porta, sentiu imediatamente o peso da atenção sobre si. O ambiente estava em silêncio, como se todos esperassem por um sinal. Roberto, sentado à cabeceira da mesa, ergueu os olhos e esboçou um sorriso calculado.
— Sente-se, minha querida — disse, com a voz doce demais para soar genuína.
Deise obedeceu, controlando o nervosismo. O ar parecia mais denso ali dentro, e Miguel, sentado ao lado do pai, desviava o olhar. Lucas, imóvel diante da janela, mantinha-se de costas.
Roberto então começou a falar, seu tom cordial mascarando uma autoridade inquestionável:
— Bom... Antes de qualquer coisa, quero agradecer a presença de Miguel. Você faz parte desta família, filho, mesmo que insista em se afastar. — Roberto fez uma pausa breve, olhando de soslaio para o mais novo. — E quanto a você, Deise... Quero te pedir paciência. Estamos prestes a fechar um projeto bilionário com os japoneses. Esse acordo vai mudar o rumo da nossa empresa, do país... e da sua vida. Eu só te peço alguns meses. Somente isso.
Ela franziu levemente a testa, confusa com o rumo da conversa.
— Os japoneses dão um valor imenso ao casamento. As esposas participam das reuniões, mesmo que apenas como presença simbólica. Elas representam estabilidade. Família. Tradição. E você, Deise, será essa imagem.
O sangue dela gelou.
— Mas não se preocupe — continuou ele, com um sorriso simpático, quase paternal. — Não exigirei que assine nada. Confio na sua integridade. Depois do acordo fechado, teremos outra conversa. Você será livre, como prometi.
Ele então virou-se para o filho mais velho.
— Lucas, você concorda comigo?!
Lucas se limitou a assentir, sem virar o rosto. O silêncio pairou por segundos tensos.
— Agora... Vamos beber — disse Roberto por fim, com o sorriso triunfante de quem acaba de ditar as regras de um jogo que só ele compreendia.
Taças de vinho foram distribuídas. Ninguém ousou recusar. Roberto não havia feito um convite — dera uma ordem.
Deise segurou sua taça com um sorriso contido, enquanto seu coração batia acelerado. Miguel parecia desconfortável, ainda evitando encará-la. E Lucas... permanecia parado, olhando pela janela, como se estivesse a mil quilômetros dali.
— Algum problema, Lucas? — perguntou Roberto, cortando o silêncio.
O filho virou-se lentamente.
— Nenhum. Só preciso fazer uma ligação. Com licença.
Ele saiu da sala sem aguardar resposta. Assim que a porta se fechou, Deise se aproximou de Roberto, num impulso cauteloso:
— Agradeço sua generosidade, senhor Duarte.
Ele a olhou com carinho artificial e chamou Miguel:
— Ela não é linda, meu filho?
Miguel hesitou por um segundo, depois respondeu com um sorriso forçado:
— Com certeza, pai.
Roberto olhou o relógio no pulso, se levantou e caminhou até Deise. Estendeu-lhe um pequeno molho de chaves.
— A casa que foi da sua família... Agora é sua novamente. Promessa cumprida.
Deise arregalou os olhos, tomada de surpresa. Sem conter a emoção, lançou-se nos braços dele e o abraçou. Roberto correspondeu com um beijo demorado em sua testa. Depois, saiu da sala.
Quando a porta se fechou, um silêncio estranho se instalou.
Miguel olhou para Deise com um sorriso ambíguo. Ela respondeu com um sorriso tímido, ainda emocionada com o gesto de Roberto. Aproximaram-se instintivamente. E antes que ela pudesse pensar, ele tomou seus lábios com fúria inesperada.
O beijo foi bruto, dominador. Uma mão em seu pescoço, outra apertando sua cintura. Deise estremeceu.
— Miguel... Não podemos. Aqui não.
Ele afastou-se, passando a mão pelos cabelos com um sorriso envergonhado.
— Desculpe... Acho que foi o vinho.
Saiu da sala sem mais uma palavra. Deise ficou ali, tentando processar o que acabara de acontecer. Sentia que tudo estava prestes a desmoronar. Mas ainda assim, saiu da sala sorrindo, acreditando — ingenuamente — que, talvez, as coisas estivessem finalmente se ajeitando.
Foi então que o viu, parado no corredor. Lucas.
Tentou ignorá-lo e passar direto. Mas ele agarrou seu braço com força brutal, interrompendo seu passo.
— O que você pensa que está fazendo? — disse ele entre os dentes, os olhos flamejantes.
— Solte-me! Está me machucando!
Ele apertava ainda mais. A fúria no olhar era selvagem, descontrolada.
— Você me deve, entendeu? Ainda não acabou!
A soltou com violência, e saiu em passos largos. Deise ficou paralisada por segundos, ofegante, o braço dolorido. Correu para a cozinha, em busca de socorro.
— Maria! Por favor, traga gelo!
A empregada apareceu correndo.
— Senhora! O que houve? A senhora está ferida?
— Foi Lucas... — disse com voz embargada, mostrando o braço vermelho e marcado.
Maria colocou gelo sobre a pele clara machucada. Deise, com a respiração ainda instável, murmurou:
— Vou me deitar... Pode preparar um chá?
— Claro, minha querida.
Ela subiu as escadas devagar. Cada passo era uma luta contra a ansiedade que crescia em seu peito. Quando entrou no quarto, o mundo parou.
Lucas estava lá, apenas com uma toalha em volta da cintura. Acabara de sair do banho.
Deise congelou.
— O que está fazendo aqui?
— Isso é pergunta que se faça ao seu marido?
— Saia do meu quarto!
Ele riu. Um riso grave, sinistro.
— Você é minha, Deise. E esta noite... vou te mostrar o que é ser um marido de verdade.
O coração dela disparou. Recuou, mas logo sentiu a parede fria em suas costas. Não havia para onde fugir.
— Não ouse tocar em mim... ou eu grito!
— Grite — disse ele, se aproximando. — Quero ouvir.
— Eu não tenho medo de você — mentiu, com a voz trêmula.
— Mentira. Eu posso ver o pavor nos seus olhos... e isso me excita.
— Está rompendo o contrato!
Aquelas palavras fizeram Lucas parar por um instante. Seu rosto se transformou. Então, ele socou a parede com um grito selvagem.
— Contrato? Porra de contrato! Meu pai me envergonhou diante de todos! E você vai pagar!
Ele a segurou brutalmente, atirando-a sobre a cama. Deise gritava, implorando.
— Não! Por favor, Lucas! Para!
Mas ele não ouvia. Arrancou o vestido do corpo dela, rasgando-o, e começou a tocá-la com violência. Lágrimas desciam pelo rosto dela, que tentava resistir, mas era inútil.
Do lado de fora, Maria subia com o chá. Ao ouvir os gritos, parou. O coração da velha senhora disparou. Apoiou a bandeja na escada e se aproximou da porta. Bateu.
— Senhora?
Nada. Apenas os gritos abafados de Deise.
— Maria! Socorro! Me ajuda! — veio o grito desesperado de dentro do quarto.
Maria bateu mais forte.
— Senhora! Senhora Deise!
— Sai daqui, velha maldita! — gritou Lucas lá de dentro. — Deise é minha mulher! Faço com ela o que quiser!
Maria desceu as escadas correndo, aos prantos, em busca de ajuda.
E Deise, sozinha naquele quarto, sentia sua alma se dilacerar. Gritava, lutava, mas a força bruta de Lucas esmagava qualquer resistência.
Era o preço do silêncio. Era a consequência do beijo.