Perdida em uma missão no vasto deserto, a tenente Helena se vê isolada de sua equipe e à mercê do perigo. O destino, porém, tem outros planos. Ela é resgatada pelo líder de um grupo de contrabandistas, o enigmático e calculista Dario, a quem jurou capturar. Mas nem Helena nem Dario suspeitam da verdade que os une: há mais de uma década, foram marido e mulher, até que uma solidão devastadora os separou. À medida que Helena, enfraquecida e dependente dos cuidados de Dario para sobreviver, recupera suas forças, Dario lentamente percebe a identidade da mulher que salvou. No entanto, o passado entrelaçado que os une se torna uma arma de dois gumes. Entre arrependimentos e a tensão crescente de suas convicções opostas, o reencontro coloca ambos em um dilema: seguir seus deveres ou ceder àquilo que o deserto lhes resgatou — uma chance de redenção e talvez de um novo começo. A história mistura tensão, romance, mistério e ação em uma jornada de revelações e escolhas difíceis nas vastidões do deserto.
Ler maisDESERTO DE CHIHUAHUA
— Una migra! Una migra! Una migra! Mira! - O coiote apontou para um ponto, no alto da colina, sobre o rochedo, sozinho, com uma arma de grosso calibre no colo. Dario Garcia estreitou os olhos, a figura estava parada no alto da rocha, inerte. Não parecia fazer mira ou algo assim, aliás, sequer parecia viva. Ele tratou de instruir os coiotes que trabalhavam para ele e seguiu, perpendicular, em direção à figura agourenta sobre o rochedo. Aproximou-se, devagar, passo após passo, esquivando-se, entre a rala vegetação rasteira do deserto, em seu paramento militar da cor da areia. "Uma migra, sozinha, mulher?" Ele identificava a silhueta da policial. Dario julgava: ou ela tinha se perdido ou estavam em solo estadunidense. Qualquer hipótese era problemática. Conforme se aproximava, o contrabandista percebia as nuances. Filetes de sangue seco partiam do nariz; a boca rachada, a pele exposta. Se estivesse viva, aquela criatura miserável, em pesado paramento militar, estaria em um sofrimento indescritível. Rastejando, Dario observava o distanciamento dos imigrantes e dos coiotes. Esperou até que a luminosidade, o vento quente e a distância do grupo lhe fossem favoráveis. Aproximou-se o mais devagar e silencioso que pode, como uma serpente, alcançando a coronha do fuzil de assalto que ela carregava. Arma típica da Polícia de Imigração naquelas condições. Sorrateiro, de uma só vez, puxou a arma para si, não encontrando resistência. O corpo da mulher tombou, sem reação, pesado, contra o solo, caindo de lado, sobre a arma. "Ou está morta ou negociando com o anjo." Ele pensou, se aproximando ainda mais, virando o corpo de peito para o alto. Era, de fato, uma mulher. No peito, a identificação: Tenente Brown. H. J. Dario, calculista, se aproximou do rosto dela, respirava, fracamente, mas não estava nem perto de morrer, ainda que severamente desidratada. Ela estava inconsciente, muito mais, provavelmente, pelo calor intenso do que pela severidade do deserto. Incrível era como era resistente. "Uma migra desaparecida costuma ter recompensa gorda." Ele ponderou. Abriu o cantil e despejou um pouco de água, já morna, sobre os lábios da policial. Sob os óculos escuros, percebia as queimaduras nítidas de dias de insolação, já lhe formando bolhas na pele, sob os olhos, fundos, escurecidos com a região sob os olhos já inchada. Estava em severo sofrimento. Pelo status, militar de patente, certamente, dias e mais dias. Dario analisava a situação da Tenente Brown. Estava ferida, para além de sua situação já preocupante, marcas de tiros no colete, um, abaixo da axila oposta da arma, havia tido o azar de raspar no equipamento e se desviar para o braço. A mão, já arroxeada, lhe informava que havia um torniquete em algum ponto daquele braço. Ele a desarmou. Além da arma maior, duas pistolas, uma do lado esquerdo, na altura do peito; outra, do direito, na cintura. Um pequeno revolver no tornozelo esquerdo e as facas, na cintura esquerda e no tornozelo direito. Sob a jaqueta, duas bolsas: uma de água, completamente esgotada, perfurada pelo que parecia um tiro e outra, no peito, perfurada, com o que parecia ser um kit médico. Nas pernas, cartucheiras com medicação, munição e algum alimento. Era bem preparada e estava perigosamente próxima a uma das rotas que utilizavam para passar com imigrantes e contrabando. Decidiu retornar à base de operações, definitivamente, ela estava perdida. De carro ou moto eram apenas alguns minutos, a pé e com toda aquela tralha, a informação mudava. A mulher tinha coisa de um metro e setenta de altura. Em boas condições, deveria ser um tipo bonito, de pele trigueira e boa compleição. Certeza era que era resistente. Caminhou, com ela em suas costas, desacordada, como uma mochila, até o abrigo vazio. Ali, aparentemente, um lugar inóspito e abandonado, a passagem para um bunker, escondida entre pedras, discreta e estrategicamente posicionada, tinha um mínimo de suporte para dar algum alento àquela alma engolida pelo deserto. Dario repousou a tenente no chão, abrindo o bunker, recolhendo-a e aos equipamentos. Na escuridão, acionou o ar condicionado e os filtros, acendendo as luzes do lugar subterrâneo. O homem não era inexperiente, desde que sua vida desmoronou, por um ato falho de seu passado, há mais de dez anos, ele se envolveu com aquele pesado jogo logístico da fronteira, ansiando por sentir-se um pouco vivo novamente, quando o deserto adotou sua alma miserável e lhe deu sustento, riqueza e abrigo, fazendo-o esquecer, um pouco, do passado que ele mesmo havia destruído. Dario despiu a tenente, deixando-a de lingerie de cor de pele e linhas retas, sem qualquer apelo. Havia um torniquete, pesadamente atado, com um curativo frouxo, no braço esquerdo. "Emocionante como uma velha senhora!" Ele ironizou, vendo o contraste entre o bonito corpo da Tenente, esbelto e atlético, resultado de anos de treinamento rigoroso e disciplina militar, e a lingerie horrorosa, que deveria ser confortável. Tinha a pele clara, levemente marcada pelo sol e pelo vento de missões ao ar livre. O cabelo, castanho escuro, preso em um rabo de cavalo, refletia sua praticidade e foco no dever. Pequenas cicatrizes em suas mãos e antebraços contavam histórias de batalhas e desafios superados ao longo de sua carreira. Era tudo conjuntural, mas ele imaginava aquela pequena narrativa da mulher à beira da morte. Cauteloso, ele limpou o corpo dela, revelando uma cicatriz baixa no abdômen e a perfuração no braço, cuja munição restava quase totalmente encravada. Ele revirou as coisas dela: antisséptico, analgésicos, curativos, tinha um bom arcabouço consigo. Militar de campo, típica. No pescoço, placas de identificação e um par de alianças, gravadas: Herbert e Helena e uma data. "Helena." Ele leu, retirando aquilo de seu pescoço. Zombava-se, brincando mentalmente com dolorosas informações: "Como a Helena de Tróia. Como a minha Helena." Ele preparou a pequena cirurgia. Esterilizou a agulha e o lugar, aquecendo a lâmina de uma das facas dela, com a qual cauterizou o ferimento. A mulher, enfim, reagia, minimamente, aquele extremo de dor, sem, contudo, despertar. "Só Deus sabe o que está passando, gatinha." Ele ponderava, soltando o torniquete e dando os pontos que aquela perfuração exigia. "É um milagre estar viva." Ele analisou a munição. No colete, mais distante, contou três tiros, todos de munição perfurante. Dario a ligou a uma bolsa de soro e abriu os olhos, delicadamente, pingando colírio. Ela tinha olhos claros, acinzentados. "Uma cor bonita. Minha Helena tinha olhos assim, mais azulados." Ele se lembrava, saudoso. "Como será que ela está? Já deve ser uma mulher. Eu gostaria de de vê-la. Depois do ensino médio e do divórcio, ela deve ter feito algo bom." Dario dava o primeiro gole no gargalo da garrafa de tequila, observando sua paciente.Gregory acomodou Helena na cama e se retirou, sentia o corpo doer e os cacos de suas convicções quebradas espalhados por todos os lados. Estar com ela e Rafael era sobre entrega, sobre confiar e amar de todas as formas. Ele se tornou pensativo. Evitou Rafael por dias até que concluísse sua racionalização das coisas. Helena estava em Zurique, resolvia algumas situações com o navio, contratações e as rotinas de família e amigas. Gregory, ainda inseguro, chegou perto do parceiro, que lia algo em um tablet, anotando em outro. Era um tipo elegante. — Escuta, Rafael. - Rafael em um salto, perdia toda a postura relaxada. - Desculpa, eu não quis assustar.— Você e Helena... vou amarrar um sininho no calcanhar de cada um. - Rafael bufou, recompondo-se.— Não somos tão silenciosos. - Gregory respondeu aviltado. — Sininhos. - Rafael repetiu. - Como em gatos. Nos tornozelos. — Não seja tão dramático. É só se colocar em um lugar mais estratégico. - Gregory ralhou. — O que quer, Gregory? - Rafa
Romance era a definição dos dias que Helena e Rafael estiveram a sós. Um do tipo picante, solto, livre de convenções e obrigações. Gregory retornava depois de três dias. Trazia os suprimentos, algumas coisas pessoais e livros de filosofia, cuidadosamente encontrados em raras livrarias e antiquários. Assim como Rafael, foi recebido com um abraço quente e um beijo bom de Helena, que parecia de bem com o mundo. "Obra desse cafajeste, certamente." Greg pensou, sorrindo. Ela estava leve, dócil e adoravelmente atraente.— Bem vindo. - Rafael o recebeu, ajudando-o com a carga. — Obrigado. - Gregory respondeu, um abraço fraterno entre eles. Entrou na casa, ajustando os suprimentos. Helena se encantava com os livros.— Como foi a viagem? - Helena perguntou, olhando-o, com seus diamantes brilhantes.— Bem. Acabei encontrando uma propriedade perto do lago a caminho daqui. Gostariam de conhecer? - Ele anunciou. Ambos concordaram. Uma viagem curta revelava um bonito casarão clássico, resistente
— Vou buscar alguns suprimentos médicos. - Gregory anunciou. - Consegue cuidar dela por algum tempo? Hoje, nosso entregador virá verificar e abastecer. O pagamento dele está na escrivaninha da varanda. Voltará amanhã para repor. - Rafael prestava atenção.— Mais alguma coisa, comandante? - O homem brincou. — Basicamente isso. Ela tem uma rotina silenciosa. Mantenha-se atento. É fácil deixar de notar a presença dela. - Gregory concluiu. - Se não estabelecer horários e disciplina, ela esquece de si estando relaxada. Tenta focar. - Ele instruiu.— Entendo porque ela gosta tanto de você. Você alivia a carga mental dela. - Rafael verbalizou. — Não sei se é isso. - Greory pegou sua bolsa e as chaves do carro. — Tem a ver com segurança, Greg. Tudo tem a ver com segurança. Ela se sente segura com você. - Rafael percebia aquilo. - Até eu, que sou desregrado sinto isso.— Mas foi você quem a fez desistir de morrer, Rafael. - Gregory surpreendia. - Vou ficar uns dois dias fora. Cuida bem dela
Rafael e Gregory, confortáveis, se deitaram com Helena, um de cada lado dela. Gregory decidiu proteger-lhe as costas, Rafael lhe deu uma das mãos e afagava o rosto delicado adormecido.— Linda. - Rafael sussurrou, apreciando as delicadas linhas que desenhava com as pontas dos dedos. Gregory a pressionou suavemente, pela cintura contra si. Via o parceiro de traços fortes e refinados. "Será que sou tão atraente quanto esse cara?" Ele percebia detalhes do outro homem. "Eu sei o que ela vê em mim, mas nele é em Dario?" O sono de Gregory se afastava quanto mais observava-o, tão terno, com a mulher em seus braços.— Você já se relacionou com outros homens? - Gregory perguntou, intrigado ao parceiro que já mostrava sinais de sono.— Você realmente quer falar disso a essas horas, Greg? - Rafael respondeu, já lento.— Deixa para depois... - Gregory beijou os cabelos de Helena e fechou os olhos, lentamente. Sentiu o afago quente e pesado de Rafael sobre seu braço, o homem se aconchegava. Espont
Semanas se passaram. Helena e Gregory viviam bem, harmônicos, como se fossem, de fato, casados e de longa data. O entregador ainda vinha, todas as semanas. Eles e Rafael se falavam constantemente. Não era incomum que Gregory e Rafael conversassem entre si, Rafael não se conformava com os danos de Helena, Gregory era discreto em revelar fotos dela. A larga extensão de pele faltante começava a se formar, o pedaço que estava cicatrizando ocupava a parte inferior das costas. Helena parecia relaxada com Gregory. Rafael se atrevia a visitá-la depois de um mês. Era recebido com um beijo apaixonado. Gregory não se surpreendia. Aquela era a nova realidade. Aquele foi o homem que a fez desistir da morte.— Seja bem vindo. - Gregory abraçou Rafael, fraternal, depois, pegando a pequena bagagem do companheiro. — Eu posso abraçar ela? - Ele perguntou, ainda temeroso.— Pode, está usando um protetor. - Gregory deixou a mala próxima ao sofá. Rafael a abraçou, delicadamente. — Você não sabe como fic
Dario desembarcou, sem questionar. Tinha tudo o que precisava para se recuperar, menos a confiança dos outros e uma migalha, que fosse, do afeto de Helena. Margarida recebeu o filho com afeto e o alívio na alma. Na Suíça, cuidadosamente, Helena foi levada para a casa de campo. Gregory, mais uma vez, estava lá, por ela. Apenas ele. Rafael ainda se recuperava do atentado anterior e monitorava, sigilosamente, o movimento do General. Uma guerra se instalava, silencioosamente, na fronteira. Gabriel e Martha, assim como Uriel e Lisa, começavam a se entender. Helena despertava, depois de dias, ainda zonza, mas abrigada. Abria os olhos de diamantes e encontrava seu porto seguro depois de todo aquele movimento. Sem uma única palavra, afagou o peito de Gregory, percebendo-o sorrir, de olhos fechados. — Bom dia. - Helena disse, aninhando-se ao homem. — Bom dia. Quer um beijo para despertar, princesa? - Ele ofereceu, afável.— Estou com bafo. Vai por mim, nem é beijar um sapo, é beijar o brej
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