Dimitri Carter
O gosto metálico do sangue na minha boca não era nada comparado à dor que explodia no meu peito. Não por causa dos socos. Não por causa da briga ridícula com Tomas. Mas porque eu vi, com meus próprios olhos, o olhar dela. Isabella. O olhar de quem já não me pertence mais. Aquela porta entreaberta nos expôs. Toda a nossa verdade escancarada ali, como uma ferida aberta para o mundo. E quando nossos olhos se encontraram, eu soube que ela sabia. Soube que tudo estava desmoronando. — Até quando vai continuar me rejeitando, Isabella? — minha voz saiu rouca, baixa, como um apelo. Ela me olhava como se eu fosse o próprio veneno que corria nas veias dela. E talvez eu fosse. Mas isso não me impedia de querer ser a cura. Aquilo me atingiu com mais força do que qualquer soco de Tomas. Recuei um passo, engolindo a raiva, o desespero. Ela me encarou por um longo segundo. Longo o bastante para o tempo parar. Para meu coração despencar. — Na mesma medida em que te amei, Dimitri... agora eu te odeio — disse, com os olhos marejados. — E isso... isso me destrói todos os dias. Aquelas palavras me quebraram. Tudo que eu sentia desabou dentro de mim como um prédio desabando. Mas mesmo despedaçado, eu dei um passo à frente. Toquei a barriga dela com as pontas dos dedos. Senti o calor das vidas que cresciam ali, que também eram parte de mim. — Mesmo que eu precise lutar contra o impossível para tornar o impossível,possível — sussurrei — assim eu farei. Não vou desistir de você, Isabella. Mesmo que me odeie com todas as forças do seu corpo, do seu coração... farei o que você desejar. Qualquer coisa, só para que seja feliz. Me aproximei mais um pouco. Meu olhar grudado no dela. — E eu espero, com tudo que sou, que essa felicidade ainda possa ser ao meu lado. Porque se não for... eu juro, vou morrer tentando transformar esse ódio que sente por mim... no amor que um dia me deu sem medo. Ela respirou fundo. Por um momento, pareceu estremecer. Os olhos brilhavam com uma mistura de raiva, saudade e dor. — Você não entende, não é? — ela disse, dando um passo para trás. — Eu te amei com tudo. Eu acreditei em você, enfrentei o mundo, minha família... e você destruiu isso. Você me traiu. Me usou. Me colocou em segundo plano! E agora quer bancar o mártir, o arrependido? — Eu me arrependi, Isabella. Me arrependi da forma mais cruel. Todos os dias acordo e só de pensar, você com outro homem. Você, com os nossos filhos, que estão crescendo dentro de você, e eu não faço parte disso. É um inferno, e eu mereço. Mas eu ainda estou aqui. Eu ainda te amo. Dimitri Carter — E isso basta? — ela gritou. — Você acha que amor é tudo? Que pode apagar as cicatrizes que deixou em mim? As noites em que chorei sozinha? Os dias em que temi perder você? Pelos meus filhos que perdi em diversos abortos? — Não, não acho que basta — respondi, minha voz firme. — Mas é o começo. E eu vou lutar com cada pedaço do que restou de mim, Isabella. Até o fim. Até você entender que esse amor, por mais destruído que esteja agora... ainda pode ser reconstruído. Ela virou o rosto. As mãos tremiam. O peito subia e descia rápido. Eu via a guerra dentro dela. E isso me destruía. — Eu queria te odiar mais — ela sussurrou. — Queria conseguir te apagar completamente. Mas você sempre volta. Sempre está aqui. E eu... eu não sei como fugir disso. — Então não fuja — pedi, me aproximando mais uma vez. — Enfrenta isso comigo. Me deixa tentar. Me dá uma chance, Isabella. Por nós. Pelos nossos filhos. O silêncio se instalou entre nós como uma sentença. Ela me olhou com os olhos cheios d’água. E então, uma voz cortou tudo. — Isabella! — Era Aurora, surgindo no corredor. — Já está na hora da consulta. Vamos? Isabella respirou fundo e se afastou de mim. Seus olhos ainda grudados nos meus, mas os pés já se movendo para longe. Mas Aurora não foi atrás de imediato. Ela parou. Me encarou. Os olhos dela ardiam com a mesma intensidade que os de Isabella, mas havia algo mais ali. Fúria contida. Ódio puro. Ela caminhou até mim e parou a poucos passos de distância. A voz saiu baixa, mas cada palavra era um soco. — Você pode ser meu cunhado, Dimitri, já que eu sou casada com seu irmão, mas eu não vou permitir que machuque minha irmã outra vez. Eu não me envolvo com a máfia da minha família, mas dessa vez... se ousar fazer algo contra ela, eu não vou ter piedade como a Isabella tem só por você. Ela se aproximou mais um pouco, os olhos cravados nos meus. — Eu vou mandar torturar você. E tenho certeza que meu pai vai fazer isso pessoalmente. Aquelas palavras não me chocaram. Eu conhecia o mundo ao qual pertencia. Sabia que estava no limite. Mas mesmo assim, olhei para ela e disse: — Se for preciso enfrentar o inferno para ter e proteger a Isabella... então que venha o inferno. Porque eu não vou desistir dela. Aurora me encarou mais um segundo. Depois se virou e caminhou até a irmã. As duas desapareceram pelo corredor. E eu fiquei ali. De pé, ensanguentado, quebrado por dentro... mas de pé. Porque não importava quantas vezes fosse rejeitado, quantos socos levasse, quantas ameaças recebesse. Eu só tinha um objetivo agora: reconquistar o amor da mulher que me odiava. E eu faria isso. Nem que fosse a última coisa que eu fizesse. continua...Isabella Duarte Ricci A presença de Tomas me dava alguma paz. Mas quando vi Aurora encostada na parede do corredor, os braços cruzados e o olhar fixo em mim, percebi que ela sabia. Ela sempre soube. Era minha irmã, mas também o alarme que nunca me deixava esquecer de onde eu vinha. — E então? — ela perguntou, assim que nos aproximamos. — Os meus sobrinhos estão bem? Tomas lançou um sorriso paciente, mas eu vi o jeito que ele segurou mais firme minha cintura. A proteção dele era silenciosa, mas constante. — Estão ótimos. Gêmeos fortes, coraçãozinho acelerado. Já estão quase prontos pra causar um caos em casa — ele respondeu, tentando aliviar o clima. Aurora não sorriu. Seus olhos estavam atentos demais. Não era só sobre os bebês. Aurora se aproximou e tocou meu rosto com carinho, mas havia uma firmeza no gesto. — Você sabe que eu mato por você, né? Tomas respirou fundo ao ouvir isso, mas não disse nada. Ele entendia. Sabia que eu e minha irmã fomos criadas num mundo ond
Tomas Cilfford O silêncio do meu apartamento sempre me recebeu com conforto. Hoje, me engolia. Joguei a chave sobre a bancada da cozinha e fui direto para o quarto, tirando a camisa pelo caminho. A cidade estava viva lá fora, cheia de luzes e sons abafados, mas aqui dentro tudo parecia estagnado. Como se o tempo estivesse em suspenso desde que a deixei naquela mansão. O chuveiro quente ajudou a relaxar os músculos, mas não a mente. A mente, essa, continuava presa a ela. Depois do banho, tomei as medicações em silêncio, quase automático, o comprimido azul para dormir, o branco para conter a dor nas articulações, e o comprimido que me mantia estável no tratamento, desde que eu havia descoberto minha doença sem cura. Tudo isso para manter o controle. Porque se eu me perdesse, eu voltava. Corria até a mansão dela e esquecia qualquer limite que eu mesmo me impus e que meu corpo também possuía. Me deitei, sentindo o lençol frio contra a pele quente. E fechei os olhos. Foi inevitável
Isabella Duarte Ricci A manhã começou com uma leve brisa entrando pelas janelas da mansão. O sol era caloroso, assim como o carinho de Tomas, ele já estava na cozinha, preparando uma xícara de chocolate quente, era o que eu sempre estava bebendo ultimamente. O aroma doce preenchia o ambiente, trazendo uma sensação de conforto. — Está pronto Bella — disse ele, oferecendo-me uma xícara. Sentei-me à mesa, observando-o. Seus movimentos eram calmos, precisos. Havia uma serenidade nele que contrastava com o caos que costumava dominar minha vida. — Dormiu bem? — perguntei. Ele sorriu, aquele sorriso que sempre aquecia meu coração, eu não o amava, mas ele era como calmaria em minha vida e era tudo que eu precisava naquele momento. — Infelizmente não, já que você não estava por perto. Passamos o dia juntos, caminhando pelos jardins, conversando sobre tudo e nada. Ele me fazia rir com suas histórias, das lembranças do tempo da universidade e por um momento, esqueci-me de tudo o que no
Dimitri Carter A manhã mal havia começado e eu já estava na porta do consultório do Tomas Clifford. O céu estava acinzentado através da janela, eu segurava um copo de café amargo, o meu estômago era a única coisa que me lembrava de que eu ainda estava vivo, ou tentando estar. Entrei sem pedir permissão, ignorando a secretária que me pediu para esperar. A porta do consultório estava entreaberta. Tomas entra e sem me notar ele logo senta à mesa, analisando exames. Levantou os olhos e, quando me viu, sua expressão endureceu. — Você tem coragem, eu admito — ele disse, cruzando os braços. — O que veio fazer aqui, Carter? Fechei a porta atrás de mim e caminhei até a cadeira à sua frente. Não me sentei. — Por quanto tempo você vai esconder dela? — perguntei, direto. — Por quanto tempo vai fingir que ainda tem tempo? Ele largou a caneta e se levantou devagar, o maxilar trincado. — Isso não é da sua conta. Eu não te devo satisfações. — Não! — concordei, com calma. — Mas ela merec
Dimitri Carter O meu coração disparado, as mãos suadas, a mente girando entre mil pensamentos e possibilidades. Eu sabia. Sabia que era hoje. Que eles haviam chegado.Mas a confirmação veio como um soco no estômago quando vi os seguranças postados na entrada da ala onde Isabella estava. Tentei passar direto, mas fui barrado imediatamente.— Senhor, não pode entrar sem autorização.— Sou o pai. — minha voz saiu firme, embora carregada de ansiedade. — Os filhos... meus filhos nasceram hoje.Eles se entreolharam, indecisos, até que uma terceira presença surgiu no corredor. O pai dela.Ele caminhou em minha direção com a mesma expressão que sempre carregava,dura, atenta, mas naquele momento, havia algo mais em seu olhar. Algo que eu não esperava: respeito.— Pode deixar ele entrar — disse, sem me encarar diretamente. — Eles estão te esperando, Dimitri.Não hesitei. Apenas agradeci com um aceno e passei pela porta como se estivesse entrando num novo mundo.E, de certa forma, estava.O qu
Dimitri Carter O corredor da UTI neonatal é um universo suspenso, luzes suaves, monitores que pipocam como estrelas distantes, vozes sempre em um tom abaixo do mundo real. Há dois dias vivo aqui dentro, vendo cada minuto esticar‑se e encolher em compassos irregulares; tudo depende da respiração dela. Minha filha. Parei diante da incubadora como quem chega a um lugar sereno. Por trás do acrílico, o corpo minúsculo se agitava em sonhos que eu não conseguia alcançar. Tubos, sensores, a luz azul do fototerápico… cada fio traduzia a delicadeza que eu não fora capaz de proteger. —Respira, Dimitri—repeti baixinho. Palavras vazias, mas era o que eu tinha. — Você já conversou com ela hoje? —A voz às minhas costas era suave, musical. Virei‑me. A enfermeira trazia no crachá o nome Mônica. Olhos cor de mel e aquela expressão de quem parece ter coragem. — Falei um pouco — murmurei. — Mas sempre parece insuficiente. Mônica sorriu, aproximando‑se da incubadora. Ajeitou delicadamente um sens
Dimitri Carter Três meses se passaram entre o primeiro contato pele a pele e este momento em que o elevador do prédio, lento como sempre, anuncia o térreo com um ding abafado. Tenho Bella aconchegada num canguru, pequenina, mas já absurdamente maior do que aquela versão iluminada de fios e sensores. E à minha esquerda, carregando duas mochilas, um estetoscópio pendurado no pescoço, está Mônica.O corredor do edifício parece mais longo do que recordo. Talvez porque, pela primeira vez, vou atravessá‑lo como pai em tempo integral, sem beeps de saturação ditando o compasso. Ainda estranho o silêncio que substituiu a sinfonia eletrônica da UTI.— Respira, Dimitri — lembra Mônica, divertida, devolvendo‑me as próprias palavras de meses atrás.Obedeço. Inspiro fundo o cheiro do perfume suave de lavanda vindo do gorro de Bella. O som do meu coração já não encontra rivais mecânicos, ecoa livre, feito bumbo de escola de samba na avenida.A porta se abre para um ambiente transformado. Enquanto
Isabella Duarte RicciEu não conseguia dormir. Fiquei na poltrona do quarto dos meus meninos, o telefone aceso como um farol, relendo cada palavra que Dimitri enviou. A saudade nadava em mim havia meses, mas só agora percebo o quanto me afoguei tentando fingir que estava tudo bem. Ele escreveu lar e alguma coisa dentro do meu 2 peito estalou , porque era essa a minha falta: um lugar onde o amor não precisasse pedir licença.Às quatro da manhã, decidi, eu ainda estava insegura, mas não voltaria atrás. Beijei cada bochecha macia dos meus bebês, deixei leite materno na geladeira, dei um sorriso inseguro para a babá de plantão:— Volto o mais breve possível.Pego a chave que ainda guardo desde o tempo em que nós havíamos nos divorciado. A cidade está úmida, cheirando a madrugada e jasmim, quando estaciono diante do edifício. O elevador sobe lento, cada número acendendo como batidas ansiosas.A porta do apartamento se abre, após eu virar a maçaneta, sem ranger. Eu sussurro:— Dimitri?