Isabella Duarte Ricci
O cheiro de pão fresco e café recém-passado se espalhava pela cozinha da casa dos meus pais, trazendo uma sensação momentânea de paz. Eu me sentava à mesa com uma xícara de chocolate quente entre as mãos, tentando ignorar o turbilhão de pensamentos que girava incessantemente dentro da minha cabeça. Aurora, minha irmã, estava do outro lado da mesa, passando geleia em uma torrada com o tipo de leveza que só quem ainda não carregava um mundo nos ombros conseguia ter. — Você dormiu bem? — ela perguntou, sem tirar os olhos da torrada. Assenti vagamente, levando a xícara aos lábios. O chocolate quente estava delicioso, do jeito que eu precisava. — O suficiente para esquecer por algumas horas que minha vida virou um caos completo — respondi com um sorriso cansado. Aurora ergueu os olhos, observando minha expressão por alguns segundos antes de soltar um suspiro longo. Sabia que vinha algo a seguir, e estava certa. — Isa... o que você pretende fazer quando os bebês nascerem? — ela soltou de uma vez, com a franqueza que sempre foi sua marca registrada. Fiquei em silêncio por alguns segundos, mexendo distraidamente o chocolate quente na xícara com a colherzinha. Não era uma pergunta simples, e ela sabia disso. Mas também sabia que eu precisava pensar sobre isso, e talvez falar em voz alta ajudasse. — Eu não sei ainda — admiti, encarando-a. — Não tenho todas as respostas. Neste momento, tudo o que consigo pensar é que preciso chegar ao fim da gravidez com saúde, que preciso proteger meus filhos. Tudo o mais... vem depois. Aurora assentiu devagar, mas seu olhar insistente mostrava que ela não estava satisfeita. — E quanto ao pai? — ela perguntou, mordendo a ponta da torrada. — Dimitri vai poder ver os bebês? Você vai fingir que ele não existe? Ou... vai deixar ele se aproximar? Suspirei e apoiei os cotovelos na mesa, passando as mãos pelo rosto. — Eu não posso negar a ele o direito de ser pai. Não importa o que houve entre nós, não posso tirar isso dos bebês. Eles têm o direito de conhecer o pai. E ele, por mais... complicado que seja, tem o direito de estar presente. — Meu tom foi firme, mas um tanto resignado. Isabella Duarte Ricci Aurora cruzou os braços, encostando-se na cadeira. Seus olhos curiosos, quase acusadores, estavam cravados em mim. — E você acha mesmo que Dimitri vai se contentar com visitas de fim de semana? Isa, ele não é um homem comum. Ele é possessivo, intenso. Você sabe disso melhor do que ninguém. — Eu sei — sussurrei. E como sabia. O sonho da noite anterior ainda queimava sob minha pele, lembrando-me do quanto eu nunca tinha, de fato, escapado dele. — E quanto ao doutor Tomas? — Aurora continuou, agora com um sorriso de canto. — Ele parece gostar de você. Não sei se já percebeu, mas ele não está brincando de casinha ou por conveniência. Ele se importa. Você vai dar uma chance a ele? Pousei a xícara devagar sobre o pires e olhei para ela com um meio sorriso. — Aurora, você acha mesmo que eu tenho espaço para um romance agora? Eu mal consigo dormir direito. Mal consigo decidir se pego a banana ou a maçã. Meu mundo está um caos. Tomas foi maravilhoso, sim. Mas... às vezes eu me pergunto se ele sabe que não sou uma mulher fácil . E ainda assim ficou. — Ele está por um momento. Não sei se ele ficará por uma vida. — Abaixei o olhar, lutando contra a enxurrada de dúvidas que me invadia. — E não sei se eu conseguiria dar esse tipo de esperança a alguém. Ainda tenho assuntos do meu passado que me persegue. Aurora se levantou, rodeou a mesa e se abaixou ao meu lado, abraçando meus ombros com carinho. — Então você faz isso um dia de cada vez. Hoje você respira. Amanhã, pensa no que virá. Mas não se isola de quem quer te ajudar. Fechei os olhos e encostei a testa no ombro dela, grata por sua presença. A vida me dava pancadas fortes, mas também me lembrava, de vez em quando, que eu não estava sozinha. — Obrigada, Aurora— murmurei. Ela se afastou, batendo levemente nos meus ombros. — Agora termina esse café, porque você vai precisar de energia. Eu marquei um ultrassom para hoje. Ergui uma sobrancelha. — Marcou? — Sim. Não confio em você para cuidar de você mesma, então tomei as rédeas. Vamos? — disse, pegando as chaves do balcão. Balancei a cabeça, mas sorri. Talvez deixar Aurora assumir um pouco o controle fosse exatamente o que eu precisava. E assim, de coração apertado, mas um pouco mais leve, levantei-me da cadeira. Eu tinha duas vidas dentro de mim.E elas precisavam de mim inteira.Mesmo que o meu mundo estivesse em pedaços. Passei a mão sobre a barriga arredondada enquanto o carro se aproximava do hospital. Não sabia o que era mais difícil de lidar: o fato de estar gerando os filhos de um homem que ainda amava ou esconder isso do homem que atualmente fazia todo possível para me agradar e me fazer feliz, estando ao meu lado e declarando seu amor por mim. Tomas sempre foi gentil, atencioso… mas às vezes parecia mais médico do que namorado. E eu? Eu, tinha grande parte de mim, cheia de culpas e desejos que não sabia aonde levar. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada com a minha irmã Aurora, então resolvi subir até o andar administrativo para ver se ele já estava disponível. Ao passar pela sala da diretoria, parei. A porta estava entreaberta. A voz de Dimitri cortou o ar como uma lâmina: — Você está zombando de mim? Eu sou seu chefe e estou perguntando sobre Isabella, a mulher que você beijou ontem no corredor do hospital! Meu coração congelou. Aproximando-me sem ser vista, pressionei a mão contra a parede, tentando me manter de pé. O que Dimitri estava fazendo ali? E por que estava falando de mim, como se… ainda fosse meu? Tomas respondeu com aquela calma cirúrgica que me irritava e, ao mesmo tempo, me atraía: — Meu plantão já havia acabado e o hospital não proíbe demonstrações de afeto nos corredores. Quanto a saber sobre Isabella e os bebês, essas informações não podem ser dadas a terceiros, mesmo que seja meu chefe e dono deste hospital. — Acha que eu não sei que você está tentando seduzi-la? O que acha que está fazendo? — Eu? Bom, vejamos… Estou dando a ela o que o ex dela não soube dar. E então, o som seco de um soco. Corri até a porta, meus olhos arregalados assistindo à cena grotesca: dois homens, ambos tão importantes na minha vida, se engalfinhando como se eu fosse um troféu. Tomas reagia com precisão, como se cada golpe tivesse sido calculado. Dimitri, por outro lado, parecia movido por puro instinto e dor. O chão se encheu de papéis, objetos quebrados, cadeiras tombadas. Mas nada se comparava ao que estava despedaçado dentro de mim. — Chega! — gritei por dentro, mas nenhuma palavra saiu. Observei ainda por um momento, até que Tomas saiu da sala rapidamente sem sequer me ver ali, depois Dimitri saiu, ofegante, machucado, mas com um olhar que procurava o meu, e me encontrou. Por um segundo, o tempo congelou. Nossos olhares se prenderam, e eu soube que ele sabia. Os gêmeos. O beijo. Tomas. Tudo estava fora de controle. E eu? Eu só queria proteger meus filhos. —Até quando vai continuar me rejeitando Isabella?Eu não consigo mais dormir, não sei mais o que é certo ou errado, mas não vou parar de lutar por você, sei que está com aquele médico só para me deixar completamente maluco, mas não vou permitir que outro homem seja seu, eu sou o único que vai fazer parte da sua vida, do seu mundo. —Você é tão patético Dimitri, eu não sou mais aquela mulher que se entregava por inteiro a você, e se você realmente me ama como diz, me deixará ser feliz, estar com você só me causou dor e eu não quero ter que viver em meio ao caos, eu já vivo em constante perigo e ninguém ousa me machucar, mas você, só está vivo, por ter uma bebê que precisa de ti. —Me odeia tanto assim? Ao ponto de querer minha morte?E só me deixar viver por causa da minha filha que está lutando para viver na UTI,? continua....Dimitri Carter O gosto metálico do sangue na minha boca não era nada comparado à dor que explodia no meu peito. Não por causa dos socos. Não por causa da briga ridícula com Tomas. Mas porque eu vi, com meus próprios olhos, o olhar dela. Isabella. O olhar de quem já não me pertence mais. Aquela porta entreaberta nos expôs. Toda a nossa verdade escancarada ali, como uma ferida aberta para o mundo. E quando nossos olhos se encontraram, eu soube que ela sabia. Soube que tudo estava desmoronando. — Até quando vai continuar me rejeitando, Isabella? — minha voz saiu rouca, baixa, como um apelo. Ela me olhava como se eu fosse o próprio veneno que corria nas veias dela. E talvez eu fosse. Mas isso não me impedia de querer ser a cura. Aquilo me atingiu com mais força do que qualquer soco de Tomas. Recuei um passo, engolindo a raiva, o desespero. Ela me encarou por um longo segundo. Longo o bastante para o tempo parar. Para meu coração despencar. — Na mesma medida em que te amei, Dimitri
Isabella Duarte Ricci A presença de Tomas me dava alguma paz. Mas quando vi Aurora encostada na parede do corredor, os braços cruzados e o olhar fixo em mim, percebi que ela sabia. Ela sempre soube. Era minha irmã, mas também o alarme que nunca me deixava esquecer de onde eu vinha. — E então? — ela perguntou, assim que nos aproximamos. — Os meus sobrinhos estão bem? Tomas lançou um sorriso paciente, mas eu vi o jeito que ele segurou mais firme minha cintura. A proteção dele era silenciosa, mas constante. — Estão ótimos. Gêmeos fortes, coraçãozinho acelerado. Já estão quase prontos pra causar um caos em casa — ele respondeu, tentando aliviar o clima. Aurora não sorriu. Seus olhos estavam atentos demais. Não era só sobre os bebês. Aurora se aproximou e tocou meu rosto com carinho, mas havia uma firmeza no gesto. — Você sabe que eu mato por você, né? Tomas respirou fundo ao ouvir isso, mas não disse nada. Ele entendia. Sabia que eu e minha irmã fomos criadas num mundo ond
Tomas Cilfford O silêncio do meu apartamento sempre me recebeu com conforto. Hoje, me engolia. Joguei a chave sobre a bancada da cozinha e fui direto para o quarto, tirando a camisa pelo caminho. A cidade estava viva lá fora, cheia de luzes e sons abafados, mas aqui dentro tudo parecia estagnado. Como se o tempo estivesse em suspenso desde que a deixei naquela mansão. O chuveiro quente ajudou a relaxar os músculos, mas não a mente. A mente, essa, continuava presa a ela. Depois do banho, tomei as medicações em silêncio, quase automático, o comprimido azul para dormir, o branco para conter a dor nas articulações, e o comprimido que me mantia estável no tratamento, desde que eu havia descoberto minha doença sem cura. Tudo isso para manter o controle. Porque se eu me perdesse, eu voltava. Corria até a mansão dela e esquecia qualquer limite que eu mesmo me impus e que meu corpo também possuía. Me deitei, sentindo o lençol frio contra a pele quente. E fechei os olhos. Foi inevitável
Isabella Duarte Ricci A manhã começou com uma leve brisa entrando pelas janelas da mansão. O sol era caloroso, assim como o carinho de Tomas, ele já estava na cozinha, preparando uma xícara de chocolate quente, era o que eu sempre estava bebendo ultimamente. O aroma doce preenchia o ambiente, trazendo uma sensação de conforto. — Está pronto Bella — disse ele, oferecendo-me uma xícara. Sentei-me à mesa, observando-o. Seus movimentos eram calmos, precisos. Havia uma serenidade nele que contrastava com o caos que costumava dominar minha vida. — Dormiu bem? — perguntei. Ele sorriu, aquele sorriso que sempre aquecia meu coração, eu não o amava, mas ele era como calmaria em minha vida e era tudo que eu precisava naquele momento. — Infelizmente não, já que você não estava por perto. Passamos o dia juntos, caminhando pelos jardins, conversando sobre tudo e nada. Ele me fazia rir com suas histórias, das lembranças do tempo da universidade e por um momento, esqueci-me de tudo o que no
Dimitri Carter A manhã mal havia começado e eu já estava na porta do consultório do Tomas Clifford. O céu estava acinzentado através da janela, eu segurava um copo de café amargo, o meu estômago era a única coisa que me lembrava de que eu ainda estava vivo, ou tentando estar. Entrei sem pedir permissão, ignorando a secretária que me pediu para esperar. A porta do consultório estava entreaberta. Tomas entra e sem me notar ele logo senta à mesa, analisando exames. Levantou os olhos e, quando me viu, sua expressão endureceu. — Você tem coragem, eu admito — ele disse, cruzando os braços. — O que veio fazer aqui, Carter? Fechei a porta atrás de mim e caminhei até a cadeira à sua frente. Não me sentei. — Por quanto tempo você vai esconder dela? — perguntei, direto. — Por quanto tempo vai fingir que ainda tem tempo? Ele largou a caneta e se levantou devagar, o maxilar trincado. — Isso não é da sua conta. Eu não te devo satisfações. — Não! — concordei, com calma. — Mas ela merec
Dimitri Carter O meu coração disparado, as mãos suadas, a mente girando entre mil pensamentos e possibilidades. Eu sabia. Sabia que era hoje. Que eles haviam chegado.Mas a confirmação veio como um soco no estômago quando vi os seguranças postados na entrada da ala onde Isabella estava. Tentei passar direto, mas fui barrado imediatamente.— Senhor, não pode entrar sem autorização.— Sou o pai. — minha voz saiu firme, embora carregada de ansiedade. — Os filhos... meus filhos nasceram hoje.Eles se entreolharam, indecisos, até que uma terceira presença surgiu no corredor. O pai dela.Ele caminhou em minha direção com a mesma expressão que sempre carregava,dura, atenta, mas naquele momento, havia algo mais em seu olhar. Algo que eu não esperava: respeito.— Pode deixar ele entrar — disse, sem me encarar diretamente. — Eles estão te esperando, Dimitri.Não hesitei. Apenas agradeci com um aceno e passei pela porta como se estivesse entrando num novo mundo.E, de certa forma, estava.O qu
Dimitri Carter O corredor da UTI neonatal é um universo suspenso, luzes suaves, monitores que pipocam como estrelas distantes, vozes sempre em um tom abaixo do mundo real. Há dois dias vivo aqui dentro, vendo cada minuto esticar‑se e encolher em compassos irregulares; tudo depende da respiração dela. Minha filha. Parei diante da incubadora como quem chega a um lugar sereno. Por trás do acrílico, o corpo minúsculo se agitava em sonhos que eu não conseguia alcançar. Tubos, sensores, a luz azul do fototerápico… cada fio traduzia a delicadeza que eu não fora capaz de proteger. —Respira, Dimitri—repeti baixinho. Palavras vazias, mas era o que eu tinha. — Você já conversou com ela hoje? —A voz às minhas costas era suave, musical. Virei‑me. A enfermeira trazia no crachá o nome Mônica. Olhos cor de mel e aquela expressão de quem parece ter coragem. — Falei um pouco — murmurei. — Mas sempre parece insuficiente. Mônica sorriu, aproximando‑se da incubadora. Ajeitou delicadamente um sens
Dimitri Carter Três meses se passaram entre o primeiro contato pele a pele e este momento em que o elevador do prédio, lento como sempre, anuncia o térreo com um ding abafado. Tenho Bella aconchegada num canguru, pequenina, mas já absurdamente maior do que aquela versão iluminada de fios e sensores. E à minha esquerda, carregando duas mochilas, um estetoscópio pendurado no pescoço, está Mônica.O corredor do edifício parece mais longo do que recordo. Talvez porque, pela primeira vez, vou atravessá‑lo como pai em tempo integral, sem beeps de saturação ditando o compasso. Ainda estranho o silêncio que substituiu a sinfonia eletrônica da UTI.— Respira, Dimitri — lembra Mônica, divertida, devolvendo‑me as próprias palavras de meses atrás.Obedeço. Inspiro fundo o cheiro do perfume suave de lavanda vindo do gorro de Bella. O som do meu coração já não encontra rivais mecânicos, ecoa livre, feito bumbo de escola de samba na avenida.A porta se abre para um ambiente transformado. Enquanto