CAPÍTULO 3
— Lauren Daigle (Hold On To Me) "Quando tudo estiver desmoronando, Você será quem estará segurando meu coração." A primeira vez que sonhei com Miguel foi estranhamente calma. Estávamos sentados sob a sombra de uma árvore enorme, num campo que lembrava os arredores da vila, mas era mais silencioso, quase como se o tempo tivesse parado ali. Ele não falava. Só me olhava como se já soubesse tudo o que eu era e, ainda assim, escolhesse ficar. Acordei antes de perguntar se aquilo era real. Antes de saber se ele me escolheria de verdade. Acordei com o sol invadindo a pequena janela da casa dos fundos, aquecendo o lençol embolado que me cobria pela metade. O dia anterior tinha sido pesado: as tábuas da sala norte estavam condenadas, a infiltração atrás da escada principal mais profunda do que eu imaginava e, ainda assim, havia uma estranha paz em mim. Talvez porque eu estivesse, pela primeira vez em muito tempo, em um lugar onde ninguém esperava que eu fingisse estar bem. A água do chuveiro era fria como um aviso. Me vesti com jeans velhos e uma camisa larga manchada de tinta de projetos passados. Café forte, amargo e rápido. Caderno embaixo do braço. E lá fui eu. Miguel já estava lá quando cheguei. Sempre estava. A diferença é que, naquele dia, ele parecia... diferente. Havia algo nos olhos dele, algo que eu não sabia nomear, mas que mexeu comigo. Como se uma parte dele ainda estivesse presa em algum lugar que eu não podia alcançar, mas quisesse, de algum jeito, me deixar chegar mais perto. — Dormiu bem? — perguntei, enquanto estendia os rolos de papel vegetal sobre a grande mesa improvisada no hall. Ele assentiu, sem palavras. Miguel era o tipo de pessoa que escolhia com cuidado o que entregava. Mas, desde aquela noite da tempestade, algo entre nós tinha mudado. Como se o silêncio não fosse mais uma muralha, mas uma ponte. Enquanto trabalhávamos, percebi que sua presença já não me incomodava. Pelo contrário. Eu a esperava. Me pegava procurando por ele nos cantos das salas, ouvindo seus passos no piso de madeira, querendo ouvir sua voz mesmo quando ele não dizia nada. E foi numa dessas manhãs que ele me perguntou algo inesperado: — Por que você veio? Parei. A caneta ficou suspensa no ar. Pensei em todas as versões da verdade que poderia oferecer: o projeto, o desafio profissional, a chance de recomeçar. Mas nenhuma delas era suficiente. — Porque eu precisava sair. Miguel me olhou, esperando mais. E eu continuei. — Morei tempo demais em um relacionamento que me fazia esquecer quem eu era. Quando acabou, eu percebi que não fazia ideia de como me lembrar. A proposta do projeto veio como uma boia no meio do naufrágio. Ele não disse nada. Apenas ficou ali, ao meu lado, com os braços cruzados e os olhos fixos em um ponto qualquer da parede. — Eu conheço essa sensação. — ele disse, por fim. — De se perder dentro de algo que deveria te acolher. Foi a primeira vez que falamos de feridas sem nos esconder atrás de eufemismos. Foi a primeira vez que percebi que ele entendia não apenas a dor, mas a solidão de não saber quem somos depois que tudo acaba. Nos dias seguintes, passamos a compartilhar mais. Histórias pequenas, memórias soltas, fragmentos de quem fomos antes de tudo ruir. Falei sobre minha infância em Belo Horizonte, as tardes em que passava desenhando no quintal da minha avó. Sobre a primeira vez que me apaixonei por restauração, quando vi uma cadeira entalhada do século XIX renascer sob camadas de verniz. Sobre André. E como, no começo, ele parecia tudo o que eu precisava. Até se tornar exatamente o oposto. Miguel me contou sobre a esposa. Lara. Como se conheceram na faculdade de arquitetura, as viagens que fizeram, os planos que tinham. Contou com os olhos baixos, como se ainda estivesse preso em cada lembrança. — Ela tinha um riso fácil. E odiava dias nublados. — ele disse, numa tarde em que observávamos a chuva cair do beiral do telhado, sem pressa. — Acho que ela teria odiado esse lugar. — comentei, tentando quebrar a tensão. Ele sorriu. Aquele meio sorriso de sempre. Mas, dessa vez, com um pouco mais de luz. — Com certeza. Mas, talvez, ela teria gostado de você. E eu não soube o que dizer. … Na terceira semana, o trabalho começou a render de verdade. A sala principal foi a primeira a mostrar sinais de transformação: as paredes ganharam um novo respiro, as molduras em madeira restauradas revelaram entalhes que ninguém lembrava que existiam. Miguel me ajudava mais do que precisava. Às vezes, ficava ao meu lado apenas observando enquanto eu limpava os detalhes delicados de uma viga, como se quisesse aprender. Ou, talvez, como se quisesse guardar em silêncio o que víamos nascer juntos. Certa tarde, enquanto retirava os painéis antigos de uma das janelas, encontrei algo entre os caixilhos: uma carta antiga, dobrada e amarelada pelo tempo. Era endereçada a alguém chamado Joaquim, e falava de amor, de saudade e de promessas feitas sob a luz da varanda. — Parece que essa casa tem mais história do que a gente pensava. — comentei, entregando a carta para Miguel. Ele a leu em silêncio. Depois dobrou com cuidado, como se estivesse tocando algo sagrado. — As coisas que a gente não diz... — murmurou. — Ficam guardadas em algum lugar. Naquela noite, eu não dormi. Fiquei pensando na carta. Em tudo o que eu também não disse. Em tudo que engoli ao longo dos anos, acreditando que calar era uma forma de sobreviver. E, talvez, fosse mesmo. Mas viver... viver exigia coragem. …. Foi numa sexta-feira que ele me convidou para jantar. — Não é nada demais. Só... comida. — disse, meio desconcertado. — Aqui mesmo. Na varanda dos fundos. A vista é boa. Aceitei antes de pensar. Talvez porque já quisesse dizer sim há algum tempo. Ele preparou uma massa simples. Eu trouxe uma garrafa de vinho que tinha guardado para um momento especial — e não consegui pensar em nada mais próximo disso. Sentamos no chão, com pratos no colo e as pernas cruzadas. O céu acima de nós era um mar de estrelas, silencioso e honesto. — Eu não sei exatamente o que estou fazendo. — ele disse, depois de um tempo. — Em que sentido? — Em todos. Com você. Comigo. Com esse lugar. Com o que sinto. É como se eu estivesse reaprendendo tudo. Eu respirei fundo. Sabia o que era isso. Estar à beira de algo que pode curar, mas também pode machucar. Estar prestes a dar um passo e não saber se é o primeiro ou o último. — Talvez a gente só precise caminhar devagar. — falei. — Sem pressa de chegar a lugar nenhum. Ele me olhou. Os olhos escuros refletindo o céu. — E se a gente se perder no caminho? — Então a gente se encontra. Um ao outro. Ele não respondeu. Apenas encostou o ombro no meu, e ficamos ali, em silêncio, com o vento da noite soprando histórias que ainda não tínhamos coragem de contar. … Os dias seguintes foram uma dança. Nem sempre harmoniosa. Às vezes, ele se fechava. Outras, eu me escondia atrás das pranchetas. Mas havia algo entre nós que resistia. Algo que crescia em silêncio, como as raízes de uma árvore que, mesmo sem folhas, continua firme no chão. Miguel me deu uma chave da entrada lateral do casarão. “Para facilitar o acesso”, ele disse. Mas eu sabia que era mais do que isso. Era um gesto. Uma permissão. Um passo. Naquela noite, escrevi pela primeira vez em meses. Peguei um dos cadernos esquecidos na gaveta e escrevi sobre o silêncio. Sobre a delicadeza de alguém que te respeita no tempo que você precisa. Sobre o amor que talvez nasça devagar, como uma restauração cuidadosa: camada por camada, com paciência e sem pressa. E dormi com a sensação de que, talvez, eu estivesse começando a me lembrar de quem era. Talvez, finalmente, depois de tudo, eu estivesse me reconstruindo. E o mais bonito de tudo era saber que não precisava fazer isso sozinha. Às vezes, o que nos aproxima não é o que compartilhamos, mas o que conseguimos suportar em silêncio. Era assim que Miguel e eu íamos construindo alguma coisa — ainda sem nome, ainda sem forma — mas que, pouco a pouco, ocupava espaço demais dentro de mim para ser ignorada. Naquela manhã, o céu ainda estava encoberto pelas nuvens da noite anterior. A chuva tinha dado uma trégua, mas o cheiro de terra molhada impregnava o ar como uma lembrança persistente. Eu acordei antes do despertador, ouvindo o mundo lá fora com a atenção de quem não queria mais perder o que era sutil. Miguel havia deixado, no dia anterior, um papel sobre a minha mesa de trabalho. Nele, uma anotação técnica sobre uma esquadria danificada — mas, no rodapé, em letras pequenas, havia algo que ele provavelmente não pretendia que eu lesse: “Essa janela ainda pode se abrir. Só precisa de paciência.” Não sei se ele falava da madeira. Ou de mim. Ou dele mesmo. Tomei meu café sozinha, como sempre. Mas agora, o silêncio não parecia tão vazio. Era quase como uma pausa antes de algo importante. Fui até o casarão ainda com a xícara na mão, como se o calor do café pudesse me proteger de algo que eu não sabia nomear. Miguel já estava lá, medindo a base de uma das colunas da varanda. Ele não me viu de imediato, mas quando viu, acenou com um movimento breve da cabeça. A mesma expressão séria de sempre, mas com algo diferente nos olhos — uma suavidade contida, como se ele estivesse cansado demais para manter todas as defesas de pé. — Dormiu bem? — perguntei, me aproximando. Ele hesitou, talvez não esperasse essa pergunta. — Dormi. Melhor do que nos outros dias. Ficamos ali por alguns segundos, apenas escutando o vento bater nas telhas e arrastar folhas secas pelo chão. O casarão, silencioso, parecia respirar junto com a gente. — Tem uma parte do porão que ainda não vi. — falei. — Estava esperando por um bom motivo. Ou por coragem. Miguel soltou um meio sorriso. — Eu te mostro. Tem um alçapão atrás da antiga despensa. Mas aviso logo, tem cheiro de mofo e ratos antigos. — Eu encaro. Já lidei com coisas bem piores. — sorri de volta. Descemos juntos, guiados por uma lanterna fraca e a curiosidade que só os lugares abandonados despertam. O porão era úmido e escuro, cheio de móveis cobertos por lençóis que o tempo havia amarelado. Havia também livros embolorados, quadros quebrados e caixas fechadas com fita de pano. Miguel acendeu uma das lanternas antigas presas na parede e a luz revelou uma parede parcialmente descascada, onde se lia a inscrição feita a mão: "Não se esqueça de onde veio." — Isso foi da minha avó. — ele murmurou. — Dizia que, quando tudo quebrasse lá fora, a gente sempre ia ter esse lugar pra lembrar quem era. Ficamos parados em frente à frase, como se ela fosse mais um aviso do que uma memória. Ele tocou a parede com a ponta dos dedos, e por um instante, pareceu um menino diante de um retrato antigo. — Às vezes, acho que fiquei aqui por ela. — disse. — Como se sair fosse uma forma de esquecer. — E você tem medo de esquecer? — perguntei. Ele balançou a cabeça. — Não. Tenho medo de lembrar demais. Aquilo me tocou de um jeito estranho, profundo. Porque eu sabia exatamente o que era isso: o medo de que lembrar demais significasse nunca mais conseguir seguir em frente. Como se o passado fosse uma âncora disfarçada de saudade. Subimos de volta depois de algum tempo, carregando algumas peças que poderiam ser restauradas. Entre elas, um espelho quebrado e uma caixa com fotos em preto e branco. Miguel não disse nada quando viu uma foto da avó dele com um homem sorrindo ao fundo. Apenas passou o polegar sobre o papel, com um cuidado que me fez engolir em seco. — Quer que eu guarde essas coisas na minha casa? — perguntei. — Posso limpar, catalogar... Ele me olhou por um instante e, sem responder, apenas assentiu. Carregamos tudo até a casa dos fundos. O céu começava a abrir, um pouco tímido, deixando a luz bater no chão úmido. Estava mais quente agora. E o tempo parecia menos suspenso. Enquanto eu organizava os objetos, Miguel me ajudava em silêncio. Ficamos assim por um bom tempo: ele separando as fotos, eu limpando uma moldura lascada. Em algum momento, percebi que ele me observava. — O que foi? — perguntei, sem tirar os olhos do vidro que eu estava limpando. — Você sempre foi assim? — Assim como? — Cuidadosa. Como se tudo tivesse valor. Sorri, sem pressa. — Não é que tudo tenha valor. Mas acho que quase tudo pode ter. Se a gente olhar direito. Ele assentiu devagar, e algo mudou no ar. Como se, naquele instante, alguma barreira invisível tivesse cedido entre nós. Mais tarde, ele fez questão de preparar o almoço — arroz, ovo e tomate. Algo simples, mas quente. E ali, sentados à mesa da pequena cozinha, falamos sobre coisas que ainda não tínhamos ousado tocar. Ele me contou sobre o acidente da esposa. Que ela havia saído para buscar um bolo encomendado para o aniversário da sobrinha. Que chovia. Que ela estava com pressa. E que ele, por ironia, havia pedido para ela não sair naquele dia. Disse isso com a voz baixa, quase inaudível, como se contar fosse reabrir uma ferida que nunca fechou de verdade. — Às vezes, me pergunto se ela teria morrido se eu não tivesse dito nada. — ele confessou. — E se ela tivesse saído mesmo sem você dizer? — perguntei, com delicadeza. — Eu saberia que não tentei impedir. — Mas talvez, Miguel... tentar impedir nunca tenha sido o ponto. Talvez ela tivesse que sair. Talvez não houvesse como evitar. Ele ficou em silêncio, e eu também. Porque algumas dores não pedem consolo — pedem apenas espaço para respirar. Depois do almoço, ele ficou um pouco mais. Ajudou a empilhar livros, montou uma prateleira improvisada com tábuas do porão, e em algum momento, estávamos sentados no chão, com uma xícara de café nas mãos, ouvindo um rádio antigo tocar uma música que ninguém conhecia. — Já pensou em sair daqui? — perguntei, num impulso. — Já. Mas pensar é diferente de conseguir. — O que te prende? — Talvez o que me falta. Ou o que deixei escapar. Havia uma confissão velada naquela resposta. E eu quis dizer que eu também não sabia mais onde era o meu lugar. Que fui embora de Belo Horizonte achando que escaparia de mim mesma, mas que às vezes ainda acordava com o som da voz de André na cabeça. A culpa. A raiva. A vergonha de ter amado alguém que nunca soube amar de volta. Mas eu não disse. Não ainda. Em vez disso, apenas encostei minha cabeça na parede e fechei os olhos. Senti quando ele fez o mesmo. E ali, lado a lado, sem nos tocar, dividimos o peso de tudo aquilo que não sabíamos nomear. Aquela tarde passou devagar. Quando o sol começou a cair, ele se levantou, pegou a xícara e, antes de sair, disse algo que me acompanharia até adormecer: — Às vezes, o silêncio é tudo que a gente tem. Mas com você... ele não é tão pesado. Fiquei parada, olhando a porta fechada. E pensei que, talvez, só talvez, eu também estivesse começando a abrir alguma janela. A restauração do casarão avançava. Cada parede revelava mais do que apenas estrutura: revelava história, camadas de tempo, marcas de quem já passou por ali. E, de algum modo, aquilo espelhava o que estava acontecendo comigo. À noite, enquanto escrevia no meu caderno de anotações, percebi que meu traço estava mais firme. E que, mesmo com medo, eu estava ali. Inteira. Presente. No fim da página, escrevi uma frase, quase como um lembrete: "Algumas pessoas a gente não encontra. A gente reconhece." E Miguel... Miguel não era um começo. Era uma possibilidade.