CAPÍTULO 4
Lauren Daigle – “You Say” "Continuo lutando contra as vozes na minha mente que dizem que não sou suficiente Cada mentira que diz que nunca estarei à altura…" Dizem que é fácil ir embora. Mas ninguém fala do que fica. Das coisas que permanecem como poeira embaixo da pele, como restos de saudade presos nos cantos da alma. Eu fui embora de mim tantas vezes que, quando tentei voltar, já não sabia o caminho. Naquela manhã, o som da chuva fina batendo nas folhas era quase um sussurro. Acordei antes do despertador novamente, como se meu corpo soubesse que havia algo esperando para ser sentido. A luz cinzenta entrava pela janela, esparramando-se preguiçosa sobre os lençóis amarrotados. Sentei na cama e respirei fundo. O silêncio da casa era diferente do silêncio do mundo. Era mais denso, mais íntimo. E ali, sozinha, ouvi as batidas do meu próprio coração como se fossem o único som possível. Peguei meu caderno, aquele de capa azul com folhas já amassadas, e escrevi: "Estou começando a reaprender o barulho que o silêncio faz." Desci para a cozinha devagar. O chão gelado contra os pés descalços me trouxe de volta para o presente. Preparei o café como quem realiza um ritual — cada movimento consciente, cada cheiro me reconectando com algo essencial. Do lado de fora, o dia começava com uma lentidão que parecia cúmplice do que eu carregava por dentro. Miguel apareceu perto das nove. Vestia uma blusa cinza, simples, e trazia barro nas botas. Tinha o rosto fechado, mas o olhar tranquilo. Desde aquele almoço no dia anterior, havia algo entre nós. Não um romance. Ainda não. Talvez nunca fosse. Mas havia cuidado. Havia espaço. — Achei que ia chover mais forte. — ele comentou, olhando o céu. — Achei que você não viria hoje. — confessei, sem pensar. Ele me encarou por um segundo, depois olhou para o chão. Um sorriso quase imperceptível escapou. — Eu quase não vim. Mas tem coisas que, se a gente não encara, viram ferrugem. Aquilo ficou em mim o resto do dia. No casarão, começamos a desmontar um antigo armário embutido. A madeira estava carcomida, mas ainda resistia com dignidade. Miguel usava uma serra, eu o ajudava com os pedaços, sujando as mãos sem cerimônia. Conversávamos pouco, mas nossos gestos falavam. — Sabe o que eu percebi ontem? — disse ele, de repente, enquanto limpava o suor da testa. — O quê? — Que eu não lembrava da minha voz rindo. Até ouvir você rir. Aquilo me pegou desprevenida. A mão parou no ar, ainda segurando uma trena. Eu não soube o que responder. Então apenas sorri. Um sorriso triste, mas sincero. — Eu também esqueci da minha. Mais tarde, sentamos na varanda do casarão para descansar. Ele pegou dois copos d’água e se sentou ao meu lado, com as pernas esticadas. O céu tinha se aberto um pouco, deixando que o sol pintasse o dia com tons amarelados. — O que te fez voltar pra cá? — ele perguntou, olhando adiante. — Meu avô. E o cansaço. — Cansaço do quê? — De fingir que estava tudo bem. Miguel assentiu, como quem entende. Como quem viveu isso tantas vezes que já perdeu a conta. — E agora, tá tudo bem? — Não. Mas tá começando a ser real. Ficamos ali, lado a lado, sem pressa. Ele tirou um papel do bolso. Era um bilhete antigo, amassado nas pontas. — Achei isso hoje cedo, dentro de um livro da minha avó. O papel dizia: “O que não dissemos pesa mais do que o que foi dito.” — Ela era sábia. — comentei. — Era. E teimosa também. Não deixava nada por dizer. Por isso, quando ela morreu, a gente não ficou com perguntas. Só com saudade. Aquela frase mexeu comigo. Porque, com André, tudo o que restou foi pergunta. Por que você me traiu? Por que mentiu tanto tempo? Por que não me deixou antes de me despedaçar? Mas nunca disse isso em voz alta. Nunca tive coragem. … Mais tarde, enquanto organizávamos caixas velhas no sótão, encontramos uma fita cassete com o nome “M.” escrito à mão. Miguel levou até um rádio antigo que ficava na sala e, com cuidado, colocou para tocar. Era a voz de uma mulher. Jovem, suave. Cantava uma música antiga, desafinada, mas com emoção. Miguel reconheceu na hora. — Minha mãe. — É lindo. — Ela gravava fitas pro meu pai quando ele ia viajar. Disse que era pra ele lembrar da voz dela. — Você se lembra dela? — Algumas coisas. O cheiro do perfume. A forma como ela prendia o cabelo. Ela morreu quando eu tinha sete. Ficamos ouvindo a fita até o fim, em silêncio. Quando acabou, Miguel tirou com delicadeza e guardou num envelope. — Tem coisas que não dá pra ouvir de novo sem quebrar um pouco por dentro. — disse ele. Assenti. Eu sabia o que era isso. Algumas músicas, algumas fotos, algumas cartas… tinham o poder de nos transportar para momentos que não sabíamos se queríamos revisitar. … À noite, Miguel me chamou para jantar na casa dele. A princípio, hesitei. Não por medo, mas por precaução. Ainda era cedo para cruzar certas fronteiras. Mas ele insistiu, com um olhar gentil, e eu aceitei. A casa era simples. Bem organizada, cheia de livros. Um cheiro de lavanda e madeira velha preenchia o ar. Na estante, uma foto da avó, outra de um cachorro. E no canto da sala, um piano. — Você toca? — Tocava. Antes. — Por que parou? — Porque não tinha mais quem escutasse. Aquela resposta doeu mais do que ele percebeu. Ou talvez ele soubesse, mas dissesse mesmo assim. Sentei ao lado dele no sofá e ficamos ali, com pratos no colo, comendo macarrão com queijo e tomates. — Você fala pouco, mas diz muito. — comentei. — É que falar demais esconde o que importa. — E o que importa? Ele me olhou, e por um momento, o mundo desacelerou. — O que fica mesmo quando vai embora. Naquela noite, quando voltei pra casa, me olhei no espelho por um tempo. Ainda havia sombras sob os olhos. Ainda havia cicatrizes. Mas algo começava a mudar. Eu já não estava tentando fugir de mim. … Antes de dormir, escrevi no caderno: "Com ele, eu não me sinto menor por ter sido quebrada. Com ele, as partes partidas parecem ter espaço para respirar." Miguel não era um porto seguro. Ele era mar em ressaca. Mas, estranhamente, eu não me afogava com ele. Eu reaprendia a nadar. A chuva voltou depois da meia-noite. Começou tímida, como um pedido de desculpas por ter ido embora. Depois, se firmou — constante, ritmada. Uma chuva que não assustava. Só abraçava. Deitada na cama, pensei nas palavras de Miguel, nos gestos que ele não dizia em voz alta, mas entregava como quem oferece abrigo sem chamar atenção. Era isso que ele fazia. Ele oferecia presença. Meu celular vibrou na cômoda. Uma mensagem. Miguel: “Esqueci de dizer. Sua risada fez minha casa parecer menos vazia.” Fechei os olhos com um sorriso involuntário. Não respondi. Porque havia coisas que não se respondem com palavras. Na manhã seguinte, decidi começar pelo jardim dos fundos. Era um pedaço de terra esquecido, coberto por folhas mortas e promessas não cumpridas. Peguei uma enxada, luvas e uma vontade silenciosa de fazer algo crescer. Enquanto limpava os canteiros, pensei em como era simbólico: remover as folhas podres, arrancar raízes doentes, abrir espaço para o novo. Uma faxina que era mais emocional do que física. Em pouco tempo, Miguel apareceu com um balde e algumas sementes. — Trouxe lavanda. E alecrim. Dizem que ajuda a afastar coisas ruins. — E você acredita nisso? — Acredito no que acalma. Isso já é o suficiente. Plantamos em silêncio, com as mãos na terra e a alma exposta. O sol surgiu entre as nuvens e nos presenteou com um calor suave. O tipo de calor que seca os cantos da dor sem pressa. — Você tem medo de recomeçar? — perguntei, sem olhar para ele. — Todos os dias. — E ainda assim, você planta. Ele sorriu. Aquele meio sorriso torto, de quem sabe que está tentando mesmo sem garantias. — Porque o medo passa. Mas o que a gente cultiva fica. ... À tarde, recebi uma ligação da minha mãe. Ela falava como se eu ainda tivesse quinze anos e estivesse atrasada para o jantar. — Sua prima Mariana perguntou se você vai no almoço da vó, no domingo. Disse que tem muita gente querendo te ver. — Gente ou curiosidade? — Um pouco dos dois, talvez. Você sempre foi a neta que foi embora, sabe? — E por isso mesmo acho que não quero ir. — Filha, não é fugindo que a gente apaga o que viveu. Suspirei. Minha mãe sempre foi prática demais para entender feridas invisíveis. Mas, ainda assim, ela tentava. E isso já era mais do que muita gente fazia. — Eu penso e aviso. — Pensa com carinho. A vó ia gostar. Desliguei o telefone e fiquei encarando a tela por longos minutos. Voltar para aquele círculo de cadeiras brancas no quintal da minha avó, ouvir as mesmas histórias, sorrir com a mesma polidez. Aquilo tudo ainda me causava enjoo. Porque todo mundo sorria, mesmo sabendo das traições de André. Mesmo sabendo como ele me reduziu sem que ninguém fizesse nada. ... Naquela noite, resolvi andar no centro, um rio cortava o vilarejo como uma cicatriz antiga, mas havia beleza ali. Uma memória líquida. Levei o caderno comigo. Sentei na beirada, os pés balançando no ar. O barulho da água batendo nas pedras era hipnótico. Ali, comecei a escrever: "Miguel é como a margem de um rio: firme, mas não tenta conter o que corre. Ele não tenta me salvar. E talvez por isso, eu esteja começando a querer me salvar por mim mesma." Não sei quanto tempo fiquei ali, mas ouvi passos atrás de mim. Me virei. Era ele. De novo. De alguma forma, Miguel sempre aparecia nos momentos em que eu mais precisava — mesmo sem eu dizer nada. — Não sabia que você vinha pra cá. — disse ele. — Nem eu. Mas acho que a gente acaba indo onde a alma encontra sossego. Ele sentou ao meu lado. Ficamos olhando a água. Não havia pressa. O tempo parecia nos respeitar. — Eu contei sobre minha esposa. Mas tem uma coisa que não falei. — Você não precisa... — Eu quero. Ele respirou fundo. — No dia em que ela morreu, a gente tinha brigado. Uma discussão boba. Por causa de uma conta, um comentário atravessado. Ela saiu pra dirigir, irritada. E... nunca voltou. Senti um nó se formar na garganta. — Miguel... — Por muito tempo, eu me culpei. Achei que, se eu tivesse calado, ela ainda estaria viva. Mas um dia, minha avó me disse algo que mudou tudo: "A gente não morre por uma briga. Morre porque chegou a hora. Mas a culpa é que faz a dor durar mais do que devia." Engoli em seco. Porque entendi cada palavra. Culpa era o que me mantinha acordada às 3h da manhã. Culpa por não ter percebido antes. Culpa por ter ficado tanto tempo. Culpa por ter me deixado de lado. — Eu também me culpo. — confessei. — Por não ter visto o que ele era. Por ter deixado que me diminuísse tanto. Por ter engolido tudo, em nome de um amor que não existia. Miguel me olhou. Havia ternura nos olhos dele. — Você não tem culpa de ter confiado. A culpa é de quem traiu a confiança. Aquelas palavras me atingiram como uma onda. Simples. Diretas. Mas profundamente verdadeiras. ... Voltamos juntos, em silêncio. E quando ele me deixou na porta, não disse boa noite. Disse: "Você não precisa andar sozinha o tempo todo." Fechei a porta devagar. Encostei as costas nela. E chorei. Chorei por tudo o que engoli. Pelo que não disse. Pelo que acreditei. Pelo que me tornei tentando agradar. Mas, acima de tudo, chorei porque, pela primeira vez, alguém enxergou a dor sem me julgar por ela. ... Nos dias seguintes, Miguel começou a me ensinar a tocar piano. Dizia que era apenas por diversão, mas percebi que era uma forma de nos aproximarmos sem invadir. Aprendi os acordes com dedos trêmulos, errando mais do que acertando, mas sempre rindo ao final de cada nota fora do lugar. Era assim: desajeitado, mas real. E a cada novo dia, entre tintas, ferramentas, risos e silêncios compartilhados, algo em mim se reorganizava. Eu não sabia onde aquilo tudo ia dar. Não sabia se haveria nós dois, ou apenas esse breve espaço de tempo entre o que fomos e o que ainda podíamos ser. Mas sabia que havia vida ali. E pela primeira vez em muito tempo, isso era o suficiente.