CAPÍTULO 2
Acordei com o som da chuva fina batendo no telhado, como uma música improvisada que só existe em cidades pequenas. Era cedo demais para levantar, mas tarde demais para voltar a dormir. E eu não era boa em ficar parada. Não mais. Vesti uma blusa de moletom puída e calcei os tênis que estavam mais para aposentadoria do que para caminhada. Peguei um caderno de anotações e saí, deixando a cafeteira ligada por inércia. O casarão tinha cheiro de madeira molhada e lembranças antigas. Era como se cada parede guardasse um segredo. Eu andava por ele como quem pede permissão. Analisava cada rachadura, cada detalhe encoberto pela poeira, como quem escuta uma história contada em sussurros. Não percebi quando Miguel chegou. Ele estava parado na porta da sala principal, observando em silêncio. Não fazia barulho ao andar, como se tivesse aprendido a existir sem incomodar o espaço. — Você sempre acorda cedo assim? — ele perguntou, a voz mais baixa que de costume. — Não sei dormir direito quando estou em um lugar novo. — respondi sem olhar. Ele entrou devagar, os olhos acompanhando minhas anotações. Não elogiou, não criticou. Apenas observou, como quem entende, mas não quer invadir. — Esse lugar era da minha avó. — ele disse, do nada. Olhei para ele, surpresa. Até então, Miguel parecia determinado a não dividir nada que não fosse estritamente profissional. — Ela morou aqui até morrer? — perguntei, com cuidado. Ele assentiu. — Morreu aqui. Sentada naquela poltrona ali. — apontou para um canto vazio. — Disse que era onde se sentia mais viva. Silêncio. Mas não o desconfortável. Era o tipo de silêncio que vem depois de uma confissão. Eu apenas fechei meu caderno e me aproximei da poltrona invisível. — Parece um bom lugar para ficar. — comentei. Ele cruzou os braços, como se quisesse se proteger da própria memória. — A casa ficou vazia por anos. Eu só voltei quando meu pai adoeceu. Depois que ele morreu, eu... fiquei. — fez uma pausa. — Acho que não consegui sair também. Miguel não me olhou enquanto falava. Falava para a parede, para a madeira, para o fantasma da avó. E mesmo assim, cada palavra parecia um passo em minha direção. Eu queria perguntar mais. Saber quem ele era antes da dor. Mas não queria invadir. Então me calei, oferecendo a ele aquilo que me faltou quando precisei: espaço. — Vou preparar um café. Quer um pouco? — ele perguntou, antes de sair. Sorri. Pequeno, mas sincero. — Quero, sim. Ao longo das semanas, fomos construindo uma rotina silenciosa. Eu passava as manhãs limpando camadas de tinta velha e resgatando detalhes escondidos. Ele fazia medições, falava com fornecedores, supervisionava tudo com o olhar de quem não confia em ninguém para fazer nada direito. Mas de vez em quando, deixava um lanche sobre minha mesa. Um copo de água gelada. Uma palavra de incentivo disfarçada de observação técnica. — Essa coluna tem mais potencial do que parece. — Eu também tenho. — respondi, sem pensar. Ele me olhou, e pela primeira vez, sorriu. Não um sorriso inteiro. Um meio sorriso, torto, como quem esqueceu como se faz. Era o suficiente. Certa noite, a luz acabou com a tempestade. Fiquei sozinha na casa dos fundos, ouvindo o vento forçar as janelas e o mundo lá fora ameaçar invadir. Estava prestes a acender velas quando bateram à porta. Era Miguel. Molhado, com uma lanterna na mão e uma manta dobrada sobre o braço. — Achei que você podia precisar disso. — disse. Dei passagem. Ele entrou, os olhos varrendo o espaço como se quisesse garantir que eu estava segura. — Você não precisava vir. — falei, embora estivesse aliviada. — Eu sei. — respondeu. Sentamos no chão, usando a manta como apoio, e dividimos um chocolate velho que achei na minha bolsa. Conversamos sobre coisas simples: filmes ruins, cafés bons, viagens não feitas. Em algum momento, ele se calou, com o olhar distante. Eu esperei. — Minha esposa morreu num acidente. — ele disse, baixo. — Há três anos. Meu coração se apertou. Não pela tragédia apenas, mas pelo modo como ele falou: como se ainda doesse respirar depois de dizer isso em voz alta. — Eu sinto muito, Miguel. Ele fez que sim com a cabeça, apertando os lábios. — Eu não falo sobre isso. Quase nunca. Mas... com você... parece que eu posso. E isso me assusta. A confissão ficou no ar entre nós. Olhei para ele e vi o homem por trás da dor. Alguém que ainda sentia demais, apesar de fingir que não sentia nada. — Eu não estou aqui para te consertar, Miguel. — falei. — Mas se quiser companhia enquanto se reconstrói... eu fico. Ele não respondeu. Mas não foi embora. E isso, para mim, já era um início. Na manhã seguinte, a luz voltou, mas a sensação de proximidade entre nós permaneceu. Era como se aquela noite tivesse aberto uma fresta no muro que Miguel mantinha ao redor de si. Ele não era diferente no trato — continuava comedidamente educado, discreto, quase impessoal —, mas havia algo no olhar dele que mudara. Como se, de repente, ele me visse de verdade. Eu passei o dia trabalhando com afinco. Talvez um pouco para fugir da intensidade da noite anterior. Talvez porque era mais fácil lidar com paredes antigas do que com emoções novas. Retirei camadas de tinta de um rodapé de madeira trabalhada, revelando desenhos florais escondidos ali por décadas. Era como descobrir um segredo da casa, algo que esperava ser revelado há muito tempo. Miguel apareceu no final da tarde, com um rolo de plantas debaixo do braço e uma garrafa térmica. — Café? — perguntou, como quem oferece uma desculpa para ficar. Aceitei com um sorriso, limpando as mãos em um pano velho. — A casa está me mostrando coisas. Aos poucos. — comentei. Ele se aproximou, curioso. — O que encontrou agora? Mostrei a ele os desenhos florais entalhados na madeira. Ele se agachou, tocando com cuidado, como se tivesse receio de ferir a lembrança que ali repousava. — Minha avó adorava flores. Dizia que a casa precisava ter alma, e que flores traziam alma pra dentro. — Ela parece ter deixado bastante dela por aqui. — respondi. Nos sentamos na escada da varanda, com o cheiro de terra molhada ainda presente no ar. O céu escurecia devagar, e eu percebi que estava me acostumando àquele ritmo mais lento, mais presente. Era diferente de tudo o que vivi nos últimos anos, em que cada dia era um atropelo, cada escolha, um fardo. — Posso te perguntar uma coisa? — falei, depois de alguns minutos de silêncio confortável. — Pode. Mas não prometo responder. Sorri. — Por que você ficou? Mesmo depois de tudo? Miguel demorou. Muito. Longos minutos em que só se ouvia o som dos grilos e o estalar da madeira velha sob nossos pés. — Porque partir exigia força. E eu já tinha gastado a minha toda pra enterrar meu pai. — disse, por fim. Ele não disse com drama. Disse com cansaço. E aquilo me partiu mais do que qualquer lamento. — Às vezes, ficar também é um tipo de coragem. — falei, baixinho. Ele me olhou, e nos olhos dele havia uma pergunta que ele não soube ou não quis fazer. Mas eu a senti mesmo assim. --- Os dias seguintes foram preenchidos por um tipo estranho de intimidade. Não trocávamos confidências o tempo todo. Nem nos víamos com frequência excessiva. Mas havia gestos. Pequenos. Constantes. Como quando Miguel deixava uma caneca de chá na minha porta nas noites mais frias. Ou quando eu dobrava o jornal local e deixava sobre a caixa de ferramentas dele, sabendo que ele gostava de resolver as palavras cruzadas no fim do expediente. Certa tarde, um grupo de estudantes de arquitetura apareceu no casarão. Parte de um projeto de extensão da universidade, queriam observar o processo de restauração. Eu sabia que aquilo fazia parte do contrato, mas não esperava a sensação de invasão. Eles falavam alto. Tocavam em tudo. Tiravam fotos sem perguntar. Um deles fez piada sobre o estado da casa. — Isso devia ser demolido e refeito do zero. Ia ser mais rápido. — comentou um rapaz de barba rala e olhos apressados. Antes que eu pudesse responder, Miguel surgiu atrás dele, a voz firme. — Se você não consegue enxergar o valor de uma estrutura com mais de cem anos, talvez precise repensar sua vocação. O rapaz ficou vermelho. Os outros riram sem jeito. E eu… eu sorri. Pela primeira vez, vi Miguel se posicionar com clareza. Não por mim, exatamente. Mas pela casa. Pela história. Quando o grupo foi embora, ele ficou ao meu lado, observando o pórtico da entrada. — Desculpa se fui duro. — disse. — Não foi. — respondi. — Foi necessário. Ele me olhou com aqueles olhos escuros que pareciam esconder universos inteiros. — Eu odeio quando as pessoas tratam as coisas como descartáveis. Casas. Pessoas. Memórias. Quis dizer que entendia. Que eu também fui tratada assim. Mas segurei. Nem tudo precisava ser dito em voz alta. --- No sábado, o sol apareceu forte depois de dias de garoa e neblina. Aproveitei a trégua do tempo para trabalhar no jardim interno, limpando as pedras antigas e retirando ervas daninhas que cresciam entre os canteiros abandonados. Miguel apareceu com uma cesta. — Trouxe pão de queijo e café. Achei que um piquenique improvisado no jardim podia ser uma pausa decente. O convite implícito me fez sorrir. Sentamos sob a sombra de uma jabuticabeira. A comida era simples, mas o momento tinha uma leveza rara. Conversamos sobre infância, sobre as novelas que nossas avós assistiam, sobre a mania mineira de guardar potes de sorvete com feijão dentro. — E você? Sempre quis ser restauradora? — ele perguntou. — Sempre gostei de reconstruir. Quando criança, eu desmontava brinquedos só pra montar de novo. Depois, aprendi a fazer o mesmo com móveis, objetos, memórias. — E com pessoas? — ele perguntou, sério. — Com pessoas, eu ainda estou aprendendo. — respondi, sem hesitar. A resposta pairou entre nós, como uma folha solta no vento. E eu soube, naquele instante, que estava me permitindo algo perigoso: esperançar. --- Naquela noite, depois do jantar, escrevi uma carta que nunca pretendi entregar. Às vezes, palavras só servem para serem ditas no papel. > Miguel, Tem algo em você que me lembra silêncio. Não o tipo vazio. Mas o silêncio depois de uma música bonita, aquele instante em que a gente não sabe se respira ou chora. Eu não sei o que somos. Não sei o que seremos. Mas sei que, ao seu lado, sinto que não preciso fingir que estou inteira. E isso... isso é raro demais pra ignorar. Helena Dobrei a folha e guardei entre as páginas do meu caderno. Escrever aquilo foi um alívio. Como colocar um peso no chão, mesmo que por alguns minutos. --- Na manhã seguinte, encontrei um bilhete na minha porta. > Tem um coreto abandonado no alto do morro, com a melhor vista do distrito. Se quiser respirar um pouco, estou saindo às nove. M. Meu coração bateu estranho. Não era um convite comum. Era o tipo de convite que só se faz a alguém com quem se deseja dividir um silêncio. Eu fui. Subimos juntos, em silêncio, apenas com o som das folhas sob nossos pés e o vento brincando com os galhos. O coreto era simples, mas a vista era absurda. O vilarejo se estendia lá embaixo como uma maquete viva, e o céu parecia mais perto dali. Sentamos lado a lado, as pernas penduradas no vazio. — Quando estou aqui, consigo lembrar que o mundo é maior do que minhas dores. — ele disse. — E você quer esquecer suas dores? — perguntei. Ele pensou por um instante. — Não. Só quero que elas não sejam tudo o que me resta. Ficamos ali por um bom tempo. Em paz. Na descida, ele segurou minha mão. Sem aviso. Sem pedido. Apenas segurou. E eu deixei. Porque, às vezes, é nas coisas que não dizemos que a gente se encontra.