Capítulo 1 O acidente que mudou a minha vida.
(Eduardo Duarte Galvão)
Acordei tentando manter a calma. Mais um pesadelo.
Meu corpo estava coberto de suor e um grito preso sufocava minha garganta. Apertei a campainha ao lado da cama e chamei João, meu cuidador, para me ajudar a levantar.
Com a sua ajuda, sentei na cadeira de rodas automática e segui até a janela. Lá fora, a noite estava escura e silenciosa. Tentei controlar a respiração, sentir o coração desacelerar. Eu estava em casa, seguro, mas a sensação de alívio não vinha.
Pensei em Beatriz. Pensei na nossa filha que nunca nasceu. Pensei no acidente.
E, quanto mais tentava afastar essas lembranças, mais elas me prendiam. Culpa, tristeza, vazio — eu não sabia como seguir em frente sem elas.
A memória daquela noite voltou com força.
Tínhamos acabado de sair de uma festa de família na casa dos meus pais. Eu dirigia de volta para casa, com Beatriz ao meu lado, quando começamos a discutir sobre o casamento.
— Você não pode estar falando sério, Beatriz — falei, tentando manter a calma. — Uma festa gigantesca, com toda a elite carioca? Isso é loucura!
— É o nosso casamento, Eduardo! Quero que seja chique, inesquecível! — respondeu ela, com um sorriso radiante.
— Mas, Beatriz, isso é tão... ostentoso. Não podemos fazer algo mais simples, mais íntimo? — insisti, buscando um meio-termo.
— Não, Eduardo! Quero que todos saibam que somos felizes e que estamos juntos. Quero que seja uma festa que ninguém jamais esqueça! — disse Beatriz, com um brilho intenso nos olhos.
Suspirei, já sabia que não conseguiria convencê-la a mudar de ideia.
— Beatriz, você sabe que eu não sou assim. Prefiro coisas simples, autênticas. Não preciso de uma festa gigantesca para acreditar que somos felizes — falei, tentando fazê-la entender meu ponto de vista.
Ela riu, com aquele jeito doce que sempre me desarmava.
— Ah, Eduardo, você é tão romântico! Mas eu quero isso para nós. Quero que seja especial.
Acabei sorrindo também, contagiado pela sua animação.
— Tudo bem, Beatriz. Vamos fazer a festa do jeito que você sonha. Mas, por favor, sem exageros — pedi, em tom conciliador.
Beatriz se aproximou e me beijou.
— Eu prometo, Eduardo. Vai ser perfeito — respondeu, com a convicção que só ela tinha.
Nesse instante, tudo mudou. Um carro invadiu nossa faixa, vindo em nossa direção. Tentei desviar, mas era tarde demais. O impacto foi brutal. Senti o mundo girar, ouvi o estilhaçar dos vidros, o rangido metálico do carro se retorcendo. Uma dor lancinante atravessou meu peito e minhas pernas.
Depois, escuridão.
Quando recobrei a consciência, estava em uma cama de UTI. Não sentia as pernas. Ao meu lado, meu pai chorava.
— Eduardo, meu filho... — disse ele, com a voz embargada. — Você vai ficar bem. Mas... Beatriz e a bebê não sobreviveram.
Senti o chão sumir sob mim. O mundo desabou. A dor era tão devastadora que mal conseguia respirar.
— Pai... não... não pode ser... — soluçava, em desespero. — Beatriz... a bebê...
Ele me abraçou forte, também em lágrimas.
— Eu sinto muito, Eduardo. Eu sinto muito... — repetia, tentando me consolar.
Mas não havia consolo. Eu havia perdido as duas pessoas que mais amava. Nada nunca mais seria igual. Aquele acidente não tirou apenas minhas pernas. Ele levou minha vida inteira.
Dias depois, ainda internado, meus pais voltaram ao quarto. Minha mãe segurava minhas mãos com delicadeza, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Filho... — começou ela, com a voz trêmula. — Nós conversamos com alguns médicos. Existe um tratamento no exterior, em uma clínica de reabilitação. Eles dizem que você pode ter chances de voltar a andar.
Meu pai completou, com firmeza:
— Eduardo, já fizemos contatos. Eu pago o que for preciso. Você é jovem, forte... não pode desistir agora.
Desviei o olhar, fixando-o no teto branco do quarto. O nó na garganta me sufocava.
— Pai, mãe... vocês não entendem. Eu não perdi só as minhas pernas. Eu perdi a Beatriz. Eu perdi minha filha. O que mais me resta?
Minha mãe apertou minhas mãos com força.
— Resta você, Eduardo! Resta a sua vida! Você acha que Beatriz gostaria de ver você assim, entregue, sem lutar?
Senti meus olhos marejarem, mas respondi, ríspido:
— Não falem dela! Vocês não sabem o que eu sinto... Ela queria uma vida ao meu lado, e eu falhei. Como posso continuar, fingindo que tudo faz sentido?
Meu pai se aproximou, tentando manter a calma.
— Filho, ninguém está pedindo para você esquecer. A dor vai estar aí. Mas você precisa viver. Se não por você, por nós... por Beatriz, até. Honre a memória dela.
Balancei a cabeça, com lágrimas correndo pelo rosto.
— Não, pai. Eu não quero tratamento nenhum. Não faz diferença se eu andar ou não. A verdade é que nada vai trazer Beatriz e nossa bebê de volta. E sem elas... eu não tenho mais motivo.
O silêncio tomou conta do quarto. Minha mãe chorava baixinho, enquanto meu pai fechava os olhos, vencido pela minha obstinação.
Dentro de mim, o vazio era maior que qualquer esperança.
Naquela noite, fiquei sozinho no quarto do hospital. O som dos monitores era a única companhia, aquele apito constante que lembrava que meu corpo ainda insistia em viver, mesmo quando minha alma já havia desistido.