O silêncio da manhã foi cortado pela ordem seca de Matteo. Ele convocou Isadora ao escritório, o rosto impassível, os olhos mais frios que a lâmina de uma faca. Sem rodeios, largou um envelope diante dela.— Você precisa se portar como minha esposa. E isso exige mais do que boca fechada — disse, sem levantar a voz, mas cada palavra carregava o peso de uma sentença.Isadora abriu o envelope com dedos tensos. Dentro, um cronograma milimetricamente organizado: aulas de postura, dicção, comportamento. Dias e horários inflexíveis.— Pontualidade é respeito. Atraso é vergonha — ele finalizou, recostando-se na cadeira com uma calma assustadora.Ela tentou protestar, o peito inflamado pela humilhação, mas Matteo apenas a cortou com um olhar.— Você aceitou o contrato. Agora vai honrá-lo.Sem espaço para argumentos, Isadora deixou o escritório, cada passo ecoando como um lembrete do preço que pagava.***A primeira aula com Alessandra foi uma execução pública disfarçada de treinamento. A advog
O vapor do banho subia preguiçoso, como se tentasse esconder o que o espelho não conseguia mentir. Isadora encarava a própria pele úmida refletida no vidro embaçado, os cabelos presos em um coque torto, os olhos fundos, o corpo ainda marcado por cicatrizes que o tempo não apagava. As marcas antigas estavam ali, visíveis. Mas era uma cicatriz mais funda que ardia: aquela que Enzo deixara gravada com a ponta do medo.Ela fechou os olhos. Respirou. Mas a memória da primeira vez voltou — confusa, crua, cheia de silêncio e culpa. Não houve prazer na lembrança, só o desconforto de um corpo entregue por carência, por ilusão, e a vergonha de ter acreditado em promessas vazias. O calor da água tornou-se insuportável, como se queimasse a ingenuidade que ainda restava sobre sua pele.E então a porta se abriu.— Matteo? — gritou, puxando a toalha numa reação desesperada.Ele congelou no umbral, o rosto travado, olhos caindo por um segundo para as cicatrizes nos braços, costas, na lateral do quadr
Isadora estava no quarto, de costas para a porta, tirando os brincos diante do espelho. Os ombros nus refletiam uma tensão que ela tentava disfarçar, mas que vibrava no ar como eletricidade. O estalo da porta se abrindo com força a fez congelar.— O que pensa que está fazendo? — Matteo entrou sem pedir licença, olhos cortantes. — Quer me explicar o que fazia sozinha com Enzo ontem à noite?Ela virou devagar, mantendo o queixo erguido, mesmo com o coração disparado.— Ele me encontrou por acaso. Não é o que você está pensando.Matteo deu um passo à frente, o olhar preso ao dela como um laço apertado demais.— Não brinque comigo, Isadora. Eu sei quando estão mentindo.Ela apertou os brincos na mão, a respiração acelerando.— Por que importa? Você não confia em mim mesmo.Num movimento rápido, Matteo agarrou o queixo dela, obrigando-a a encará-lo. O toque era firme, frio, mas os olhos dele… ali queimava algo mais denso.— Ele te tocou? — A voz veio baixa, ameaçadora.Isadora tentou se so
Isadora chegou esbaforida ao ateliê, o coração martelando no peito. O salão era imenso e impecável, iluminado por luzes douradas que dançavam sobre catálogos abertos e manequins enfileirados. O cheiro sutil de flores frescas misturava-se ao perfume caro de Clarisse e Valentina, que estavam ali, sentadas lado a lado como duas rainhas prontas para o massacre.— Até que enfim — Clarisse alfinetou, cruzando os braços e lançando um olhar cortante. — Nem pontualidade básica você consegue?Isadora, sem perder a compostura, ajeitou a bolsa e respondeu seca:— Atraso planejado pela sua filha. Espero que as próximas datas sejam marcadas com mais respeito da próxima vez.Valentina fingiu sorrir, mexendo preguiçosamente no bracelete caro.— Querida, estamos apenas tentando evitar que você passe ainda mais vergonha do que já carrega na bagagem.A organizadora, visivelmente desconfortável, forçou um sorriso profissional e abriu um catálogo grosso.— Bem, vamos então escolher o vestido perfeito para
Matteo e Isadora chegaram em casa depois do jantar, o silêncio entre eles pesado e cortante. Assim que entraram no saguão da mansão, Matteo fechou a porta atrás dela com força, fazendo o som ecoar pelo mármore frio. Ele bloqueou a saída, o corpo tenso, os olhos em brasa.— Você vai me dizer o que Don Fabrizio te falou. — A voz dele era baixa, mas cada palavra carregava a ameaça de explodir a qualquer momento.Isadora virou devagar, cruzando os braços, o queixo erguido.— Ele só repetiu as mesmas sujeiras sobre mim. Bastarda, que não deveria entrar na família Bianchi. Não é adequada. Nada novo.— Não era isso o que aquele verme estava sugerindo no jantar.— Na sua frente, claro. Quem respeita alguma mulher dentro desse meio?Os olhos de Matteo estreitaram. Ele não acreditava nem por um segundo, e a raiva por terem falado dela vibrava sob a superfície, mesmo que ele não dissesse nada.Ele avançou de repente, segurando o braço dela com firmeza — não o suficiente para machucar, mas deixan
POV: ISADORAO copo de cristal antigo rangia sob o pano de algodão, e Isadora limpava cada curva como se sua vida dependesse disso. Talvez dependesse. A superfície translúcida refletia seu rosto, mas distorcido — o que ela mais reconhecia nele. Um olho mais largo, a boca fina puxada para o lado errado, o nariz achatado pelo ângulo do vidro. Ela olhou por alguns segundos, hipnotizada. Às vezes, era assim que se sentia: um erro de forma, uma presença deslocada no lugar errado. Estava descalça. Os pés sujos pelo mármore lustroso da mansão Diniz. Suava sob a camisa branca de manga longa, que era dois números maiores e emprestada da lavanderia. Invisível — como sempre.— Senhorita Isadora, a senhora quer que eu leve os vinhos agora? — perguntou o novo ajudante, um adolescente com olhos gentis e a camisa amassada. Ela abriu a boca para agradecer, mas antes que qualquer som saísse, a governanta cruzou o salão com passos firmes.— Não a chame assim — disse, ríspida. — Ela não é da famíl
POV: ISADORAO céu ainda estava pálido quando Isadora empurrou a porta dos fundos com o ombro e pisou no jardim encharcado de orvalho. O ar da manhã tinha um gosto quase limpo — quase — porque nem mesmo o silêncio daquela hora conseguia apagar o gosto amargo que restara da noite anterior.Segurava uma caneca de café requentado. Tinha passado a noite virando na cama, espremida entre lençóis duros demais para consolar um coração pesado. Não chorou. Não tinha chorado. Mas havia algo dentro do peito que doía como se tivesse gritado até perder a voz.Sentou na mureta do jardim, com as pernas encolhidas sob o corpo e os olhos fixos no céu que clareava devagar. As palavras de Clarisse ainda martelavam sua cabeça. Agregada. Favor. Bastarda. Tantas formas diferentes de dizer que ela não pertencia àquele lugar — e mesmo assim, ali estava.Pensou na mãe. A biológica. A desconhecida. A mulher que, segundo os boatos, havia sido uma prostituta. Nunca teve uma imagem clara dela, só fragmentos invent
POV ISADORAO quarto era bonito demais. Janelas abertas, cortinas esvoaçando com o vento que trazia o cheiro salgado do mar. Lençóis brancos, colchão macio, uma poltrona azul ao canto e um armário de madeira escura entalhada com arabescos.Mas apesar da beleza, o silêncio era o que mais preenchia o espaço. Um silêncio denso. Suspenso. Quase perigoso.Isadora estava sentada na beirada da cama, as mãos espremendo a barra do casaco. Ainda não entendia por que estava ali. Por que Enzo a tinha trazido para aquele lugar afastado? Por que olhava para ela daquele jeito?Ele estava próximo, mas não muito. Encostado na parede, observando-a com uma calma que beirava o reverente. Como se tivesse medo de espantá-la.— Está tudo bem? — ele perguntou, a voz baixa, quebrando a tensão como quem quebra gelo com a ponta dos dedos.Ela hesitou, sem saber como responder. Não sabia se estava tudo bem. Não sabia de nada, na verdade. Só sentia o peito apertado, os batimentos fora de ritmo.— Você não precisa