Cidade de Solidão, Noriah Sul, 2023.
POV TAYLA
Eu não vivia no País das Maravilhas, mas assim como Alice, todos os dias de manhã eu sempre pensava em seis coisas impossíveis:
- Voltar para Solidão
- Não ser filha da minha mãe
- Meu gato ter vidas infinitas
- Meu marido ter um pau enorme
- Meu filho só ter o meu DNA
- Deixar de odiar Ryan Palmer
Naquele dia, o universo conspirava contra mim e me trazia de volta ao lugar onde jurei nunca mais pôr os meus pés.
Quando parei meu carro diante do portão enferrujado do Rancho Palmer, olhei pelo retrovisor e vi Lewis dormindo no banco de trás, seus cílios longos projetando sombras sobre as maçãs do rosto cheia de sardas, herdadas de mim. Apertei o pequeno trevo que adornava minha gargantilha, como se fosse um pingente que pudesse me proteger do passado.
Olhei para Cheshire deitado preguiçosamente no banco da frente e perguntei:
- “Para onde devo ir”?
Cheshire levantou levemente a cabeça e me encarou, enquanto se espreguiçava sem pressa.
- “Depende de onde você quer chegar”. É esta a parte que você fala, gato.
Cheshire me ignorou por completo e voltou a dormir.
- “Não me importa muito onde”, digo eu... Então o gato responde: “Então não importa o caminho que você tome.”
Suspirei e olhei para o letreiro debotado que dizia “Rancho Palmer” e meu coração doeu de uma forma que jamais imaginei que doeria novamente. Lembrava exatamente que quando parti, jurei nunca mais voltar. Mas a vida tinha um senso de humor perverso, assim como o Gato de Cheshire: "Quanto mais você corre do passado, mais ele te encontra de boca aberta, pronto para te devorar."
- Bem-vinda ao País das Mentiras, Taylice. – Falei para mim mesma.
Fiquei ali parada, dentro do carro, tentando encontrar coragem para abrir o portão.
Fechei os olhos e respirei fundo. Cada vez que eu fazia aquilo conseguia sentir o cheiro do ar puro do Rancho Palmer, mesmo quando eu estava bem distante dali. Eu amava a minha vida e sabia que qualquer coisa que mudasse no passado teria feito com que meu momento atual, que era maravilhoso, não existisse. Ainda assim aquele era o lugar que eu escolheria sempre como preferido no mundo, embora tenha sido onde meu coração foi partido em mil pedaços.
Toquei minha região pubiana e sorri. Eu ainda tinha a marca registrada que era o “nosso segredo”, o momento mais louco e insano de nossas vidas. E se mil vezes pudesse voltar e nascer de novo, desejaria crescer ao lado dele, por mais dor que eu soubesse que me traria no futuro. Ryan me ensinou tudo que eu sabia. E graças a ele eu sofri de uma maneira inimaginável. Mas também tive forças para superar.
Eu não falava mais com Ryan, mas o via sempre na mídia, fosse em comerciais, programas de televisão e até como figurante em filmes. E se não bastasse vez ou outra em outdoors assim como estampado na lataria dos ônibus. A vida dele estava sempre em evidência e muitas vezes era eu a responsável por aquilo, quando o atacava através do meu podcast: “Alice no país dos prazeres”.
Sim, o podcast mais assistido tinha como host a jovem caipira que saiu do interior depois de ter sido humilhada publicamente da pior maneira possível. E agora eu era uma mulher famosa, embora ninguém ali soubesse quem estava por trás da voz mais ouvida no país.
Ri ao lembrar do episódio daquela manhã, que era sobre o sonho de todo pau:
Conquistar o cool
Acordar com um belo chups de manhã cedo
Estar eternamente dentro da boceta e
Jorrar em seios grandes.
Aprendi aquilo tudo com ele e hoje ajudava milhões de mulheres a entenderem sobre sexo, dando as dicas práticas e interessantes.
Ironicamente eu falava o tempo todo em peitões, sendo que não os tinha. E sobre sexo, que eu não praticava, mesmo sendo casada e dormindo com meu marido todas as noites.
Meu sonho sempre foi ter peitos. Quando eu era adolescente não tinha dinheiro para botar. E agora que era adulta e tinha dinheiro faltava coragem, porque eu não lidava muito bem com a dor. Ah, a mulher que não lida muito bem com a dor tem uma tatuagem na região íntima, mais precisamente na parte do “capô” da vagina. E eu nunca saberia se doeu ou não. E tinha um filho, que nasceu de parto normal.
Ri lembrando daquela noite que fizemos a tatuagem... E das outras tantas histórias que eu tinha ao lado de Ryan. Era uma vida juntos, que eu levaria para sempre nos pensamentos.
Ryan era a pessoa que eu mais odiava no mundo. E também a que mais amei até conhecer Lewis, meu filho.
Nossa história começou quando nascemos, no mesmo mês, mais precisamente um setembro. Ele nasceu num dia de sol. Eu num dia de chuva, mas ambos na mesma semana. Nona dizia que nossos destinos estavam entrelaçados desde a barriga. E eu achava aquilo lindo e romântico. Até o dia que desejei nunca o ter conhecido.
O certo é que cada vez que eu fechava os olhos, a imagem dele vinha na minha mente. E não era do famoso Ryan Palmer, o modelo que as adolescentes e mulheres de todas as idades eram fãs. Eu lembrava do meu Ryan, aquele que me mostrou o mundo e me fez conhecer o amor... E depois a pior das dores.
Senti um frio percorrer minha espinha quando lembrei da ligação que recebi de Nona dias atrás.
- Como vai, minha menina?
- Bem, Nona! E feliz com a sua ligação. Está com as malas prontas? Lewis já está perguntando quando você virá.
- Eis o motivo da minha ligação, Tayla: eu não irei.
- Como assim não virá? – Fiquei surpresa com a revelação, já que Nona todos os verões vinha passar alguns dias na minha casa, alternando outros ao lado do neto, Ryan, que não tinha moradia fixa, pois passava a maior parte do tempo viajando a trabalho, já que atualmente era um dos modelos mais famosos do mundo.
- Neste verão vocês virão. Será incrível!
- Não, Nona! – eu ri – Sabe que isto é impossível.
- Por quê? Só porque prometeu que nunca mais pisaria os pés em Solidão?
- Isto não é suficiente? – Ri novamente, por dentro sentindo o amargor do motivo pelo qual tomei aquela decisão.
- Preciso que venha, Tayla. – Ela falou de forma séria.
- Aconteceu alguma coisa?
- Sim, aconteceu. Este será o nosso último verão.
Engoli em seco, sentindo como se o ar fosse tirado de mim. Eu tinha Nona Sans Palmer como uma mãe (ou uma avó, tanto faz). Eu gostava dela mais do que da minha própria mãe. A avó de Ryan praticamente me criou.
- Como assim, Nona?
- Eu não estava me sentindo bem nos últimos tempos – ela começou, fazendo com que eu sentisse minha barriga contrair-se com uma sensação horrível – E fiz alguns exames. O resultado saiu há dias atrás. Estou com câncer.