Eva Cottelo vivia a sua vida o mais silenciosamente que conseguia, afinal, ela precisava disso. Dona de um corpo escultural, que escondia sob roupas largas e um rosto de por inveja em qualquer um, ela lutara muito para conseguir a vaga de enfermeira em um dos hospitais mais requintados do Rio de Janeiro. Todos que a conheciam pensavam que ela era só mais uma enfermeira simples de fala mansa e olhar gentil. Eles não a conheciam de verdade e para Eva estava bom assim, pois havia demorado muitos anos para que ela conseguisse o merecido anonimato. Anton Volkov, um dos nomes mais conhecidos entre os mafiosos mais cruéis da Europa, destruirá cada plano de Eva de permanecer no anonimato, quando um evento trágico, deixa a vida de Anton nas mãos de Eva. Ela terá duas opções ao ver o homem de cabelos escuros e olhos azuis gelados: deixar que ele encontre um fim doloroso e manter sua vida no cotidiano comum ou salvar o homem que tem o poder de virar sua vida de cabeça para baixo. Cheia de segredos, Eva se vê em meio a um ardente desejo que seu corpo a impõe, mesmo que ela saiba que Anton representa tudo que ela teme. Dono de uma vontade de ferro e falta de escrúpulos, Anton vai querer desvendar cada pedaço do passado misterioso de Eva, almejando tomar até o último desejo da mulher que o faz agir por impulso, algo que ele nunca havia se permitido. Poderia o desejo entre ambos, ser forte o suficiente para manter essa ligação frágil deles intacta, a tantas mentiras e destinos cruéis? Eva e Anton não sabem, mas seus caminhos estão prestes a se entrelaçarem irreversivelmente, seja para o bem ou não.
Leer másEva
Existem dias bons, dias ruins, dias péssimos e dias como hoje.
Olho pela quarta vez como o senhor de idade, os cabelos alvos como os lençóis que cobrem a cama em que está deitado, está retirando o soro do braço. Estreito meus olhos, a minha paciência tendo uma luta boa com o dever, à medida que me aproximo.
— Senhor Francis, esse já é o quarto que o senhor tira. — Repreendo, meu tom suave em nada equivalendo com a irritação que me domina.
Ele me olha com uma expressão desgostosa, como se eu fosse a culpada de ele estar em seu terceiro ataque cardíaco.
— Maria, eu já lhe avisei que eu estou bem. — Ele me diz, claro, mais uma vez não me reconhecendo.
Eu já trabalhei na emergência, na pediatria e até na oncologia, mas para mim, não há nada mais desgastante do que trabalhar na geriatria.
É cruel ver a mente das pessoas que já foram ativas se deteriorando pouco a pouco.
Odeio isso.
— Meu nome é Eva, senhor Francis. — Digo firme, vendo a confusão se espalhar em seu rosto — Vamos trocar isso, ta bom?
Francis fica me olhando trabalhar, os olhos se desfocando por alguns instantes, nos momentos em que sua mente se perde em um lugar que só ele conhece.
— Maria morreu. — Ele anuncia, olhando para o quarto como se fosse a primeira vez que estivesse ali.
Contenho a dor que se espalha por meu peito, pois não importa quantas vezes eu veja isso, sempre me parte o coração.
Digo algumas palavras que sei que ele não ouve e tento deixa-lo o mais confortável possível antes de sair.
Ele se deita na cama, os olhos se fechando com a medicação do soro, o calmante finalmente lhe dando o merecido descanso.
Fecho a porta do quarto, sentindo o peso do plantão pesar em meus ombros, junto ao meu desânimo.
Eu realmente odeio isso, mas foi tão difícil conseguir essa vaga...
Esfregando o rosto, eu me encaminho para o refeitório, pronta para finalmente comer o meu jantar. Olho a hora, vendo que já passa das duas.
Esse asilo é um dos mais bem pagos do Rio de Janeiro e mesmo odiando ter que lidar com as dores constantes desse lugar, ainda paga boa parte das minhas contas.
Mancando um pouco, por causa do esforço que tive que fazer ao levantar uma senhora especialmente pesada, eu esfrego um pouco a coxa, quase sentindo a minha cicatriz ali, longa e disforme queimar.
Balanço a cabeça, não querendo levar meus pensamentos por esses caminhos.
Vejo Jonas e Letícia comendo algo na mesa perto das janelas e me aproximo, sabendo que Jonas estará com minha bolsa. Jonas e eu nos conhecemos a cerca de três anos atrás, quando eu ainda estava me habituando a profissão. De início pensei que ele estaria interessado em mim, mas ao ver o modo como ele mirava os médicos, percebi que ele estava mais do que satisfeito em só corrigir as minhas besteiras. E no começo eu cometia muitas.
Jonas e eu fomos nos aproximando e eu cometi o meu primeiro deslize depois que cheguei ao Brasil: eu fiz um amigo.
Eu não queria, mas quando percebi, já estava apegada.
Foi ele aliás, quem me indicou esse hospital e me ajudou a conseguir a vaga.
— E aí, meu doce? — Jonas pergunta, me passando a minha bolsa, onde trago geralmente alguma salada bem recheada com frango.
Não é tão saudável quanto seria se eu comesse só as folhas, mas é o máximo que consigo chegar perto de ser saudável.
— Francis estava rebelde novamente, desse jeito teremos que conversar com o médico sobre trocar a medicação dele, não acho que esteja adiantando. — Digo, abrindo o meu pote, sentindo o cheiro da minha mistura, quase saudável.
— E eles nos ouvem? — Letícia resmunga, uma baguete pingando molho em uma mão.
Vejo a forma como ela coloriu os cabelos de roxo nesse final de semana, o rosto fino e alongado lhe dando um aspecto quase caricato.
— Não, eles não fazem. — Concordo, realmente irritada com os médicos que não consideram o que dizemos por sermos enfermeiros, não são todos que agem com essa prepotência, mas existem alguns que são uma dor de cabeça.
— Se eles passassem metade do tempo que passamos com aqueles idosos, duvido que eles olhariam para nós como se a gente fosse a merda agarrada ao seu tênis. — Jonas estala, pegando a maça da minha bolsa, sem cerimônia e mastigando.
Nem me preocupo em corrigi-lo mais, pois todos os dias eu trago a maça, só para deixa-lo comer. Vejo-o mastigar a fruta com gosto, sua pele negra formando um pacote perfeito de quase um metro e oitenta de corpo esguio e olhos escuros de pura perdição.
Jonas é lindo e sabe disso. Eu gostaria de voltar a ter metade da confiança que ele tem.
— Tem alguns que são até legais vá... — tento apaziguar, mesmo eu sabendo que são pouquíssimos, os não babacas.
— Claro que tem querida, mas deixe-nos reclamar dos idiotas mais um pouco. — Jonas retruca e eu sorrio.
— Faça como quiser. — Digo a ele, bebendo um pouco do suco de laranja que trouxe.
— Ficou sabendo, Eva? — Letícia me catuca com o cotovelo, uma mania que eu passei a detestar.
— Do que? — Pergunto, um pouco desinteressada.
— Jonas recebeu um paciente novo hoje... de última hora. — Ela me diz, mas os olhos dela se fixam na expressão emburrada de Jonas.
— Sério? — pergunto, meu tom ficando triste por ele.
— Isso aí, adicionaram mais três horas no meu turno já estourado. — Ele sorri, parecendo uma carranca cheia de dentes — É um idoso catatônico, mal fala, mas agora eu estou preso com ele, até o Felix me render.
— Que merda. — Digo e logo me lembro de o motivo do seu rosto parecer tão abatido — Hoje não era o aniversário de namoro seu e do Fe?
Jonas assente, a expressão mais miserável ainda.
Penso em meu apartamento apertado e vazio, no calor abafado que faz em um verão carioca de matar e no fato do meu ar condicionado, estar pifado de novo.
— Te ajudo com esse problema, se você me prometer não me enfiar em mais uma daquelas saídas na Lapa. — Barganho, sabendo que ele não vai recusar.
Jonas olha com ternura para mim e deposita um estalado beijo em minha testa.
— Você já não ia mesmo, sua chata. — Ele responde, mas sorri — Obrigada meu doce.
— De nada, só me diga o quarto e se ele tem alguma particularidade que eu deva saber antes. — Peço, guardando minhas coisas.
— Como eu disse, ele está catatônico e chegou aqui tem menos de um dia. Parece gringo. — Jonas confidencia, os olhos pensativos.
— Argentino? — pergunto.
— Não, mas o nome que vi no prontuário parecia russo. Boris Valk, alguma coisa, sei lá. — Jonas da de ombros, se levantando e jogando os restos da sua maça no lixo.
— Cliente vip, então. — Leticia murmura e eu concordo, estranhando um pouco.
Não é incomum termos estrangeiros por aqui, mas algo no som do nome me enviou um mal pressentimento.
Estou sendo paranoica, de novo.
Jonas e eu nos despedimos de Letícia e começamos a caminhar pelos corredores, enquanto ele me fala tudo que preciso saber sobre o senhor acamado.
Volto a cuidar dos meus pacientes e quando percebo que o horário de Jonas já começou eu me encaminho para a ala dele.
Subo as escadas para o terceiro andar, pois o elevador está em manutenção.
Ofegando um pouco, eu percebo que meus dias em frente a televisão com potes de sorvete e sanduiches estão cobrando um preço agora.
Em pensar que teve um tempo em que invejavam a minha disposição física...
Quando chego ao centro da recepção do andar eu paro, estranhando o silêncio e o vazio da cadeira.
Será que a plantonista foi ao banheiro?
Pego o prontuário do senhor Boris e vejo em qual quarto ele está. Caminho para lá, com uma sensação estranha me dominando.
Normalmente a essa hora aqui é um lugar calmo, mas há uma sinistra tensão no ar, conforme eu caminho e começo a pensar que posso estar finalmente cedendo a insanidade.
Abro a porta do quarto vendo três coisas, que sei serem decisivas. Sentado em frente a cama está um homem com os olhos mais gelados que eu já vi, olhando fixamente e sem hesitar para o homem que o ameaça com uma pistola nove milímetros, uma que eu aprendi a detestar anos atrás. O paciente, que eu deveria estar monitorando está deitado na cama, sem mover um único músculo.
Tudo se passa por minha visão como um borrão e eu paraliso por breves segundos, com a decisão a ser feita.
Posso ignorar por completo isso e deixar a vida do homem de olhos azuis a cargo da sorte ou eu posso ajuda-lo e arriscar trazer coisas do meu passado que eu preferiria deixar bem, onde estão.
Que diabos eu faço?
EvaEu mal tinha fechado os olhos quando fui despertada pela luz fraca que atravessava a janela alta. A mansão parecia ainda mais silenciosa naquele início de manhã, como se o mundo lá fora ainda estivesse adormecido — ou observando. A sensação de estar sendo vigiada nunca me abandonava completamente, mesmo com o calor de Anton ainda presente no lençol ao meu lado. Ele já havia saído.Levantei devagar, pés descalços tocando o chão de madeira polida. Vesti um dos robes de seda pendurados ao lado da porta do closet — caro demais para ser confortável, mas agradável ao toque. Desci as escadas em silêncio, guiada apenas pelo aroma de café que invadia o corredor. Foi fácil encontrá-lo na cozinha — o homem que comanda com violência uma parte da Europa Oriental, ali, misturando açúcar na xícara como se não tivesse sangue nas mãos.— Dormiu bem? — perguntou ele, sem se virar.— O suficiente para esquecer onde estou por cinco minutos — respondi, apoiando-me na bancada fria.Ele sorriu de lado e
EvaAcordei antes do sol nascer, envolta em lençóis de algodão tão macios que pareciam me prender ali. O silêncio da casa era denso, e a ausência de janelas no quarto me fazia perder a noção de tempo. A única iluminação vinha de uma lâmpada âmbar no canto, lançando sombras suaves pelas paredes.Me sentei na cama, ainda atordoada pela confusão de sentimentos da noite anterior. Havia algo em Anton que me desafiava a cada segundo. Seu jeito de me encarar como se pudesse ler meus pensamentos, seu domínio silencioso do ambiente. Ainda não havíamos cruzado nenhuma linha, mas a tensão estava se acumulando como uma tempestade no horizonte.Levantei e procurei por roupas, e ali, dobrada sobre uma cadeira no canto, havia uma muda simples: uma calça de moletom e uma camiseta. Era confortável demais para vir dele, pensei, mas o tecido era novo, ainda com o cheiro de loja. Me vesti devagar, observando cada detalhe do quarto que ele havia me destinado.A porta destrancou com facilidade dessa vez. S
EvaA Rússia parecia um lugar onde até a esperança congelava.Observei pela janela do carro o mundo coberto de branco. Árvores nuas, o céu pálido e as pessoas apressadas com os rostos enterrados em casacos grossos. Tudo parecia calado. Controlado. Como Anton.Desde que saímos do aeroporto, ele não disse nada. Apenas manteve as mãos firmes no volante, a expressão imóvel. Ainda assim, sua presença preenchia o carro inteiro. Era um silêncio que queimava.Lá fora, a cidade era tão fria quanto o clima. Mas havia algo curioso nos prédios antigos, nas placas em cirílico, na forma como tudo parecia observar em vez de acolher.A sensação de ser estrangeira voltava a cada instante.Acho que nunca fui de lugar nenhum.— Vai me ignorar até quando? — perguntei, cansada daquele vazio.Ele apenas desviou o olhar por um segundo para mim. — Até eu saber que você não vai fugir na primeira oportunidade.— E se eu não quiser fugir?Ele não respondeu. Mas apertou o volante com mais força.A casa parecia
EvaAcordar de um sono induzido nunca é uma experiência gentil. Há sempre uma névoa espessa entre o inconsciente e a realidade, e no meu caso, essa transição parece sempre vir acompanhada de pânico e violência.As pernas são as primeiras a reagir, um tranco seco que choca meus pés contra uma superfície macia. O carpete sob mim absorve o impacto, mas não suaviza o desconforto. Em seguida, meu tronco se ergue com brutalidade, os braços se lançam para frente, e a bile amarga sobe pela minha garganta. O coração martela contra o peito, bombeando sangue em disparada para o cérebro, rápido o bastante para me manter consciente, mas não lúcida.O quarto está em penumbra. Uma lareira crepita à minha frente, lançando sombras dançantes nas paredes. O calor que emana dela é quase reconfortante, mas o medo lateja mais alto que qualquer sensação agradável.— Mas o que… — Tento articular algo, mas minha língua está pesada, os pensamentos desordenados, atropelando-se dentro da cabeça. E então percebo:
EvaIsso vai ser mais difícil do que imaginei.Tento mover o ombro, mas o corpo do segurança gigante, que agora sei se chamar Brann, prensa todo o meu lado esquerdo contra o estofado do carro. O espaço é mínimo, sufocante. Olho para o outro homem, Nick, que mexe no celular com as sobrancelhas franzidas. Ele me dá uma distância considerável, mas não me iludo, cada movimento meu está sendo monitorado.O carro freia um pouco mais bruscamente, e aproveito o balanço para me afastar de Brann o mais discretamente possível. Encosto a cabeça no banco, tentando acalmar os pensamentos. Sair daquele quarto depois de dias foi um alívio, mas a euforia se dissipou rápido quando percebi que já era noite.O pouco que vi me mostrou uma mansão luxuosa, isolada em meio a uma área florestal densa. Um frio percorre minha espinha.Eu nem sei se ainda estou no Rio de Janeiro.Pelo retrovisor, vejo pelo menos três carros saindo conosco, mas uma sensação amarga me preenche ao notar que Anton não está entre nós
EvaIsso não pode estar acontecendo. De novo, não.Levou muito tempo para me afastar desse tipo de gente, desse tipo de vida. Não posso estar sendo imersa nisso tão profundamente.Meu olhar se desvia para a senhora atarracada, porém com uma estrutura óssea larga o suficiente para que eu tenha certeza do motivo de ter sido escolhida para me ajudar a arrumar a mala. Uma única mala.Ela separa algumas peças de roupa, deixando-as ao lado da cama, depois fecha a mala pequena.Seu olhar escuro e firme se concentra em mim.— A senhora pode tomar banho e se trocar. Se precisar de ajuda com o cabelo, também posso providenciar. — Ela diz, sem sutileza alguma sobre o estado caótico dos meus fios.Olho para as roupas na cama, sentindo a vontade de tomar um banho me dominar, mas não gosto do tom de ordem na voz dela. Minha teimosia vence quando respondo:— Estou bem, obrigada.Há um silêncio pesado no quarto. A mulher me olha primeiro como se eu fosse um inseto irritante, mas, depois de alguns seg
Último capítulo