O cheiro de café requentado se mistura ao som do telefone tocando insistentemente no balcão de metal, as vozes falam todas ao mesmo tempo, formam um zunido constante e desconfortável, como se fosse um enxame de insetos.
Meu celular vibra no bolso da calça, mas respiro fundo e ignoro tudo enquanto equilibro uma bandeja cheia de xícaras e pratos sujos.
O café onde trabalho está lotado nesse fim de tarde e meu chefe, Olavo, um homem baixinho e rabugento, já está bufando impaciente atrás do balcão.
— Isabella, se demorar mais um segundo, os clientes vão ter que comer os guardanapos! — resmunga, deslizando outro pedido na minha direção.
Respiro fundo, conto mentalmente até três e forço um sorriso simpático. O que ele me paga aqui por mês não cobriria uma única refeição que eu costumava fazer em um dos meus restaurantes preferidos, mas isso foi antes.
— Eles sabem que sua comida vale a pena esperar, chefe.
Ele quase sorri com orgulho, mas deve ter algum código de conduta pessoal que o impeça de ser querido pelos funcionários, o mais perto que consigo de sua simpatia é ser ignorada. O que pode significar que não estou fazendo nada errado, ou estou fazendo um trabalho excepcional. Nunca se sabe.
Com a destreza adquirida pela prática, entrego os pedidos e volto para a cozinha, sentindo o celular vibrar de novo. Puxo o aparelho para espiar as notificações e o número desconhecido, mas já familiar, faz meu estômago embrulhar. Seria demais esperar por algo bom, para variar.
— Você tá brincando se acha que tem tempo pra olhar o celular agora, né? — Olavo me repreende.
Trinco os dentes e enfio o celular de volta no bolso, contando os minutos para ir embora. Não que eu esteja realmente ansiosa para sair daqui, já que esse é só um dos dois empregos que tenho. Quando meu turno acabar, ainda preciso assumir a assistente administrativa em um pequeno escritório, digitando relatórios e organizando planilhas até tarde.
Nunca imaginei que minha vida se resumiria a correr entre empregos, contando moedas para pagar as contas. Esse é o problema de viver em uma bolha, a gente não sabe o que acontece fora dela, e quando ela estoura, não nos preparamos para encarar a nova realidade.
Mas era isso ou acabar sem ter onde morar.
Entro no ônibus cheio e me equilibro em pé, entre dezenas de outros corpos tão cansados quanto o meu. Sinto falta de ter um motorista particular, um closet cheio de itens de luxo e das viagens internacionais em aviões privativos. Agora, sinônimo de felicidade é pagar a conta de luz antes do vencimento.
Descobri da pior maneira possível que o que a humanidade chama de evolução, na verdade, é uma dependência extrema. Eu nunca mais quero voltar a ficar sem energia elétrica na vida.
Pensar nessas coisas me dá dor de cabeça. As lembranças são exaustivas, frustrantes, e não me levam a lugar nenhum. Meu pai perdeu tudo o que tinha e precisei ser forte, já que minha mãe nos abandonou e agora está casada com outro rico por aí.
E o pior: precisei ser forte sozinha. Até meu relacionamento foi perdido no meio de toda essa bagunça. Tinham tantas coisas acontecendo que não tive tempo sequer de sofrer pelo término. Às vezes penso que foi melhor assim, já que pelo que vi, meu ex-namorado seguiu em frente bem rápido.
Minha boca adquire um gosto amargo e me torno ciente da pressão que coloco em meus dentes, agravando minha dor de cabeça. Tento relaxar os músculos, massagear as bochechas e, principalmente, afastar os pensamentos.
O ônibus faz uma curva brusca e quase caio no chão, preciso me segurar em um senhor que me olha feio. Peço desculpas e me endireito, colocando toda a força que ainda tenho nas pernas para me equilibrar.
Quando finalmente desço no bairro simples onde moro agora, uma mão firme aperta meu braço, fazendo um arrepio percorrer minha espinha. Meu instinto de sobrevivência me compele a fugir, mas minhas pernas fraquejam.
— Isabella, Isabella. Tá cada vez mais difícil falar com você.
Reconheço o tom grave da ameaça e respiro fundo.
— Desculpa, ando muito ocupada trabalhando, como você sabe…
— Sei, claro que sei. — Ouço o sorriso em sua voz antes que ele puxe meu braço, me virando em sua direção. — Mas sua dívida não vai sumir, mesmo que você suma, como você sabe…
Odeio seu tom ameaçador e odeio a situação em que me coloquei, mas não tenho muito o que fazer agora que já estou atolada até o pescoço.
— Deixa que eu te acompanho até em casa — ele diz e só então me solta. Mas não se move até que eu dê o primeiro passo.
— Não precisa — tento me esquivar.
— É tarde pra uma moça tão bonita estar andando sozinha na rua — ele insiste, achando graça do meu esforço ingênuo.
A verdade é que se tem alguma pessoa disposta a evitar que algo aconteça comigo, essa pessoa é Roberto.
Dou um passo hesitante e ele me acompanha.
— Sabe, atualizei o valor — diz casualmente. Uma sensação ruim se aloja no meu estômago. — Com juros e reajustes, estamos em cento e trinta mil reais.
Meu coração quase rompe o peito e cai no chão, tamanha força com que b**e.
— Isso é impossível, a gente já tinha renegociado.
— Senhorita Mendes… — ele finge um tom profissional que não me engana. É deboche e desprezo puros. Ele odeia esse sobrenome e odeia quem eu sou. — Nossos registros indicam que nenhum pagamento foi realizado nos últimos 12 meses. Caso o valor não seja quitado até o final do mês, tomarei as medidas cabíveis.
Minhas narinas e olhos começam a arder. Me sinto nauseada e preciso parar de andar antes de implorar com a voz embargada.
— Preciso de mais tempo, Roberto.
— Seu tempo acabou, Isabella.
Sem cerimônia, ele arranca a bolsa que carrego no ombro, vasculhando tudo o que pode e enfiando no bolso os trocados que consegui de gorjeta.
— Isso não paga a dívida — tento dissuadi-lo.
— Alguma coisa você vai ter que pagar. — Ele empurra a bolsa na minha direção, contra meu peito. — Talvez eu tenha escolhido mal as minhas garantias, quem sabe eu suba no seu apartamento e leve a televisão também, ou seu querido pai.
— Não! Por favor, eu vou pagar.
— Claro que vai, Isabella, mas é no meu tempo e não no seu. Tic. Tac.
Tremo tanto que nem sei como consigo subir as escadas.
— Pai? Cheguei. — Tento forçar uma simpatia na voz, uma falsa felicidade por estar de volta nesse muquifo apertado e mofado.
Como se fosse uma recompensa chegar em casa e encontrar meu pai, que nem levantou do sofá o dia inteiro. É como se já fossem uma coisa só, fundidas num ranço de depressão e descaso.
Sinto a culpa me consumir quando penso nisso e me repreendo mentalmente.
— Você comeu alguma coisa? — pergunto, tirando os sapatos perto da porta.
Nada.
Solto um suspiro cansado, aprendi a me acostumar com seu silêncio. Quase não me lembro mais do homem forte que ele costumava ser, um líder nato. O que me sobrou foi um homem pálido, apático, uma versão desgastada do homem que eu admirava, do pai que me mimava.
Acho que a última vez que ele falou alguma coisa foi há duas semanas atrás, quando o zelador bateu na nossa porta dizendo que tinha correspondência para Jorge Mendes, e ele murmurou que o nome Mendes não significava mais nada.
No começo, eu tentava convencê-lo do contrário, nosso sobrenome significava que éramos fortes, que iriamos reconquistar o que era nosso, mas a esperança morreu. Se um dia nosso sobrenome abria portas, agora ele parece fechá-las na nossa cara.
Abro a geladeira e vejo a marmita que tirei para ele ali ainda, intacta.
Só coloco a comida quente na frente dele e me sento ao seu lado. Quando vou pegar o controle no centro da mesa, para procurar outro canal, percebo um papel que não estava ali quando eu saí pela manhã.
Não preciso pegar para ler com atenção, as palavras se destacam mesmo a distância “notificação de despejo”.
Engulo em seco e me forço a ignorar mais esse problema. Dou uma garfada só para constatar que perdi a fome. A vontade é arremessar o pote contra a parede, mas não posso me dar o luxo de desperdiçar nenhuma refeição.
— Quer beber alguma coisa, pai? Posso passar um café ou fazer um chá. — Ofereço mais para me distrair. Eu queria mesmo é uma garrafa de vinho, dispensava até a taça.
Ele pisca e desvia o olhar da tela, focando em mim pela primeira vez em… sei lá. Meses?
Tem algo estranho em seu olhar. Ainda pior do que o vazio que costumo encontrar.
— Desculpe. — Sua voz rouca parece partida.
Só então percebo algo caído perto de seus chinelos. Uma embalagem de remédios.
Um soluço comprime meu peito e as lágrimas só deslizam.
— Pai? O que você fez?
Eu ainda guardava algum resquício de esperança de que um dia ele olharia para mim pronto para sacudir a poeira e dar a volta por cima.
Nós tínhamos sido vítimas de um golpe, eu cansei de tentar convencê-lo a enxergar isso. Ele sabe melhor do que eu o que diziam as letras miúdas antes de assinar aquela fusão, talvez tenha sido mesmo irresponsabilidade sua. Até eu conhecia o homem por trás disso, ele sempre foi famoso por sua forma agressiva de expandir a empresa.
Ninguém é demitido e perde toda a participação na própria empresa assim, jogando limpo e fazendo seu trabalho.
Talvez meu pai esteja fazendo isso por culpa. Mas o culpado dessa história não é meu pai, e sim Alberto Vasconcellos, o avô do meu ex-namorado.