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 A Casa de Caça

Acordei com o som abafado dos galos e o cheiro de café atravessando as frestas de madeira.

 O teto baixo, as paredes revestidas de pinho e o ranger da cama me lembraram de imediato: 

Eu não estava em um hotel, nem na casa principal de uma fazenda, mas em algo muito mais rústico. 

Respirei fundo, abraçando Laura ainda sonolenta contra o peito, e olhei ao redor.

A casa era pequena, menor do que eu imaginara quando Henry disse que morava ali. 

Havia apenas dois quartos, uma sala com lareira de pedra e uma cozinha simples, equipada com fogão a lenha e prateleiras de madeira cheias de panelas antigas.

 Nada de eletrodomésticos brilhantes, nada de luxo.

 Era como se o tempo tivesse parado.

Levantei devagar, ajeitei a bebê no carrinho improvisado ao lado da cama e fui até a janela.

 Do lado de fora, o sol nascia tímido sobre o campo verde. 

A vista era bonita, mas o silêncio me deixou inquieta. 

É aqui que ele mora? 

Sozinho?

— Bom dia.  A voz grave veio da porta do quarto, e eu me sobressaltei. 

Henry estava encostado no batente, camisa xadrez aberta no peito, cabelo desgrenhado.

 Tinha aquela postura de quem parece sempre pronto para um embate, mesmo com os olhos semicerrados de sono.

— Bom dia. Murmurei, ainda sem acreditar que alguém como ele, com aquele ar seguro e orgulhoso, pudesse viver em um lugar tão modesto. 

— Então é aqui que você mora?

Um sorriso curto surgiu em seus lábios. 

— É.  Esse é o meu canto. 

—Não tem luxo, mas tem paz!

Olhei para as paredes nuas, para as marcas de tempo nos móveis, e não pude deixar de soltar: 

— Parece mais uma casa de caça do que uma residência.

Ele arqueou a sobrancelha. 

— E quem disse que não é? Respondeu, como se quisesse encerrar o assunto.

Não insisti. 

Havia algo no tom dele que me fez perceber: 

Henry não queria que eu perguntasse mais.

Na cozinha, o fogo já ardia no fogão a lenha, espalhando o cheiro de fumaça pelo ar. 

Ele mexia uma chaleira com naturalidade, como se tivesse nascido para viver daquele jeito. Eu, por outro lado, mal sabia como acender uma chama sem gás.

— Café? Perguntou, servindo uma caneca grossa de barro.

Aceitei, soprando o líquido escuro antes de provar.

 Era forte, quase amargo, mas aquecia por dentro.

 Laura ainda dormia, e por um instante senti que aquela cena, eu, ele, o silêncio tinha algo de íntimo demais.

— Então, como funciona? Perguntei, tentando quebrar a tensão. 

— Quero dizer, a vida aqui. Quais são minhas obrigações?

Ele me olhou demoradamente, como se saboreasse a pergunta. 

—Fora ser a senhora Henry Russell?

— Aqui tudo é simples, Letícia. Você vai aprender a lidar com as galinhas, colher ovos, cuidar da horta. 

—Também vai ter que se acostumar com o fogão a lenha, porque é o que temos.

Meu estômago se revirou só de imaginar. 

— Isso parece medieval.

Ele riu, um riso baixo que soou mais como zombaria. 

— Medieval, não. Rural. Você agora é minha mulher, lembra-se Letícia, vai ter que se adaptar.

—O que é meu é seu, e o que é seu é meu!

—Vamos cuidar um do outro!

Engoli em seco. Parte de mim queria recusar, mas outra parte se inflamava diante do desafio. 

— Então me ensine. Disse firme.

O olhar dele brilhou por um instante, e eu percebi que gostava da minha ousadia.

—Mas Henry, para essa outra parte…

—Essa outra parte mais íntima você vai me dar um tempo para me adaptar a você?

—Eu nem te conheço direito…

Concordo contigo Letícia, más não será um tempo longo demais. Tenha certeza disso!

Mais tarde, apareceu um homem.

 Era  alto, de pele morena, sotaque carregado e sorriso largo.

 Diferente de Henry, tinha um jeito acolhedor, quase fraternal. Chamado Juan Lopes

— Pa… 

Começou ele, mas foi interrompido por um olhar duro de Henry.

— Juan, aqui não. A voz de Henry cortou como faca. 

— Lembra do combinado.

Percebi o clima estranho e franzi o cenho. 

—Combinado?

— Nada que te interesse. Respondeu Henry rápido demais, virando-se para mim. 

— Este é Juan, meu braço direito. Ele cuida das coisas quando eu não posso.

Juan coçou a nuca, sem jeito. 

— Seja bem-vinda, senhora.

— Só Letícia — corrigi, tentando aliviar a tensão.

Henry puxou o amigo de lado e cochichou algo que não consegui ouvir. 

Mais tarde, descobriria que ali ele lhe dera a ordem mais importante: 

Ninguém deveria me contar que ele era o verdadeiro dono da fazenda. Para mim, Henry era apenas o capataz responsável pela terra.

Na hora do almoço, descobri minha primeira dificuldade:

O fogão a lenha. Henry insistiu que eu tentasse sozinha.

 Coloquei lenha, tentei acender, mas o fogo só fez soltar fumaça grossa que me fez tossir e lacrimejar.

— Está rindo de mim? Perguntei, irritada ao ver o sorriso mal contido no rosto dele.

— Um pouco. Admitiu, cruzando os braços. 

— Você parece uma gata assustada com as próprias chamas.

Bufei, jogando um pedaço de lenha de qualquer jeito. 

— Isso não tem lógica nenhuma! 

—Na cidade basta girar um botão.

— Pois aqui você gira a paciência. Respondeu, acendendo com dois movimentos rápidos e eficazes. 

— Observa, aprende e repete.

Fiquei em silêncio, mordendo o lábio. 

O pior não era falhar, mas sim sentir o olhar divertido dele sobre mim, como se cada erro fosse parte de um jogo que só ele conhecia.

No fim, ele preparou um ensopado rústico, servido em pratos de barro. 

O sabor era simples, mas intenso, e eu me peguei pensando que talvez não fosse tão ruim viver daquele jeito… 

Se não fosse pelo meu orgulho ferido.

No fim da tarde, Juan voltou e Henry saiu com ele para a varanda.

— Os empregados perguntaram por você, Henry. 

—Estão estranhando o porquê de você ficar  aqui na casa de caça.

— Diga a eles que é daqui que vou coordenar agora. 

—E que não quero ninguém comentando sobre minha vida passada. 

— A voz dele foi seca, quase um aviso.

Juan assentiu, mas não resistiu em comentar: 

— As mulheres andam cochichando. 

—Dizem que a moça da cidade não vai aguentar uma semana.

Eu me aproximei com duas canecas com café e eu queria ser simpática com o amigo de Henry, afinal agora sou sua esposa e estou recebendo seu amigo.

Porém meu rosto queimou quando ouvi as palavras de Juan. 

— Eu estou ouvindo, sabia?

Henry sorriu de canto. 

— Melhor que ouça!

—Assim você prova para elas que elas estão erradas.

Senti a raiva me subir pelas veias. 

— Eu não preciso provar nada para você, nem para essas mulheres!

Ele se inclinou devagar, os olhos fixos nos meus. 

— Então prove para você mesma, Letícia.

As palavras me atingiram mais fundo do que eu queria admitir.

Naquela noite, sentei-me na varanda com Laura no colo, observando o céu estrelado.

 O campo tinha um silêncio que não era vazio, mas cheio de sons ocultos: 

Grilos, vento, galhos se movendo.

Henry estava ao meu lado, encostado na parede, em silêncio. 

Eu sentia sua presença como um peso e, ao mesmo tempo, como um abrigo.

— Por que aqui? Perguntei, quebrando o silêncio. 

— Por que viver numa casa de caça quando poderia estar em qualquer lugar?

Ele demorou a responder. 

— Porque aqui eu não preciso de mais nada.

A resposta soou simples, mas eu sabia que escondia algo maior. 

Eu sentia! Mas também percebia que, naquele jogo de omissões e provocações, eu estava entrando cada vez mais fundo.

E ali, entre a fumaça do fogão e as estrelas, compreendi que aquela adaptação não seria apenas uma luta contra galinhas ou chamas de lenha. 

Seria contra mim mesma  e contra o homem que, com cada riso debochado, me desarmava mais do que qualquer desafio.

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