"Aurora… você sabe o que é coragem?"
A pergunta ecoa na minha memória como se tivesse sido feita ontem. Eu devia ter uns sete anos, sentada no colo do meu pai, enquanto ele fechava a caixa de ferramentas. O cheiro de graxa e madeira, misturado ao café da minha mãe, ainda era tão vivo que eu podia jurar sentir agora.
— É quando a gente não tem medo? — respondi na época, balançando as pernas no ar.
Ele sorriu de canto, aquele sorriso que dizia que eu estava quase lá.
— Não, minha menina… é quando a gente tem medo, mas enfrenta mesmo assim.
Eu me lembro de como ele passou a mão pelos meus cabelos e olhou fixo nos meus olhos, como se quisesse gravar aquelas palavras no meu coração.
— Um dia, você vai precisar ser corajosa… mais do que acha que consegue. E, quando isso acontecer, lembre-se: você nunca está realmente sozinha.
A lembrança some como fumaça quando volto ao presente.
— Aurora… a gente precisa começar agora.
— Por quê? Por que você não me disse nada? — pergunto à Sofia.
Ela continuava a chorar e respondeu com a voz embargada:
— Eu não podia… eu prometi pra ele!
Soltei uma risada sem humor.
— Você prometeu? E pra quê essa promessa serviu? Ele está morto, Sofia. O pai está morto! — grito. — E agora a nossa casa… a nossa casa… ela…
— E o que você iria fazer? Vender um órgão, por acaso? — ela rebateu.
— Eu teria! Se fosse necessário, eu teria feito qualquer coisa! — minhas lágrimas caíram sem eu perceber. Normalmente, Margo diria algo para acalmar, mas dessa vez ela estava tão abalada quanto nós, apenas observando com lágrimas nos olhos.
— Foi por isso que a gente não contou… porque você está cansada e não está bem! — Sofia gritou, e as lágrimas dela caíam ainda mais forte, em meio às confissões. — Você acha que a gente não sabe que, depois do jantar, você espera alguns minutos e sai às escondidas? E que volta às três da manhã só para acordar às cinco para ir atrás de qualquer trabalho?
Ela respirou fundo e continuou, a voz se quebrando:
— O pai queria fazer mais… e eu também. Mas eu não posso, porque sou inútil! Eu não passo uma semana sem o meu coração falhar…
— Sofia, você não é… — eu e Margo começamos a falar, mas ela nos interrompeu.
— Não, eu não sou! Até ela nos abandonou e preferiu morrer fora de casa por minha culpa! Ela preferiu isso a continuar comigo! — seus olhos estavam vermelhos, as lágrimas incessantes. — Por que você não faz o mesmo, hein? Por quê?
— Porque eu amo você! Eu daria a minha vida por você! — caminhei até ela, colocando minhas mãos em cada lado do seu rosto. — Você é minha vida, Sofia. Eu amo muito você e não sou aquela mulher… eu não vou te abandonar, tá me ouvindo?
Normalmente, ela não é assim. Sofia sempre foi forte, determinada, nunca se rebaixou.
Puxei-a para um abraço e chamei Margo para se juntar a nós. Eu não tenho mais nada… já perdi o meu pai e agora a casa dele. Eu não vou perder o que me resta.
— Aurora, já não temos tempo… temos que começar a arrumar as coisas — Margo disse, depois de ficarmos alguns minutos abraçadas e de nos acalmarmos.
Olhei ao redor. Cada parede, cada móvel, cada objeto parecia preso a uma lembrança: o riso do meu pai na sala de jantar, as conversas longas, o barulho do rádio antigo. Era como se, ao tocar nas coisas, eu arrancasse pedaços de mim mesma.
Peguei uma caixa de papelão e comecei a colocar livros, fotos, pequenas lembranças. Meus dedos tremiam. Sofia veio até mim, ainda chorando.
— Eu sinto muito… — ela sussurrou. — Eu devia ter te contado.
Eu a abracei, apertando forte.
— A gente não tem tempo pra culpa agora. Já passou… só vamos juntas.
Os minutos correram como se estivessem zombando de nós. Cada gaveta que eu abria parecia um último adeus. Encontrei coisas da minha mãe que o pai guardava… ele não tinha se livrado de tudo.
Quando a última caixa foi fechada, olhei para a casa uma última vez. Era como abandonar um corpo sem alma.
Victor reapareceu na porta, conferindo o relógio.
— Bom, pelo menos vocês sabem seguir ordens — disse, encostando-se no batente. — Agora, rua.
Saímos, cada uma carregando o pouco que conseguimos salvar. Ele ficou parado na porta, como um vulto satisfeito, até que atravessamos a rua.
Eu não olhei para trás. Não queria ver a casa do meu pai desaparecendo da minha vida. Ficamos ali paradas, três figuras no meio da calçada, como náufragas em terra firme. O som distante de crianças brincando parecia pertencer a um mundo completamente diferente do nosso.
O ar da rua parecia mais frio do que antes, mesmo com o sol ainda queimando. A caixa que eu carregava parecia pesar toneladas, não pelo peso real, mas pelo que ela representava: tudo o que restou da nossa vida anterior cabia ali dentro.
Sofia vinha ao meu lado, arrastando uma mala velha que soltava um zumbido metálico a cada passo. Margo andava na frente, como se quisesse esconder a expressão de raiva que dominava seu rosto.
De repente, senti um arrepio. Olhei para trás e vi Victor encostado no portão da casa, fumando um cigarro, o olhar fixo em nós. Ele não sorria agora. Apenas observava, como um predador garantindo que a presa estava indo embora.
— Vamos embora daqui — falei, quase num sussurro.
Margo disse que iríamos ficar na casa dela. Pegamos o primeiro ônibus que passou. Era importante colocar o máximo de distância possível entre nós e aquele homem.
O balanço do ônibus misturava-se ao cansaço. Olhei para Sofia, que tinha adormecido encostada na mala, e para Margo, que fitava a janela com um olhar vazio.
Nem que para isso eu tivesse que fazer coisas que nunca imaginei ser capaz.
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O ônibus avançava lentamente pela cidade, sacolejando a cada buraco.
O som dos freios rangendo parecia ecoar dentro da minha cabeça já cansada.
Sofia ainda dormia, mas o rosto dela estava pálido demais.
Não era o cansaço habitual… algo estava errado.
— Margo… olha pra Sofia — murmurei.
Ela se virou e, por um segundo, o rosto endurecido se quebrou em preocupação.
— Aurora, ela está suando frio.
Toquei sua testa: quente demais.
Mas o corpo… tremia como se estivesse no inverno mais cruel.
— Sofia, acorda… — chamei baixo, mas ela apenas gemeu, com os lábios secos.
O coração dela batia rápido demais, como se quisesse fugir do peito.
— Isso não é só nervoso — Margo disse, já se levantando. — A gente precisa descer agora.
Apertei o botão de parada e, assim que o ônibus encostou, ajudamos Sofia a se apoiar.
O sol bateu no rosto dela, mas parecia que a luz só a deixava mais fraca.
Sofy, tá tudo bem? — perguntei, tentando esconder o pânico na minha voz.
Ela levou a mão ao peito, respirando com dificuldade.
— Eu… não… consigo… — as palavras saíram entrecortadas, e o suor já brilhava em sua testa.
Larguei a mala no chão.
— Margo, segura ela! — gritei.
Margo a apoiou, mas Sofia parecia perder as forças, os joelhos cedendo sob o peso do próprio corpo.
— Sofy, onde estão os seus remédios? — revirei a mochila dela, mas os frascos estavam vazios.
Olhei para Margo e engoli em seco. Ela tentava manter Sofia acordada, balançando-a levemente.
— Margo, não… — minha voz falhou. Meu Deus, o que eu vou fazer?
— Não… não quero ir pro hospital… — ela sussurrou, a voz tão fraca que mal consegui ouvir. — A conta… vocês não podem pagar…
Ajoelhei-me na calçada, segurando a mão dela.
— Cala a boca com isso. Não é hora de pensar em dinheiro.
Minha mente gritava que eu não podia perder mais ninguém. Foi então que me lembrei… o cartão preto, guardado na minha bolsa.
Eu não queria fazer esse contato — tinha prometido a mim mesma que nunca pediria nada a ele.
Mas agora, o que importava era salvar minha irmã.
Peguei o celular com as mãos trêmulas, afastei-me alguns passos das meninas, tirei o cartão e disquei o número. Apertei “ligar”.
Cada toque de chamada parecia durar horas.
— Alô? — a voz dele soou surpresa, mas logo ficou séria.
— Eu aceito, tá? — disparei. — Eu vou me casar com você… só salva ela.
— O que aconteceu? — a pergunta veio rápida.
— É a Sofia… — engoli o choro. — Ela está mal. Muito mal.
Silêncio por alguns segundos. Então, sua voz firme:
— Me diga onde vocês estão. Agora.
Olhei para Margo, que segurava Sofia no colo, e percebi que não tínhamos outra escolha. Pela minha irmã, eu faria qualquer coisa.
— Na esquina da Rua das Palmeiras com a Joaquim Cardoso.
— Fiquem aí. Não se mexam. — E desligou.
Guardei o celular, o peso da decisão afundando no meu peito. Eu tinha acabado de atravessar uma linha da qual não havia volta.