A chuva engrossava quando desci do carro segurando o bolo com as duas mãos, tentando proteger a caixa do vento e das gotas impiedosas. O guarda-chuva, preso entre o ombro e o queixo, ameaçava voar a cada passo, mas eu me recusava a deixar qualquer coisa estragar a noite. Era aniversário do Henrique, e mesmo com a cidade inteira desmoronando sob um temporal, eu queria que ele se sentisse celebrado.
Tinha saído do trabalho mais cedo do trabalho. Houve um funeral. O herdeiro do presidente da empresa havia falecido. Aproveitei, de um jeito meio egoísta, para celebrar a vida do meu namorado, o que era irônico e trágico ao mesmo tempo. O plano era simples: bolo de chocolate com recheio de brigadeiro, o favorito dele; uma camisa social azul-marinho com uma gravata combinando — tudo bem dobrado na sacola da loja — e algumas bexigas que eu pretendia encher antes que ele chegasse. Nos últimos meses, a vida andava difícil. Henrique perdeu o emprego e dizia que o mercado estava cruel, que ninguém queria contratar alguém “com o perfil dele”. Eu tentava não deixar o desânimo dele me contagiar. Repetia para mim mesma que era só uma fase. Afinal, vivíamos juntos há três anos. E não era esse o propósito do amor? Ser refúgio. Segurar a onda. Ajudar a remar quando o outro cansasse. Ele sempre dizia que, assim que estivéssemos mais estáveis, me pediria em casamento. Então eu continuei acreditando. Investi no nosso apartamento — meu apartamento — com a certeza de que estávamos construindo algo juntos. Assim que cheguei ao prédio, ainda tentando não deixar o bolo despencar do meu colo enquanto apertava o elevador, sorri com a expectativa de surpreendê-lo. A essa hora, ele provavelmente ainda estaria na academia ou no barzinho com os amigos. Tinha tempo de encher as bexigas, acender uma vela e preparar o quarto com as velas perfumadas. A intenção era clara: termos uma noite romântica. Assim que abri a porta do apartamento, senti o cheiro. Não era meu perfume. Tampouco o de Henrique. Era algo doce e enjoativo, uma fragrância que parecia artificial demais, como se estivesse tentando forçar alguma coisa. Fechei a porta devagar. O silêncio da casa, por um segundo, me pareceu cúmplice. Caminhei devagar até o corredor, os sapatos molhados faziam pequenos ruídos contra o piso. Meu coração acelerou, primeiro pela desconfiança, depois pelo som. Um barulho abafado vindo do quarto. Risos? Vozes? Apertei a caixa do bolo contra o peito. A maçaneta girou sob minha mão molhada. E então, abri a porta. Henrique estava nu. Nu, com uma mulher loira montada sobre ele, como se estivessem em plena celebração. A garota me olhou com um susto teatral. Nada nela parecia real: o cabelo excessivamente loiro, o bronzeado artificial, o corpo montado como se tivesse saído de um catálogo — tudo plástico e vulgar. O bolo caiu no chão, como se ele fosse apenas um intruso naquele momento. — Filho da p...! — gritei, sem pensar, sentindo meu sangue ferver de um jeito que nunca havia sentido antes. Henrique tentou cobrir a garota com o lençol, com os olhos arregalados, mas não disse nada. Eu avancei. — Sua vagabunda! — rosnei, indo na direção dela. — O que você faz na minha cama? A garota se encolheu atrás dele, como se estivesse no direito de se proteger, como se fosse a vítima. — Para, Isa! — ele disse, erguendo as mãos. — Para com isso! — Isso? Você chama isso de “isso”? — gritei. — Você tá transando com outra mulher na nossa cama! — Calma. Vamos conversar. — Ele começou a levantar, procurando uma cueca que não achava. — Não é bem assim... — Saia do meu apartamento. Os dois. Agora. Henrique hesitou. Olhou para a mulher, depois para mim, como se não entendesse o que eu estava pedindo. — Eu... eu não vou sair. — Como é? — Minha voz ficou aguda, trêmula. — Você... você está me dizendo que não vai sair do meu apartamento? É isso? Ele me encarou com uma calma perturbadora. — Isa, esse apartamento é meu. Você passou ele pro meu nome. Você assinou os papéis, lembra? Fiquei muda por um segundo. — Você tá delirando? Eu nunca faria isso. Ele deu um passo à frente, pegou uma camiseta no chão. — Aqueles papéis que você assinou... eu disse que eram pra abrir aquela startup. Você não leu. Só assinou. Minha cabeça começou a girar. Eu assinei. Uma pilha enorme. Ele disse que era uma formalidade, que precisava de crédito, que queria empreender. E eu, como uma idiota apaixonada, quis acreditar, apoiar. Quis ajudar o homem com quem eu pretendia casar. — Você me enganou... — minha voz saiu quase num sussurro. — Você me enganou, Henrique. — Foi só uma transferência. A gente ia casar de qualquer forma... — CALA A BOCA! — gritei. A raiva tomou conta, mais forte do que qualquer dor. — Eu vou contratar o melhor advogado que existir nesse país e vou tirar você daqui, nem que eu tenha que vender minha alma! Ele me olhou com o mesmo olhar de sempre — frio, calculista, como se estivesse sempre um passo à frente. Não esperei mais. Peguei minha bolsa, minha dignidade em pedaços, e saí batendo a porta, pisando nos restos do bolo que se esparramaram pelo chão como se fizessem parte do estrago. Chovia ainda mais forte quando cheguei à rua. E eu chorei junto. Não sabia para onde ir, só sabia que precisava sair dali. Que precisava respirar longe daquilo tudo. Eu não tinha mais casa. Não tinha mais amor. E não sabia se ainda tinha a mim mesma. A chuva sussurrava no para-brisa, insistente, sem sinal de trégua. Liguei os limpadores, mas parecia inútil: meus olhos viam tudo embaçado, não pela água, mas pelas lágrimas que não paravam de cair. Eu dirigia sem rumo, sem destino. Só queria fugir. Do cheiro daquele quarto. Da imagem da traição. Da dor que latejava no fundo do peito como uma faca cravada e girando. Minha respiração vinha aos trancos. Eu soluçava, afogada na própria raiva. Gritei dentro do carro, sozinha, como uma tentativa tola de desabafar com o vazio. Só que o vazio não responde. O vazio apenas ecoa o que você perdeu. Quando saí da avenida principal, tudo pareceu ainda mais confuso. Luzes piscavam, o asfalto refletia o vermelho dos faróis e o amarelo dos semáforos como uma pintura borrada. E então, aconteceu. Um vulto. Um corpo. Um impacto que me fez frear com tudo.