— Capítulo 2 —
A manhã principiou com a casa já desperta antes dela. Criados circulavam como se fossem parte da própria arquitetura: passos contidos sobre o piso encerado, portas que se abriam na hora exata, bandejas que surgiam como se viessem do nada. O cheiro de café recém-passado misturava-se ao polimento da madeira e ao ferro quente das prensas que alisavam roupas em algum aposento distante. Magnólia desceu as escadas de madeira polida com a serenidade de quem aprendera, desde criança, que cada degrau também era uma prova de postura. O corrimão frio sob os dedos, o som ritmado dos passos, tudo lhe lembrava que até o gesto mais simples precisava ser elegante. Na sala de refeições encontrou o pai, Arthur, mergulhado nas notícias da capital. Segurava o jornal aberto, mas os olhos não pareciam ler: acompanhavam as colunas como quem pesa cifras invisíveis. O cenho contraído e os dedos batendo na mesa denunciavam cálculos silenciosos. Giovanna estava ao lado, com o porte rígido de quem governa mais que uma mesa: cada detalhe parecia submetido ao seu olhar. Antes de se dirigir à filha, corrigiu o ângulo de um guardanapo, afastou ligeiramente um prato, ajeitou a posição do pão na cesta. Como se até os objetos precisassem dar provas de decoro. — Dormiu bem, minha filha? — perguntou, num tom que soava mais ritual que afeto, como se a pergunta fosse parte da etiqueta tanto quanto a porcelana alinhada. — Sim, mamãe. — respondeu Magnólia, no tom neutro que lhe saía sem esforço, sempre educado. Arthur pigarreou, dobrando levemente o jornal. — As notícias de Roma não são animadoras. Famílias de nome têm enfrentado dificuldades. Giovanna lançou-lhe um olhar breve, como quem pede que o assunto espere. Arthur, porém, prosseguiu, o timbre mais grave do que o habitual. — Ontem falaram dos Ricci. Hoje, dos Tornabuoni. Há ecos de grandeza, mas ecos não pagam credores. O silêncio que se seguiu pareceu mais pesado que a porcelana sobre a mesa. Magnólia pousou a colher devagar, mantendo o gesto contínuo, como se nada a tivesse interrompido. O sobrenome soou diferente em seus ouvidos — talvez pela firmeza com que o pai o dissera, talvez apenas pelo modo como as sílabas se encadearam. Não era um nome familiar a ela, mas ficou suspenso em sua lembrança, como uma palavra que pede para ser repetida em silêncio. Giovanna endireitou-se na cadeira, o olhar firme no marido. — Negócios não são assunto de mesa, Arthur. Ainda mais diante da nossa filha. Arthur sorriu de lado, dobrando o jornal. — Negócios são sempre assunto, Giovanna. Ainda mais quando famílias antigas começam a ruir. É nesses momentos que se vê quem construiu com pedra sólida e quem se contentou com ornamentos de gesso. Ela ergueu o queixo, impaciente. — E você prefere pesar escombros em vez de apreciar o pão da manhã? Arthur deixou escapar uma risada breve e passou a outro assunto qualquer. Magnólia, no entanto, guardou aquele nome no canto da memória. Não sabia por quê. Talvez por soar imponente, talvez porque seu pai raramente dizia palavras em vão. As horas seguintes obedeceram ao compasso conhecido, mas Magnólia percebia agora as fissuras na superfície da ordem. O piano preencheu o salão com escalas exatas. Cada tecla soava nítida, mas ecoava pelo corredor até o gabinete do pai. Magnólia imaginava se Arthur, por trás do jornal, estaria contando cifras ao ritmo da sua música. A cada erro — raros, mas inevitáveis — sentia o rubor subir-lhe às faces, mesmo estando sozinha. A vergonha era automática, tão treinada quanto os próprios dedos. Na leitura em voz baixa, treinava a respiração e o tom, como se estivesse ensaiando para uma plateia invisível. As palavras de Flaubert soavam corretas, mas inofensivas. No fundo, desejava os versos proibidos de Baudelaire, que ouvira mencionados em um sarau e nunca tivera em mãos. A vontade de ler algo que não fosse aprovado pela mãe surgia como uma febre discreta, mas logo recuava diante da lembrança do olhar severo de Giovanna. Na despensa, a disciplina repetia-se. Giovanna enumerava cada item com a precisão de quem comanda um inventário militar. — Quatro garrafas de azeite. Duas de reserva. Repare sempre nos selos, Magnólia. — dizia, passando o dedo pela cera como se testasse a obediência da filha tanto quanto a qualidade do produto. Quando a jovem se inclinou para anotar, a mãe lhe tocou o ombro, corrigindo-lhe a postura. — Coluna ereta, sempre. Magnólia obedeceu, mas por dentro sentia o peso da repetição. Quantas vezes ainda contaria garrafas, dobraria guardanapos, treinaria notas sem melodia? Cada gesto cumprido parecia erguer uma muralha invisível ao redor dela. E, no entanto, havia algo dentro que insistia em pulsar, pedindo passagem. No quarto, ao trocar de vestido, Magnólia demorou-se diante do espelho mais do que o necessário. Observou-se não como filha ou futura esposa, mas como mulher. A pele clara, os traços finos, o verde dos olhos que parecia mudar conforme a luz — tudo lhe devolvia uma imagem que ela própria ainda aprendia a decifrar. Passou a escova nos cabelos lentamente. Cada deslizar das cerdas na nuca provocava-lhe um arrepio inesperado, como se fosse um gesto íntimo demais para ser público. Fechou os olhos e deixou que aquela sensação lhe percorresse a espinha até o fundo do ventre. O tecido da anágua roçou-lhe a coxa quando se moveu, e o corpete, ajustado demais, marcava-lhe o seio com insistência. A pressão era incômoda e, ao mesmo tempo, despertava uma doçura quente, que subia pelo peito e se espalhava pelo rosto em um rubor contido. Sentou-se na beira da cama, o corpo ainda tenso, e permitiu-se afrouxar as amarras invisíveis da disciplina. A mão percorreu devagar o braço, o ombro, o colo. Ao pousar sobre o próprio seio, fê-lo com a delicadeza de quem tateia um segredo, não com ousadia. Sentiu o coração acelerar contra a palma e a boca umedecer como se pedisse palavra. A vertigem foi breve, mas intensa. Magnólia conteve-se antes de se perder. Abriu os olhos, fitou-se de novo no espelho e viu as duas que habitavam ali: a moça treinada para a perfeição e a mulher que, em silêncio, descobria seus próprios desejos. Sorriu, cúmplice de si mesma, antes de se recompor. O vestido voltou a cair no lugar, a postura a se firmar, como se nada tivesse acontecido. À tarde, Giovanna pediu-lhe companhia para uma visita breve a uma tia distante. A carruagem aguardava diante da casa, com os cavalos impacientes, bufando pequenas nuvens no ar frio. Magnólia acomodou-se ao lado da mãe, coluna ereta, mãos enluvadas repousando no colo. O veículo partiu com um solavanco suave, e o balanço regular a fez sentir o corpo acompanhar um compasso diferente do da disciplina. A cada curva, a anágua roçava-lhe a pele, lembrando-a, em segredo, do corpo que existia para além das regras. Giovanna ajeitou as luvas, sem desviar os olhos da rua. — Sempre olhe para fora com discrição, minha filha. Uma dama observa, mas não se deixa observar. — Sim, mamãe. — respondeu Magnólia, em voz baixa, enquanto a mente corria em outra direção. Pelas janelas, Florença parecia calma e, ao mesmo tempo, cheia de histórias ocultas. Homens fumavam à porta das tavernas, mulheres conversavam em sussurros diante das lojas, crianças corriam descalças pelas vielas mais estreitas. A cidade revelava rostos que nunca entrariam em sua casa, mas que, ainda assim, guardavam vidas inteiras. Magnólia pensou, em silêncio, quantos olhares poderiam ser devolvidos, quantos segredos poderiam nascer de um gesto pequeno. O vento frio entrou pela abertura da janela, tocando-lhe os cabelos soltos perto da nuca, e a fez estremecer. Giovanna, sem notar o motivo do arrepio, ajeitou o xale da filha sobre os ombros. — A elegância também está em não deixar o corpo falar demais. Magnólia assentiu, mantendo o sorriso leve. Mas, por dentro, guardava aquele instante como se tivesse descoberto uma linguagem só dela — uma que não se escrevia em etiquetas, mas no calor secreto da própria pele. Quando retornaram, Arthur estava em seu gabinete. As cortinas filtravam a luz do fim de tarde, e a chama baixa de uma lamparina deixava o ar carregado de sombra. Sobre a mesa, cartas abertas, anotações dispersas e um tinteiro quase vazio mostravam horas de cálculos e preocupações. Chamou a filha antes do jantar. Não para confidências, mas como quem dita regras de um livro invisível. — Quinta-feira teremos convidados. — disse, sem rodeios, a pena ainda presa entre os dedos. — Um amigo antigo virá, e com ele novas conversas. Quero que a casa esteja em ordem, e nós também. Magnólia assentiu, em silêncio. Arthur ergueu o olhar. Havia algo na firmeza dos seus olhos que tornava a palavra seguinte mais dura do que qualquer cálculo. — Impecáveis. — repetiu, pausadamente. — Não apenas na aparência. Postura, fala, gesto. Cada detalhe será observado, como sempre. A palavra caiu sobre ela como uma veste pesada. Magnólia sabia o que significava: vestidos escolhidos com rigor, postura sem falhas, sorrisos medidos. Um espetáculo em que cada gesto seu representaria não apenas a si mesma, mas o prestígio do pai. — Sim, papai. — respondeu, controlando a voz para que soasse firme. Ele voltou às cartas como se nada mais houvesse a dizer. Magnólia retirou-se devagar. Por dentro, porém, a palavra ainda ecoava, repetindo-se como uma ordem gravada na carne. Impecáveis. Ela não sabia se obedecia por disciplina ou por hábito; sabia apenas que o peso da expectativa a apertava mais do que qualquer corpete. Ao recolher-se, Magnólia abriu a janela do quarto. O ar frio entrou de súbito, trazendo o cheiro da terra úmida e do jardim que se escondia na penumbra. O silêncio da casa era tão denso que ela pôde distinguir, ao longe, o bater compassado do relógio no corredor e o estalar suave da madeira sob o frio da noite. Soltou os cabelos, que caíram em ondas sobre os ombros. O toque dos fios contra a pele nua do pescoço fez-na estremecer de leve. Por um instante, teve a sensação de estar mais viva ali, diante do vento, do que em qualquer salão iluminado. Apoiou-se no parapeito, contemplando o escuro. O jardim parecia um espaço de segredos: sombras se moviam como se escondessem histórias que ninguém contava. A disciplina da casa não alcançava aquele território; ali, tudo parecia livre para ser outra coisa. Magnólia fechou os olhos e deixou que a brisa percorresse o rosto, descendo pela gola aberta até tocar-lhe o peito. Era como se a noite sussurrasse um chamado invisível, um convite que não sabia traduzir em palavras. Quando os abriu novamente, percebeu que sorria sozinha. E soube — ainda que em silêncio — que havia um mundo inteiro esperando além das regras. Um mundo que não podia ser contido em guardanapos alinhados ou escalas de piano. Deitou-se com esse pensamento ainda vibrando nela, como uma nota que permanece no ar mesmo depois de cessada a música.