O ACASO NA RUA

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— Capítulo 3 —

O céu de Florença parecia tecido em véu de gaze naquele fim de tarde: um dourado claro se espalhava sobre os telhados de terracota, e a brisa que descia do Arno agitava cortinas nas sacadas como mãos que acenavam. O ar trazia um leve cheiro de pedra aquecida e de água corrente, lembrando que a cidade vivia entre o calor dos muros antigos e a frescura do rio.

Era 1905, e Florença parecia dividida entre séculos: bondes elétricos rangiam nos trilhos recém-instalados nas avenidas largas, mas nas vielas ainda ecoavam cascos de cavalos e rodas de carruagem. A modernidade insinuava-se em fachadas iluminadas por lâmpadas, enquanto a tradição respirava nos passos firmes das famílias que se moviam em cortejos sociais.

Magnólia e Beatrice haviam descido da carruagem a alguns quarteirões do centro, preferindo caminhar sob a luz dourada que fazia das ruas um palco. Cada detalhe parecia disposto de propósito: o florista montava cestos de magnólias brancas, as vitrines dos joalheiros cintilavam como altares, e a placa de uma nova casa fotográfica prometia retratos tão fiéis que dispensariam lembranças.

Beatrice falava sem pausa, os olhos faiscando de comentários.

— Ouvi dizer que a condessa de R. está prestes a arruinar a filha mais nova, oferecendo-a a um banqueiro francês… — e riu, abanando o guarda-sol como se fosse um leque. — Chamam de casamento, mas eu chamo de liquidação.

Magnólia sorriu, discreta, mas não comentou. O silêncio dela nunca era vazio: era feito de observações. Via as crianças correndo atrás de um bonde em movimento, o alfaiate que ajeitava a manga de um cliente na porta, a senhora de luvas cinzentas abanando-se na soleira de casa. Tudo lhe parecia conter um segredo, como se Florença, em cada esquina, lhe oferecesse pistas de uma vida que se insinuava além das regras.

Um fio de vento ergueu a barra do vestido contra suas pernas, e a fricção do tecido arrancou-lhe um arrepio discreto. Baixou os olhos, recompôs o gesto, mas por dentro sentiu o corpo reagir como se fosse cúmplice da própria cidade.

Beatrice, sem perceber, seguia em sua música:

— Veja só essas vitrines! Um colar de pérolas… Aposto que custaria o dote inteiro de uma debutante. Talvez eu mesma arrisque um retrato na nova casa fotográfica. Assim, quando estiver velha, poderei provar que já fui jovem. — E riu sozinha, debochada.

Magnólia sorriu outra vez, mas agora com mais calor nos olhos. A amiga falava de vaidade, mas o que ela via era outra coisa: o reflexo de si mesma em cada vitrine, como se a cidade devolvesse uma imagem que ainda não sabia traduzir.

As ruas elegantes logo cederam lugar a vielas mais estreitas. O perfume doce das confeitarias dissipou-se, substituído por odores mais ásperos: vinho fermentado, fumaça de tabaco, suor de corpos amontoados. O riso já não era contido, mas livre, grosso, quase violento. Ali estavam as tavernas, lugares que Giovanna descrevia como poços de perdição.

Beatrice parou, apertando o guarda-sol contra o peito.

— Tavernas… — murmurou, o nariz levemente erguido. — Onde homens perdem a honra e mulheres perdem a reputação só de passar diante delas. Nem o sol consegue limpar esse tipo de sujeira. — Baixou ainda mais a voz, inquieta. — Se alguém nos vir aqui, nem meu guarda-sol salvará nosso nome.

Magnólia manteve o rosto sereno, mas os olhos buscaram a porta semicerrada de onde escapavam gargalhadas. Havia ali algo que a atraía e repelía ao mesmo tempo: uma energia viva, proibida, que não se encaixava na disciplina aprendida. Permitiu-se um segundo a mais de olhar — e esse segundo foi suficiente.

A porta abriu-se com violência. Dois rapazes foram lançados para fora em meio a empurrões e risadas, o garrafão quase vazio ainda na mão. As roupas estavam amarrotadas, os colarinhos soltos, os cabelos revoltos pelo vinho e pela noite. O primeiro tropeçou, apoiando-se no amigo — e nesse tropeço ergueu os olhos.

Encontrou os dela.

Não foi um olhar casual. Foi direto, insolente e, ainda assim, vivo de um jeito que a paralisou. Olhos escuros, amendoados, brilhando sob a luz instável da rua. O sorriso torto, ainda molhado de vinho, trazia um ar debochado que contrastava com a firmeza súbita do olhar. Mesmo desalinhado, havia nele uma presença que parecia maior que a cena vulgar.

Magnólia sentiu o ar rarear, a respiração presa no alto do peito. O corpete, até então mero incômodo, tornou-se uma prisão apertada demais. O calor subiu-lhe ao rosto e, ao mesmo tempo, pareceu incendiar-lhe o ventre, como se o corpo tivesse sido chamado de dentro para fora.

E então ele falou, a voz rouca, carregada de vinho, mas certeira como uma lâmina:

— Se as flores de Florença tivessem olhos, seriam como os seus.

A frase atravessou-a com violência doce. As pernas vacilaram sob a saia, e precisou segurar-se discretamente no braço de Beatrice para não perder o compasso. O coração disparava, mas não era apenas o coração: era como se o sangue inteiro tivesse mudado de ritmo.

— Que atrevimento! — Beatrice exclamou, escandalizada, puxando-lhe o braço. — Venha, Magnólia, antes que alguém veja!

Ela deixou-se conduzir, passos apressados, mas por dentro a frase ardia, repetindo-se como um hino profano.

Quando já se afastavam, o instinto falou mais alto: Magnólia virou o rosto por sobre o ombro. O rapaz ainda ria com o amigo, mas por um instante os olhos estavam sóbrios — e presos aos dela. Foi apenas um segundo, mas suficiente para que Magnólia sentisse, pela primeira vez, que fora reconhecida não como filha obediente ou dama elegante, mas como mulher.

Beatrice não cessava de resmungar:

— Homens assim não merecem nem o chão que pisam! E você, Magnólia, jamais deve dar sequer um olhar a esse tipo! É assim que reputações se perdem.

Magnólia caminhava ao lado da amiga, mas o corpo ainda pulsava com o fogo aceso na porta da taverna.

Quando enfim deixaram para trás as vielas, entraram numa rua mais elegante. As vitrines de chapelarias exibiam laços de seda e penas de faisão, e diante delas um grupo de senhoras conversava em voz baixa, mas não o suficiente para passar despercebido.

— Uma pena… os Tornabuoni, sempre eles — murmurou uma, abanando-se com um leque rendado. — Nome antigo, mas cada vez mais manchado.

— Já não têm a dignidade de outrora — comentou outra, franzindo os lábios. — Se não fosse pelas tavernas, ainda seriam lembrados como nobres.

Magnólia estacou por dentro. O nome caiu-lhe aos ouvidos como uma chave que abre uma porta inesperada.

Beatrice suspirou alto, como quem confirma um boato que já conhecia.

— Não me surpreende. Já ouvi falar que os rapazes Tornabuoni são incontroláveis. Riqueza se perde quando o vinho governa. — Olhou para Magnólia com severidade. — Viu só? Era esse tipo de homem. Eu tinha razão.

Magnólia tentou manter a serenidade, mas dentro dela algo se acendeu. O acaso tinha agora um sobrenome, e esse sobrenome soava como revelação. Tudo o que havia sentido — o olhar, a frase, o rubor — parecia ganhar novo peso à luz daquele nome.

Seguiu o passo ao lado da amiga, mas o coração caminhava sozinho, guardando em silêncio aquela centelha proibida.

À noite, a casa recolheu-se cedo. As luzes apagaram-se uma a uma, e os corredores mergulharam em silêncio, quebrado apenas pelo bater lento do relógio na sala de baixo. Magnólia subiu ao quarto com passos medidos, mas o corpo ardia por dentro.

Diante do espelho, soltou os cabelos e fitou o próprio reflexo. Não era mais a moça treinada para sorrir com sobriedade. Os olhos, agora, tinham um brilho diferente, como se guardassem um segredo impróprio. Tocou a pele do pescoço, lembrando-se da forma como o olhar dele a atravessara. Depois, os lábios entreabertos, como se ainda pudesse ouvir a voz rouca murmurando sobre flores.

Deitou-se, mas o corpo não encontrou repouso. O calor crescia sob o tecido, o espartilho parecia ainda apertar-lhe o peito, como se fosse um lembrete da disciplina que desejava romper.

Com hesitação, deixou a mão escorregar pela curva da cintura, avançando devagar até a fronteira proibida. O primeiro toque a fez estremecer inteira; um arrepio percorreu-lhe a espinha, e ela mordeu o lábio para conter um suspiro que ainda assim escapou, baixo, traidor.

Os dedos moveram-se com timidez e, logo, com urgência. Cada contato era como uma chama que se espalhava em ondas pelo corpo: ventre, peito, rosto, até a pele do pescoço que ardia em rubor. A respiração tornou-se irregular, mais profunda a cada instante, difícil de controlar.

O olhar dele voltava sempre, firme, atrevido, despindo-a em plena rua. Revivia a cena como se estivesse acontecendo outra vez. O quadril arqueou-se contra a própria mão num gesto instintivo, e o prazer explodiu em ondas desordenadas. Um gemido escapou-lhe, abafado no travesseiro, mas ainda assim carregado demais para ser negado.

Ficou deitada sem se mover, os seios subindo e descendo em ritmo acelerado, a pele coberta por suor fino. O quarto parecia girar em silêncio, como se fosse cúmplice de sua transgressão. Percebeu, então, que havia atravessado uma linha invisível. Já não era apenas filha obediente, mas uma mulher que conhecia o poder do próprio desejo.

Abraçou o travesseiro, o coração disparado, os lábios entreabertos. Antes de adormecer, sussurrou baixinho, como um segredo confiado só à noite:

— Tornabuoni.

E fechou os olhos, vencida não pelo sono tranquilo, mas pela lembrança ardente de um olhar que, entre tantos, ousara escolhê-la.

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