Mundo ficciónIniciar sesiónSenti um leve rubor subir ao meu rosto — fiquei envergonhada de repente.
— Então... você está bem? — perguntei, tentando disfarçar. Conversa vai, conversa vem, acabei entrando no assunto.
Henrique, sempre solícito, logo se dispôs a vir ao rancho ajudar a Mimosa. Já imaginando o que poderia ser e confiando no que eu havia dito, chegou preparado, com todo o equipamento necessário.
Era muito querido na cidade, um dos veterinários mais requisitados da região. Estava sempre disposto a ajudar, apaixonado pelos animais. Eu não o via desde que fui estudar; às vezes vinha pra casa nas férias, mas a gente quase nunca se encontrava. Mal lembrava como ele estava.
Quando vi o farol de uma Ford Ranger preta se aproximando, confesso: meu queixo caiu. Que carro lindo! E quando ele desceu... alto, magro, mas com aquele tipo de corpo — como posso dizer? — bonito de um jeito natural. Sacudi a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Afinal, era o Henrique. Meu amigo de infância. Ai, que doida.
O barulho dos cascos dos cavalos ao longe misturava-se ao som do vento batendo nas folhas secas. O céu começava a ficar alaranjado, e o cheiro de terra úmida invadia o ar. O rancho parecia respirar vida.
— Ora, ora, ela está de volta aos campos — comentou ele, ao me ver. O modo como me olhou dos pés à cabeça me fez perder o fôlego por um instante. Só consegui dar uma risadinha nervosa.
— Ora, ora, se não é o doutor bichano — brinquei, lembrando o apelido que usava quando ele dizia que seria “doutor de bichos”.
Ele riu, bateu de leve na aba do meu chapéu.
De repente, um silêncio estranho se instalou entre nós. Um silêncio que não existia na nossa infância, quando as palavras pareciam correr livres entre risadas e brincadeiras no curral.
— Você também — respondi rápido, tentando quebrar o clima. — Acho que vi uns dez pelos a mais nessa barba aí.
Ele soltou um riso quase inaudível, com um sorriso discreto no canto da boca.
Henrique confirmou o que eu suspeitava: mastite. Começamos o tratamento aplicando a anestesia para aliviar a dor da Mimosa e, em seguida, ele iniciou a drenagem do abscesso. Mesmo anestesiada, dava pra perceber o desconforto da pobrezinha.
O sol entrava pelas frestas do estábulo, criando faixas douradas no ar poeirento. O som ritmado das moscas, o cheiro forte do esterco e a respiração pesada da vaca davam um certo peso ao momento.
— Assim não, Aurora — corrigiu Henrique. — Você precisa pegar firme no instrumento, passar confiança pro animal. Ela já está mal, e se sentir sua hesitação, piora.
— Tá bom... tô meio sem jeito ainda, mas vou aprender — confessei, um pouco sem graça.
Ele se aproximou, tomou o instrumento da minha mão e mostrou novamente. Depois, pegou minha mão e colou junto à dele, guiando o movimento. Não sei se aquilo ajudou... ou piorou. Senti o rosto esquentar, um arrepio diferente me atravessou. Estava confusa — fazia tanto tempo que não o via, e agora me sentia meio... desajeitada.
Enquanto ele falava sobre técnica e pressão adequada, eu mal conseguia prestar atenção. O toque firme da mão dele sobre a minha, o calor da pele, o som da respiração próxima... tudo parecia bagunçar meu raciocínio.
Me perdi em meus pensamentos e, quando dei por mim, ouvi ele chamar:
— Você está bem? — perguntou, arqueando uma sobrancelha.
Ele ficou me olhando por alguns segundos — aquele olhar que parece querer decifrar o que se passa por dentro da gente. Depois respondeu:
— Certo. Espero que ela melhore logo — falei, fazendo carinho na Mimosa, que apesar de debilitada, já parecia aliviada.
Senti um olhar em mim. Quando levantei a cabeça, Henrique desviou rápido. Nesse instante, meu pai chegou, limpando as mãos no lenço que trazia sempre no bolso da calça.
— Vejo que não precisaram de mim — disse, sorrindo. — Olá, garoto, como está?
— É, vi sim. E, pelo visto, será uma excelente veterinária — elogiou Henrique, me observando com um olhar que me deixou desconcertada.
Fiquei sem saber onde enfiar a cara. Meus dedos começaram a brincar nervosos com a barra da camisa.
— Ei, me espera — pediu ele, num tom quase provocador.
— Isso é jeito de falar, menina?! — gritou meu pai, espantado.
Ai, meu Deus. Eu era assim mesmo: falava sem filtro. E com Henrique ali, parecia que meu cérebro tinha tirado férias. Suspirei, revirei os olhos e ouvi meu pai dizer, enquanto me afastava:
— Desculpe. Você a conhece, essa menina é terrível quando quer. Fique pro almoço, Henrique.
Olhei de relance para trás. Henrique ainda estava de pé perto da Mimosa, o chapéu nas mãos e aquele meio sorriso no rosto — o mesmo de anos atrás, quando ele ria das minhas travessuras. Mas agora havia algo diferente naquele sorriso... algo que me fez o coração acelerar de um jeito que eu não estava pronta pra admitir.
Enquanto subia para o quarto, ouvi a voz do meu pai e a risada dele ecoando no curral. Sorri sozinha. Talvez o rancho fosse o mesmo, mas alguma coisa dentro de mim — e talvez dentro de Henrique também — já não era mais.







