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Capítulo 3 - Da Infância para a Vida

Saí do banho sentindo o cheiro da comida da mamãe. E que cheiro! O aroma de alho dourando no azeite se misturava ao de cebola e cheiro-verde, e uma pontinha de orégano pairava no ar. Aquilo me transportou direto para a infância. Quanta saudade dessa comidinha. Quase todos os dias na capital eu comia miojo — era fácil, prático e combinava com a correria da rotina que eu estava vivendo. Nada saudável, mas era o que dava.

Agora, de volta ao rancho, parecia que o tempo desacelerava junto com o meu coração. Tudo ali tinha um cheiro diferente — de casa, de descanso, de pertencimento.

Vesti minha calça jeans preferida e uma camisa preta simples, mas que eu adorava. Não coloquei o chapéu dessa vez; queria deixar os cabelos secarem naturalmente, livres, soltos, como se o vento dali tivesse o poder de me devolver algo que a cidade havia levado.

Antes mesmo de descer toda a escada, ouvi risadas vindo da cozinha. Henrique, pelo visto, não tinha mudado nadinha: continuava amando fazer graça, arrancando gargalhadas de quem estivesse por perto.

— Estávamos esperando por você, querida. Sente-se, vamos nos servir — disse mamãe, com aquele tom doce e firme que sempre me fazia sentir acolhida.

Claro que não perdi tempo. Enchi meu prato parecendo que estava passando fome. E, de certa forma, eu estava — de comida de verdade, de conversa boa, de carinho. Assim que comecei a comer, Henrique não perdeu a oportunidade de alfinetar:

— Estava presa, Aurora? — perguntou, em tom de brincadeira, com aquele sorriso de canto que eu conhecia bem.

Revirei os olhos, fingindo impaciência.

— Pelo menos não estou comendo na casa alheia — retruquei, devolvendo o sarcasmo na mesma moeda.

Mamãe soltou uma risadinha e balançou a cabeça.

— Vocês cresceram, mas continuam duas crianças. — Ela falava isso sempre que a gente começava nossas provocações, e no fundo eu sabia que ela adorava assistir.

O almoço foi animado, cheio de histórias sobre o rancho, os animais e os vizinhos. Papai parecia mais leve, falando sobre as colheitas e os bezerros que nasceram na última estação. A cada risada, eu sentia como se o tempo tivesse parado ali.

Mamãe trouxe o café recém-passado e o cheiro se espalhou pela cozinha. Foi quando papai, com o ar mais travesso do que de costume, soltou:

— Então, Henrique, não vai laçar nenhuma mulher pra casar?

Vi o rosto dele corar um pouco. Henrique sempre foi bom em disfarçar, mas conheço bem aquele olhar de quem foi pego de surpresa. Ainda assim, ele se saiu bem — até demais.

— Ainda não encontrei nenhuma que me fizesse mudar de ideia — respondeu, firme, enquanto levava a xícara aos lábios.

Mas o que realmente me desconcertou foi o olhar que ele lançou logo em seguida. Por cima da xícara, diretamente para mim.

Houve um instante em que o ar pareceu pesar. Desviei o olhar, fingindo não perceber, e me levantei para começar a tirar a mesa. Meus pais, é claro, perceberam. Mamãe arqueou as sobrancelhas e papai pigarreou, como se tentasse quebrar o clima.

— Acho que nenhuma teve coragem de assumir essa bomba, isso sim — falei, rindo alto, tentando dissipar o que havia ficado suspenso no ar. Era assim que a gente sempre se tratou: com provocação, leveza e um certo jogo de palavras.

Henrique se levantou também, levando a xícara até a pia. Parou bem ao meu lado, cruzou os braços e me olhou com seriedade.

— É isso que você acha de mim? Que eu sou uma bomba?

Não esperava por aquilo. Meu sorriso sumiu por um segundo, e encarei seus olhos — castanhos, intensos, como se quisessem me ler por dentro.

— Que nada! Você é maravilhoso... só está bem escondida essa parte sua — respondi, com um tom brincalhão, tentando aliviar o clima.

Ele balançou a cabeça, deu uma risadinha curta e meus pais, que assistiam a tudo, caíram na gargalhada. O riso coletivo devolveu o ar leve à cozinha.

Henrique pegou o chapéu na cadeira e sorriu de canto.

— Tá na hora de ir, senão fico para o jantar — disse, piscando para mamãe.

— Eu te acompanho, só pra ter certeza que você vai — falei, rindo, enquanto o puxava pela mão e o arrastava para fora de casa. Ele era um chato, mas era meu amigo.

Saímos pela porta dos fundos, e o sol já começava a se inclinar. A luz dourada pintava os campos, e um breve silêncio se formou entre nós, até que ele perguntou:

— Me lembro que você amava cavalgar. Ainda gosta?

Sorri.

— Amo. É o momento em que mais me sinto livre. Cavalgar pelas terras, sentir o vento, ouvir os cascos batendo na terra... é uma liberdade indescritível. — Parei por um instante, imaginando a cena. — Podemos cavalgar qualquer dia desses, se o doutor bichano não estiver muito ocupado — disse, dando um tapinha no braço dele.

Henrique riu.

— É claro que venho. Mas antes, quero te levar na cidade pra jantar. Lembro que você ama uma boa massa.

— Isso é verdade — admiti. — Pode ser, é só marcar o dia e a hora que eu apareço lá.

— Nada disso. Eu venho te buscar. Seu pai me mata se eu deixar você sair sozinha à noite.

— Relaxa, doutor. Mas tá bom, eu te espero. Agora vai, vai logo antes que minha mãe ache mais uma desculpa pra te prender pra sobremesa — falei, acenando enquanto ele entrava no carro.

Ele deu partida e me lançou um último olhar antes de sair pelo portão. Um olhar rápido, mas que ficou.

Fiquei parada por alguns segundos observando a poeira subindo atrás do carro, com uma sensação estranha no peito.

Foi bom revê-lo.

Senti falta das pessoas daqui — do jeito simples, das conversas sem pressa. As pessoas na capital eram tão diferentes, mais frias, sempre correndo. Foi difícil fazer amizade por lá. Ainda bem que conheci a Ana — doidinha, mas maravilhosa. A única que conseguiu me fazer sentir um pedacinho de casa mesmo estando longe.

Os dias passaram devagar, do jeito que só o interior sabe passar. Mimosa, a vaca que havia adoecido, finalmente se recuperava. Um alívio pra todos nós — principalmente pra ela, coitada. Desde então, Henrique não tinha marcado o tal jantar, nem dado as caras no rancho. E, claro, eu não iria atrás.

Enquanto recolhia os ovos das galinhas, o sol já alto castigava, e eu suava. O calor era típico dali, mas eu gostava: aquele suor vinha junto com a sensação de estar viva, fazendo algo real.

Foi quando o celular vibrou no bolso da calça. Limpei as mãos na barra da camisa e olhei a tela. Uma notificação: mensagem de Henrique.

Henrique:

“Oi, que tal nosso jantar hoje? Diz que sim. A semana foi puxada na clínica, não consegui marcar antes. Beijo, H.”

Sorri sozinha, tentando não parecer boba, e respondi na hora:

Aurora:

“Ok.”

Alguns segundos depois, o celular vibrou de novo.

Henrique:

“Ok?”

Revirei os olhos e digitei:

Aurora:

“Ok, ilustríssimo Dr. Bichano. Te aguardo.”

E ele respondeu:

Henrique:

😆💣

Ri alto, guardando o celular de volta no bolso. “Idiota”, pensei, mas no fundo o coração deu um salto.

Peguei o Max, meu cavalo, e decidi cavalgar um pouco antes do fim da tarde. A sela se ajustou perfeitamente, e o som dos cascos ecoando no chão de terra me trouxe paz. Fui até o rio que ficava não muito longe — o mesmo de sempre, entre nosso rancho e a propriedade vizinha.

O vento quente batia no rosto, e as folhas secas dançavam pelo caminho.

Quando parei à beira do rio, desci do cavalo e sentei na pedra grande onde eu costumava brincar quando era criança. A água corria calma, refletindo o céu azul. Respirei fundo, deixando o som do campo preencher o silêncio que vinha de dentro.

Fechei os olhos e pensei em tudo o que tinha mudado.

E em tudo que, por algum motivo, ainda permanecia igual — principalmente quando se tratava de Henrique.

Por mais que eu fingisse não perceber, havia algo ali, escondido entre nossas piadas, um fio invisível que teimava em nos puxar um para o outro.

E talvez, só talvez, aquele jantar fosse o recomeço da nossa amizade.

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