Mundo de ficçãoIniciar sessãoSaí do banho sentindo o cheiro da comida da mamãe. E que cheiro! O aroma de alho dourando no azeite se misturava ao de cebola e cheiro-verde, e uma pontinha de orégano pairava no ar. Aquilo me transportou direto para a infância. Quanta saudade dessa comidinha. Quase todos os dias na capital eu comia miojo — era fácil, prático e combinava com a correria da rotina que eu estava vivendo. Nada saudável, mas era o que dava.
Vesti minha calça jeans preferida e uma camisa preta simples, mas que eu adorava. Não coloquei o chapéu dessa vez; queria deixar os cabelos secarem naturalmente, livres, soltos, como se o vento dali tivesse o poder de me devolver algo que a cidade havia levado.
— Estávamos esperando por você, querida. Sente-se, vamos nos servir — disse mamãe, com aquele tom doce e firme que sempre me fazia sentir acolhida.
Claro que não perdi tempo. Enchi meu prato parecendo que estava passando fome. E, de certa forma, eu estava — de comida de verdade, de conversa boa, de carinho. Assim que comecei a comer, Henrique não perdeu a oportunidade de alfinetar:
— Estava presa, Aurora? — perguntou, em tom de brincadeira, com aquele sorriso de canto que eu conhecia bem.
Revirei os olhos, fingindo impaciência.
Mamãe soltou uma risadinha e balançou a cabeça.
O almoço foi animado, cheio de histórias sobre o rancho, os animais e os vizinhos. Papai parecia mais leve, falando sobre as colheitas e os bezerros que nasceram na última estação. A cada risada, eu sentia como se o tempo tivesse parado ali.
Mamãe trouxe o café recém-passado e o cheiro se espalhou pela cozinha. Foi quando papai, com o ar mais travesso do que de costume, soltou:
— Então, Henrique, não vai laçar nenhuma mulher pra casar?
Vi o rosto dele corar um pouco. Henrique sempre foi bom em disfarçar, mas conheço bem aquele olhar de quem foi pego de surpresa. Ainda assim, ele se saiu bem — até demais.
— Ainda não encontrei nenhuma que me fizesse mudar de ideia — respondeu, firme, enquanto levava a xícara aos lábios.
Mas o que realmente me desconcertou foi o olhar que ele lançou logo em seguida. Por cima da xícara, diretamente para mim.
— Acho que nenhuma teve coragem de assumir essa bomba, isso sim — falei, rindo alto, tentando dissipar o que havia ficado suspenso no ar. Era assim que a gente sempre se tratou: com provocação, leveza e um certo jogo de palavras.
Henrique se levantou também, levando a xícara até a pia. Parou bem ao meu lado, cruzou os braços e me olhou com seriedade.
Não esperava por aquilo. Meu sorriso sumiu por um segundo, e encarei seus olhos — castanhos, intensos, como se quisessem me ler por dentro.
Ele balançou a cabeça, deu uma risadinha curta e meus pais, que assistiam a tudo, caíram na gargalhada. O riso coletivo devolveu o ar leve à cozinha.
Henrique pegou o chapéu na cadeira e sorriu de canto.
— Eu te acompanho, só pra ter certeza que você vai — falei, rindo, enquanto o puxava pela mão e o arrastava para fora de casa. Ele era um chato, mas era meu amigo.
Saímos pela porta dos fundos, e o sol já começava a se inclinar. A luz dourada pintava os campos, e um breve silêncio se formou entre nós, até que ele perguntou:
— Me lembro que você amava cavalgar. Ainda gosta?
Sorri.
Henrique riu.
— Isso é verdade — admiti. — Pode ser, é só marcar o dia e a hora que eu apareço lá.
— Nada disso. Eu venho te buscar. Seu pai me mata se eu deixar você sair sozinha à noite.
— Relaxa, doutor. Mas tá bom, eu te espero. Agora vai, vai logo antes que minha mãe ache mais uma desculpa pra te prender pra sobremesa — falei, acenando enquanto ele entrava no carro.
Ele deu partida e me lançou um último olhar antes de sair pelo portão. Um olhar rápido, mas que ficou.
Foi bom revê-lo.
Os dias passaram devagar, do jeito que só o interior sabe passar. Mimosa, a vaca que havia adoecido, finalmente se recuperava. Um alívio pra todos nós — principalmente pra ela, coitada. Desde então, Henrique não tinha marcado o tal jantar, nem dado as caras no rancho. E, claro, eu não iria atrás.
Enquanto recolhia os ovos das galinhas, o sol já alto castigava, e eu suava. O calor era típico dali, mas eu gostava: aquele suor vinha junto com a sensação de estar viva, fazendo algo real.
Henrique:
Sorri sozinha, tentando não parecer boba, e respondi na hora:
Aurora:
Alguns segundos depois, o celular vibrou de novo.
Henrique:
Revirei os olhos e digitei:
Aurora:
E ele respondeu:
Henrique:
Ri alto, guardando o celular de volta no bolso. “Idiota”, pensei, mas no fundo o coração deu um salto.
Peguei o Max, meu cavalo, e decidi cavalgar um pouco antes do fim da tarde. A sela se ajustou perfeitamente, e o som dos cascos ecoando no chão de terra me trouxe paz. Fui até o rio que ficava não muito longe — o mesmo de sempre, entre nosso rancho e a propriedade vizinha.
O vento quente batia no rosto, e as folhas secas dançavam pelo caminho.
Fechei os olhos e pensei em tudo o que tinha mudado.
E talvez, só talvez, aquele jantar fosse o recomeço da nossa amizade.







