Mundo de ficçãoIniciar sessãoJúlia dormia profundamente, respirando de maneira tranquila, mas Daniel não conseguia tirar os olhos dela. Ver o peito dela se mover lentamente era como testemunhar um milagre que ele ainda não sabia se merecia.
Enquanto a encarava, memórias antigas começaram a emergir, memórias que ele passara anos enterrando.
Memórias que envolviam aquela menina que agora estava diante dele — só que, na época, ela era apenas uma garotinha de olhos enormes, magra demais, sempre com joelhos ralados e curiosidade explodindo para fora dos bolsos.Daniel tinha apenas oito anos quando viu Júlia pela primeira vez.
Ela tinha seis. E não falava com ninguém.A mãe de Júlia, recém-separada, tinha ido morar na rua ao lado da casa dos Moretti. As crianças do bairro implicavam com a menina quieta, nova, que parecia não saber muito bem como existir sem pedir desculpas. Daniel lembrava da primeira vez que a defendeu — não porque fosse corajoso, mas porque algo nela o tocava de um jeito que ele não sabia explicar.
Ele se aproximou dela naquele dia e ofereceu metade do doce que carregava no bolso.
Ela aceitou sem olhar diretamente para ele, mas quando deu a primeira mordida, sorriu. Um sorriso pequeno. Quase tímido.Mas foi o suficiente.
Daniel nunca esquecera aquele sorriso.
O brilho dele. A inocência.E aquela lembrança — aquela sensação de querer proteger alguém tão pequena — ficou adormecida por anos, escondida entre a vida adulta, a distância, o tempo. Mas agora, vendo Júlia de novo, frágil, perdida, ele sentia a mesma coisa que sentira quando era criança:
O impulso visceral de protegê-la do mundo.
Mesmo que isso significasse mentir. Mesmo que isso significasse confrontar o próprio sangue.Respirou fundo, levantou-se da poltrona e saiu do quarto, sabendo que precisava encontrar Caio antes que fosse tarde demais.
A raiva, a culpa, o medo… tudo se misturava dentro dele como combustível para o inevitável.
Encontrou Caio sentado no estacionamento do hospital, com os cotovelos apoiados nos joelhos e o rosto enterrado nas mãos. Helena estava ao lado dele, passando a mão em suas costas de um jeito falso, reconfortante demais, íntimo demais.
Quando Daniel se aproximou, Helena endireitou a postura, mas não tirou a mão de Caio — uma escolha intencional.
— Caio — Daniel chamou.
Caio levantou o rosto devagar, os olhos vermelhos, a expressão devastada.
— Tio… — sua voz saiu quebrada. — Eu não… eu não sei o que fazer.
Daniel sentiu o peito arder.
Não de pena, mas de uma fúria acumulada que finalmente encontrava uma saída.— O que você tinha que fazer, você não fez — ele disse, firme.
Helena estreitou os olhos.
Caio pareceu levar um tapa invisível.— Como assim? — Caio perguntou, confuso, machucado.
Daniel deu um passo adiante.
— Você escolheu quem salvar. E não escolheu a sua noiva.
Helena segurou o ar.
Caio ficou rígido.— Eu… eu vi ela presa, eu achei que podia voltar! Eu achei que ia dar tempo! Eu—
— Não deu tempo — Daniel cortou, frio.
Caio balançou a cabeça, desesperado.
— Eu não deixei ela pra morrer! Eu… eu não consegui alcançar ela! Eu não consegui…
Daniel não se moveu.
Não piscou. Não suavizou.— Você voltou primeiro para a Helena — disse, olhando diretamente para o sobrinho. — E você sabe disso.
Helena abriu a boca, pronta para interferir, mas Caio ergueu a mão, mandando-a esperar.
— Eu… eu não fiz por mal — ele murmurou. — Eu só… vi ela chorando, presa, e…
Daniel avançou mais um passo, a voz baixa, firme, cortante como vidro:
— Júlia confiava em você.
A frase foi um golpe.
Caio piscou rápido, como se tentasse afastar uma dor invisível.
— Tio… — ele começou, mas Daniel levantou a mão.
— Não termina. Eu não vim te ouvir se justificar.
Helena finalmente se meteu.
— Isso é crueldade, Daniel. Ele quase morreu também! Ele fez o que pôde! Ele tentou voltar pra ela, mas—
— Você cala a boca — Daniel disse, a voz grave, um limite direto. — Você não tem moral pra comentar nada aqui.
Helena congelou, sentindo o golpe na própria soberba.
Caio engoliu seco.
— Tio… não fala assim com ela…
Daniel riu sem humor, amargo como veneno.
— Claro. Sempre defendendo ela. Sempre.
— Você não entende — Caio disse, com a voz trêmula.
— Entendo mais do que você imagina — Daniel respondeu. — Entendo há anos que você coloca essa garota acima de qualquer coisa. Até da mulher que dizia amar.
Helena ficou tensa.
Caio respirou fundo, tentando conter as lágrimas.— Ela é minha noiva — ele disse enfim, a dor borbulhando para fora. — Você não pode fazer isso. Você não pode me afastar dela. Ela é minha noiva.
Daniel se aproximou até ficar a poucos centímetros dele.
A resposta veio afiada:
— Ela deixou de ser sua noiva quando você escolheu salvar outra pessoa no lugar dela.
Caio pareceu murchar.
Perder o ar. Perder o chão.Helena ficou rígida, silenciosa, sem saber como reagir a tamanho corte.
Daniel respirou fundo e continuou, mais controlado, mas não menos firme:
— Júlia está viva.
A revelação caiu entre eles como uma bomba.
Caio arregalou os olhos.
Helena deu um passo involuntário para trás.— O q-que você disse? — Caio gaguejou. — V-viva? Ela… ela tá viva? Onde? Me leva até ela!
Daniel ergueu a mão novamente, barrando o sobrinho.
— Não. Ainda não.
Helena apertou os olhos, confusa.
— Como assim “não”? — Caio perguntou, a voz subindo um pouco.
Daniel respirou fundo.
— Ela acordou sem memória. E não lembra de você. Não sabe quem você é. E… eu não vou levar você até ela antes de falar com ela primeiro. Antes de perguntar se ela quer te ver.
Caio recuou como se tivesse sido esfaqueado.
— Tio… por favor… você não pode… ela é minha vida… me deixa—
— Não dou minha resposta — Daniel o interrompeu — até saber a dela.
Silêncio.
Helena observava tudo com olhos analisadores, tentando calcular como virar aquilo a seu favor.
Caio caiu sentado no banco de concreto, derrotado, mas com a esperança renascida e desesperada.
Daniel o olhou por alguns segundos.
E viu não apenas o sobrinho que amava, mas também o homem que falhou no pior dia possível.E ele não sabia ainda como perdoar isso.
Nem se um dia conseguiria.Virou-se para ir embora.
— Quando ela decidir — disse por fim — eu te procuro.
E deixou o sobrinho para trás, chorando com a cabeça entre as mãos…
enquanto Helena se aproximava devagar, com aquele olhar suave demais para ser honesto.E Daniel voltava para o hospital, carregando um segredo antigo no peito…
… e um novo amor perigoso nascendo bem diante dos seus olhos.







