Norah

Norah Narrando

Acordei com o toque insistente do meu celular vibrando na mesinha de cabeceira.

Abri um olho, ainda sonolenta, e estiquei o braço pra pegar o aparelho.

No visor, o nome do doutor Washington piscava.

Atendi de imediato.

— Bom dia, doutor — murmurei, tentando disfarçar a voz rouca.

— Norah, minha querida amiga! — ele respondeu naquele tom animado e tranquilo que era só dele. — Tá com horário na sua agenda hoje?

Suspirei, me sentando na cama.

— Tenho sim. Acabei o atendimento de dois pacientes e tô com dois horários vagos. Por quê?

— Ótimo. Tenho um caso novo pra te passar. Um paciente que acabou de acordar de um coma de dois anos. Da família William.

Meu coração acelerou por um instante. Eu sabia desse caso.

Alexander William.

O homem que ficou paraplégico depois de um acidente trágico, que levou a vida da esposa.

— Eu conheço o histórico — falei baixinho. — Ele finalmente acordou, então.

— Acordou, mas a situação é delicada. Tá revoltado, não aceita ajuda, não quer reabilitação. Você é a pessoa certa pra tentar uma aproximação. Vou te passar o endereço e o contato da mãe dele.

Anotei tudo com calma, ainda meio zonza de sono. Quando desliguei, fiquei alguns segundos encarando o celular, imaginando o tamanho do desafio que me esperava.

Liguei pra mãe dele, dona Alexia. A voz do outro lado era firme, elegante, mas cansada.

— Dona Alexia? Aqui é a fisioterapeuta Norah. O doutor Washington me passou o caso do seu filho.

— Sim, querida, já estou ciente. — Ela suspirou. — Ele precisa de ajuda, mas não vai admitir. Orgulho demais pra aceitar que não é mais o mesmo homem.

Sorri, mesmo sabendo que ela não podia me ver.

— Não se preocupe, dona Alexia. Eu tô acostumada com esse tipo de resistência. Principalmente vindo de homens.

Marcamos a primeira visita ainda pra aquele dia.

Levantei da cama, segui pro banheiro e tomei um banho rápido. A água quente me despertou por completo.

Vesti meu uniforme branco, calça leve, jaleco limpo, cabelo preso.

Coloquei pó e água na cafeteira e deixei o cheiro de café fresco invadir o apartamento.

Enquanto esperava, fiz uma breve oração silenciosa: Que eu tenha paciência. Que eu encontre um caminho até esse homem.

Bebi o café, dei um beijo na cabeça do Tom, meu gato preguiçoso que nem se moveu direito e peguei as chaves do carro.

O endereço ficava numa área nobre. Uma casa grande, de portão alto e jardim bem cuidado.

Toquei a campainha e fui recebida por uma senhora de semblante sério, mas olhos gentis.

— Norah? — ela perguntou, abrindo um sorriso cansado. — Sou Alexia William. Obrigada por ter vindo tão rápido.

— É um prazer conhecê-la, dona Alexia.

Ela me guiou até o andar de cima, onde o quarto de Alexander ficava.

A cada passo, dava pra sentir o clima pesado da casa. Silêncio demais. Um tipo de tristeza que parecia morar nas paredes.

Quando entrei no quarto, o vi.

Um homem grande, de ombros largos, mas com o olhar apagado.

Barba por fazer, cabelo bagunçado, a pele pálida.

Ele estava sentado na cama, os olhos perdidos na janela.

E naquele instante, eu entendi tudo que a senhora Alexia havia dito.

A dor dele não era só física. Era existencial.

— Alexander? — chamei com suavidade. — Bom dia. Sou Norah, sua fisioterapeuta. Vim pra nossa primeira sessão.

Ele virou o rosto devagar, me medindo dos pés à cabeça com um olhar frio.

— Não pedi fisioterapeuta nenhuma — respondeu, ríspido. — Pode ir embora.

Sorri de leve. Já tinha enfrentado muitos assim.

— Sua mãe me contratou, e a médica responsável pela UTI também recomendou o início imediato das sessões. Vamos começar devagar.

— Eu disse que não quero.

— E eu disse que vai querer — retruquei, mantendo o tom calmo. — Não agora, talvez, mas logo vai entender que precisa de mim.

Ele bufou, cruzando os braços.

— Você é sempre assim, mandona?

— Só com quem acha que manda em tudo — respondi, enquanto organizava o material na mesinha. — Vamos tentar alongar os braços hoje. Nada que vá te cansar demais.

Durante toda a sessão, ele resmungou.

Reclamava que doía, que era inútil, que nunca mais voltaria a andar.

Eu não discutia. Só respirava fundo e seguia o protocolo.

— Dói. — Ele reclamou de novo, quando comecei a trabalhar a musculatura dos ombros.

— Dor é sinal de que o corpo ainda tá vivo, Alexander — falei. — E é com ela que a gente começa a reconstruir.

— Reconstruir o quê? — ele resmungou. — A vida que eu perdi?

Fiquei em silêncio.

Porque eu sabia que, por trás da raiva, o que havia era luto.

A primeira sessão terminou com ele me ignorando completamente.

Apenas um já acabou? seco e arrogante.

No dia seguinte, voltei.

Ele parecia ainda mais fechado.

Mal respondeu ao meu bom-dia.

— Hoje vamos tentar um pouco de estímulo nas pernas — avisei, ajustando os equipamentos.

— Não adianta. Não sinto nada daí pra baixo.

— Mesmo assim, o estímulo é importante.

Ele revirou os olhos.

— Isso é perda de tempo.

— É o meu trabalho, e é a sua chance de recomeçar. — Sorri. — A gente vai se encontrar no meio do caminho, tá?

Enquanto aplicava a técnica, ele voltou a reclamar.

Às vezes, fechava os olhos com força, dizendo que doía.

Outras, zombava.

— Você tem certeza de que sabe o que tá fazendo?

— Tenho. E paciência também — respondi, massageando o tornozelo dele com movimentos firmes. — Duas coisas que vão te ajudar, querendo ou não.

A sessão foi longa.

Silenciosa em alguns momentos, tensa em outros.

Quando terminei, comecei a guardar as coisas.

— Pronto por hoje. Amanhã volto no mesmo horário.

— Não precisa voltar — ele disparou. — Tá demitida.

Olhei pra ele, contendo o riso.

— O senhor não pode me demitir, Alexander. Quem me contratou foi sua mãe.

— Então demito ela também.

Sorri, me inclinando levemente pra encará-lo nos olhos.

— Até amanhã, senhor William.

Virei as costas e saí, deixando ele ali resmungando sozinho.

Quando desci as escadas, encontrei dona Alexia na sala. Ela me olhou com aquele ar de e então?

— Vai continuar? — perguntou.

— Claro que sim. — Sorri. — Já passei por coisa pior. Gente amargurada não me assusta. Eu não desisto fácil.

— Ele precisa de alguém assim — ela disse, emocionada. — Alguém que não fuja na primeira resistência.

Assenti.

No carro, antes de ligar o motor, fiquei alguns segundos pensando nele.

Naquele olhar endurecido, naquele homem preso entre a culpa e o próprio corpo.

Eu já vi muitos pacientes quebrados pela dor, mas em Alexander havia algo diferente.

Um tipo de tristeza profunda, daquelas que nem a fisioterapia cura.

Mas eu também aprendi, ao longo dos anos, que até o mais duro dos corações reage ao toque certo.

E por mais impossível que paressa, eu estou disposta a tentar.

Porque às vezes, o trabalho não é só ensinar alguém a mover o corpo.

É ajudá-lo a lembrar que ainda tem alma.

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