Alexander

Alexander Narrando

Acordei antes do sol nascer. O quarto ainda estava na penumbra, mas o silêncio era pesado demais pra dormir de novo.

Não era mais o barulho do despertador que me acordava, e sim a consciência de que eu ainda estou vivo e inútil.

A cadeira de rodas ao lado da cama parecia me encarar. Um lembrete diário de tudo o que perdi. Eu olhei pra ela com raiva. Uma raiva que não tinha destino certo.

Ou talvez tivesse.

O relógio marcava oito da manhã quando ouvi passos no corredor.

Nem precisei olhar pra saber quem era.

— Bom dia, senhor William — a voz dela veio leve, animada demais pro meu gosto.

Revirei os olhos.

— Já te disseram que você fala alto demais pra quem chega cedo?

— Já me disseram que gente mal-humorada precisa de café. — Ela sorriu, colocando a bolsa no canto. — Quer que eu traga uma xícara?

— Quero que me deixe em paz.

Ela riu, como se nada a afetasse.

É irritante o quanto essa mulher parece imune ao meu mau humor.

— Hoje vamos fazer algo diferente. Um pouco mais de estímulo muscular.

— De novo isso?

— De novo. Até você colaborar.

Ela começou a preparar os equipamentos, organizando tudo com uma calma irritante.

Eu observava, fingindo desinteresse, mas era impossível não reparar nela.

Os movimentos firmes, o cabelo preso, a expressão focada.

Tinha um jeito profissional, e, ao mesmo tempo, humano.

Algo que eu evitava enxergar pra não me sentir vulnerável.

Quando ela se aproximou pra posicionar minhas pernas, meu corpo travou.

O toque dela, mesmo técnico, me incomodou.

— Não precisa encostar.

— Precisa sim — respondeu, sem se abalar. — Ou quer fazer sozinho?

Engoli seco.

— Você não entende o que é depender de alguém pra tudo.

Ela me olhou com calma.

— Eu entendo o que é perder o controle sobre a própria vida, Alexander.

Fiquei em silêncio, Por um momento, quase acreditei nela.

Mas logo voltei a vestir a armadura.

— Você acha que entende, mas não entende nada.

— Então me explica — ela disse, parando o movimento. — Me mostra o que eu não entendo.

A forma como ela me olhou me desarmou por dentro.

Mas eu não ia dar o gostinho.

— Não tem nada pra entender. Eu era feliz, agora não sou mais. Acabou.

— Felicidade não acaba, Alexander. A gente só esquece onde guardou.

Revirei os olhos.

— Essa é boa. Você dá aula de auto ajuda também?

Ela riu.

— Não. Só tento lembrar as pessoas que ainda dá pra tentar.

O toque dela voltou, firme, controlado.

A cada movimento, meu corpo reagia com espasmos involuntários.

Doía, e eu não sabia dizer se era físico ou emocional.

— Tá doendo.

— Eu sei.

— Então para.

— Não posso. Se eu parar agora, tudo que a gente fez nos últimos dias vai ser em vão.

Fechei os olhos com força, sentindo o suor escorrer pela têmpora.

O som do relógio na parede parecia marcar cada segundo da minha tortura.

— Eu não aguento mais isso, Norah.

Ela parou por um instante.

— Você aguenta. Só não quer.

Abri os olhos, encarando-a.

— Você não tem ideia do que eu quero.

— Então me diz.

E foi aí que a raiva explodiu.

— Eu quero que me deixem morrer em paz — gritei. — É isso que eu quero. Não quero fisioterapia, não quero terapia, não quero ninguém entrando nesse quarto achando que pode consertar o que já foi destruído.

O silêncio que se seguiu foi sufocante, Ela me olhou por alguns segundos, sem dizer nada. Depois respirou fundo, ajeitou o jaleco e falou baixo:

— Eu sinto muito por tudo que você perdeu, Alexander. Mas sentir pena de você não vai te devolver nada. A dor não é desculpa pra se esconder do mundo.

— Você não sabe o que tá dizendo.

— Sei, sim. — Ela me olhou firme. — E, por mais que você me odeie agora, um dia vai entender que eu só tô tentando te ajudar.

Pegou as coisas dela, guardou tudo com calma, e antes de sair, falou sem olhar pra trás:

— Amanhã eu volto.

— Não precisa voltar — murmurei. — Eu já te demiti, nem sei porque você voltou hoje.

Ela se virou, com aquele mesmo meio sorriso que me irritava.

— já falei que você não pode me demitir.

E saiu.

Fiquei ali, sozinho, a raiva fervendo dentro de mim.

Bati com força no braço da cadeira, e a dor subiu pelo ombro, me lembrando que até pra me machucar eu dependia do corpo que já não respondia.

Passei o resto do dia mudo. Não quis comer, não quis ver ninguém.

Minha mãe entrou no quarto mais tarde, tentou conversar, mas eu fingi dormir.

Eu sabia que a magoava, mas não conseguia fazer diferente.

À noite, o quarto ficou silencioso.

O barulho do vento batendo na janela me fez lembrar do som do carro antes do acidente, do grito da Julia, da última vez que ouvi a voz dela.

Fechei os olhos e vi o rosto dela sorrindo.

A lembrança era tão viva que me cortava.

E então, de repente, a cena de hoje voltou à minha cabeça.

A forma como eu gritei com Norah. O olhar dela firme, mas triste.

Ela não respondeu com raiva. Só com empatia.

E aquilo me desmontou.

Peguei o copo d’água da cabeceira e percebi que as mãos tremiam.

Eu me odeio por ser assim. Por afastar quem tentava me ajudar.

Mas é mais fácil ser cruel do que admitir que eu estou quebrado.

Suspirei, olhando pro teto. A luz da lua entrava pela fresta da cortina, iluminando o quarto pela metade.

Ela volta amanhã, pensei. E, por algum motivo, essa ideia não me pareceu tão ruim quanto de manhã.

A raiva ainda tava ali, mas algo diferente começava a se misturar.

Um tipo de vergonha. De arrependimento.

Porque, pela primeira vez, alguém me olhou sem ver apenas um inválido.

E eu paguei isso com grosseria. Fechei os olhos e murmurei no escuro:

— Me desculpa, Norah.

Não sei se era um pedido sincero ou só um pensamento perdido, mas foi o mais perto que cheguei de paz desde que acordei.

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