Mundo de ficçãoIniciar sessãoChegamos à fazenda. Vitor me ajudou com as sacolas e entramos pela porta dos fundos, que dava direto na cozinha.
— O patrãozinho já chegou na cidade — comentou Maria assim que nos viu. Ela estava toda eufórica. Não escondi minha cara de desprezo. — Se a dona Carmen ver você torcendo esse nariz só de ouvir falar do filho dela, não vai dar bom resultado — Maria me repreendeu. — Não consigo fingir nem esconder meus sentimentos. Não gosto desse borra-bostas. Pra mim, ele é um idiota de verdade — retruquei. Ela balançou a cabeça, desaprovando meu jeito. — Pois eu não sei de nada. Nem fede nem cheira. Só vou dar minha opinião quando conhecer o patrão — disse Vitor. — Como se a opinião de vocês dois fosse mudar quem ele é. O patrão de vocês — zombou Maria. — Meu patrão é e sempre será o seu Joaquim. Esse sim era gente fina. Lembra, Vitor, quando ele vinha roçar a terra com a gente? Contava aquelas histórias de quando herdou essa fazenda, de como foi difícil no começo... É uma saudade que maltrata — falei, sentindo os olhos marejarem só de lembrar. Apoiei-me no balcão da cozinha e deixei as boas lembranças virem. Vitor sorriu e acenou de leve. — Lembro sim, não tem como esquecer — disse, soltando um suspiro. — Sem ele aqui, parece que uma nuvem de tristeza cobriu toda a fazenda — concluiu, servindo-se de café. — Era gente como a gente, sempre no meio dos empregados, quase nunca com os ricos — completou Maria, enquanto abria as sacolas e começava a guardar as compras. — Mas vamos deixar de conversa e preparar o almoço. Daqui a pouco dona Carmen vem conferir o andamento — me apressou, batendo em mim com o pano de prato. — Tem razão. Vamo trabalhar — falei, indo até a pia para lavar as mãos. — Eu já vou indo — disse Vitor, caminhando até a porta. Antes de sair, voltou-se para mim: — Minhas roupas te esperam, hein? — falou com aquele sorriso cínico, jogando um beijo no ar antes de sair. Maria me encarou sem entender nada, abrindo as mãos num gesto de cobrança. Eu, claro, não ia contar a verdade. — É que a gente fez uma aposta e eu perdi. Agora vou ter que lavar a roupa desse folgado por duas semanas — expliquei, desviando o olhar. — Cês dois são um caso sério — murmurou, voltando ao trabalho. Fiz o mesmo: separei os ingredientes, cortei os temperos frescos, depois os legumes e, por último, as carnes. Maria já havia deixado o arroz pré-cozido; a panela de pressão chiava, espalhando o cheiro de feijão por toda a cozinha. Enquanto isso, reli a receita, conferindo se não faltava nenhum ingrediente. — Ora, se não é fresco... carne ao molho de vinho tinto com cogumelos. Devia era colocar esterco de boi aqui dentro — murmurei enquanto grelhava as carnes. — Capaz de o patrão até morrer depois de comer essa comida que você tá fazendo com tanto amor — ironizou Maria. — Pois que morra — sussurrei, mais pra dentro do que pra fora, sabendo bem o peso que era desejar a morte de alguém. Maria me lançou um rabo de olho. Não era ódio o que eu sentia por Álvaro — não ao ponto de querer o mal dele. Mas meu humor estava péssimo desde o incidente no mercado, talvez por ter saído de uma briga sem a sensação de vitória. Melhor esquecer. Afinal, eu não ia nunca mais ver aquele imbecil. Respirei fundo, foquei no trabalho e decidi cantar para espantar a raiva. E funcionou: enquanto eu cantava e fazia o que amava, o bom humor foi voltando aos poucos. Depois de grelhar as carnes, usei a mesma panela para o molho, aproveitando o fundo deixado pela carne — isso dava ainda mais sabor. Refoguei os temperos, despejei o vinho e o chiado tomou conta quando o líquido frio encontrou a panela quente. O aroma subiu, delicioso. Acrescentei um pouco de água e deixei o molho engrossar. O ronco alto de um motor lá fora avisou que o intruso havia chegado. Maria correu para ver. Eu? Nem fiz questão. Assim que o molho chegou ao ponto, acrescentei os cogumelos, desliguei o fogo e tampei a panela. Enquanto o calor terminava o cozimento dos cogumelos, arrumei os bifes como mostrava a foto no celular. O gran finale: reguei a carne com o molho. O prato ficou lindo e saboroso. Até que esse negócio chique não era ruim... mas ainda prefiro a galinhada da Maria. Com tudo pronto, comecei a organizar a bagunça da cozinha. Maria voltou com um sorriso largo e os olhos marejados. Ah, bobagem — tudo isso só por causa desse fulaninho ingrato. — Senhor Álvaro, está tão lindo! Nem parece o jovem franzino que saiu daqui... braços fortes, um homão de encher os olhos de qualquer moça — comentou, orgulhosa. Eu apenas revirei os olhos. Duvido que ele seja mais bonito que aquele sujeito com quem briguei no estacionamento. Que loucura pensar nisso. Sai disso, Cecília — me repreendi, balançando a cabeça para espantar os pensamentos bobos. Sem cerimônia, deixei que Maria servisse a comida e fui para minha casinha. Peguei a vasilha com um pouco da carne ao molho que separei para provar e segui caminho. Sei que, mais cedo ou mais tarde, o momento de encontrar o tal Álvaro chegaria, mas, se pudesse, ia retardar isso o quanto desse. Cheguei ao meu cantinho, esquentei meu almoço e preparei o prato: um pedaço da carne, com o restinho do molho por cima do arroz. Fui para a varanda — adorava comer observando as plantações. Sentei-me no banco de madeira, o estômago roncando de fome. Quando dei a primeira garfada, fechei os olhos — o trem era bom mesmo. Não acredito que estou admitindo isso... — Quer dizer que você também aprecia comida chique? — A voz grave de Vitor me assustou; eu tossi, engasgando com a comida. Ele pulou a mureta da varanda e, com aquelas mãos pesadas, bateu nas minhas costas. Quando consegui me recompor, só queria matar o Vitor. — Ora, Vitor, miserável! Quer me matar do coração? — gritei, sentindo o sangue ferver ao vê-lo rindo, divertindo-se com minha cara. — Uai, não foi você que estava criticando a comida chique? Que o patrão era fresco? E agora está aí com esse bifão, chegou a fechar os olhos! — zombou. Peguei a vassoura ao lado e, sem pensar duas vezes, dei uma carreira nele. Ele pulou pela mureta, e eu pulei atrás. — Volta aqui, Vitor! Vou quebrar essa vassoura nas suas costas! — gritei, correndo atrás dele. O filho de égua era mais rápido, e nessa correria nem percebi que já estávamos perto da casa sede. O miserável subiu no pé de manga e, de lá, rebolava a bunda, me provocando. — Desgraçado! Ocê desce daqui, Vitor, seu filho de égua braba — esbravejei. Olhei no chão e catei algumas pedras. — Suba aqui para me pegar, poltranca — provocou, com sorriso zombador. Isso só me deixou mais enfurecida. — Cê escolhe vasourada ou pedrada? Minha mira é boa, tu já sabe — ameacei, mirando nele. Ele riu mais ainda. Mandei a primeira pedra e ele desviou. Quando ia lançar a segunda, ele apontou como se tivesse alguém atrás de mim. — O patrão — falou, arregalando os olhos. — Acha que vou cair nessa? Tu quer escapar, que eu sei — gritei. — E já te falei que aquele borra-botas fresco não é patrão coisa nenhuma — e ergui a mão para lançar outra pedra. Mas uma mão segurou meu punho e me impediu. Arregalei os olhos; meu coração até esqueceu de bater por alguns segundos. Vitor fez uma careta que deixava claro que eu estava na merda. — Quem é borra-botas? — a voz grave, familiar, ecoou atrás de mim. Engoli em seco e olhei de soslaio. Vi um antebraço com veias saltadas e uma tatuagem de cruz. Tentei recuar sem encarar a encrenca, mas antes que eu desse um passo, meu corpo girou e, à minha frente, havia um peitoral largo. Devagar subi o olhar e então vi aqueles mesmos olhos de jabuticaba. Deu ruim.






