Mundo ficciónIniciar sesiónRio de Janeiro...
São mais de dez anos sem pisar naquela fazenda. Lembro que meus últimos dias ali foram infernais: meu pai não aceitava, de jeito nenhum, que seu único filho resolvesse ir embora. Eu não podia viver os sonhos que ele sonhara para mim, porque tinha os meus próprios. Queria conhecer o mundo, saber como era do outro lado, o que havia depois das porteiras da fazenda Horizonte. Recordo-me como se fosse hoje. Eu tinha uns dezenove anos. Arrumei minhas malas, peguei algumas economias e, quando fui me despedir dele, ele estava em pé, olhando pela janela. Aproximei-me, mas ele não me olhou. Apenas disse: — Se sair por aquela porteira, esqueça o caminho de volta. E assim fiz. Com o coração doendo, respirei fundo e parti. Minha primeira parada foi em São Paulo. Minhas economias não duraram três meses. Trabalhei numa loja de produtos agronômicos — era a única coisa que eu conhecia — e, à noite, como garçom. Muitas vezes, quando a dificuldade apertava, fiquei tentado a voltar para casa. Chorava ao lembrar dos vastos pastos verdes, do conforto que tinha e da fartura da fazenda, enquanto eu vivia em um quarto pequeno, de paredes mofadas, comendo miojo como única refeição do dia. Mas meu orgulho e minha vontade de provar que meu pai estava errado me deram forças para continuar. Sempre que minha mãe ligava, eu mentia, dizendo que estava muito bem e adaptado. Mal imaginava ela que eu sequer sabia usar o metrô. Fazia sinal com a mão, como se fosse ônibus, até que uma moça simpática me explicou que não precisava: o metrô parava em todas as estações. Eu, um verdadeiro xucro na cidade grande. Um ano se passou, e eu já havia aprendido muita coisa. Entrei na faculdade com a nota do Enem e cursei Economia. Depois, fui morar no Rio de Janeiro, onde consegui um emprego em um banco. Fiz mais alguns cursos e, aos vinte e seis anos, já era gerente. Tinha um bom salário, o que me permitiu conhecer vários lugares do Brasil. Logo, conheci outros países. Em uma dessas viagens, acompanhado de pessoas milionárias, ganhei a simpatia de um deles, o senhor Franklin, que me confiou sua empresa. Hoje sou CEO de uma multinacional, onde trabalho há mais de três anos, executando com excelência a confiança que me foi dada e fazendo a empresa triplicar seus rendimentos. Olhando para trás, sinto orgulho da minha trajetória. Mas não posso dizer que valeu a pena — não quando o remorso grita dentro de mim. Não quando não estive lá para dar o último adeus ao meu velho pai. Ele morreu sem ouvir meu pedido de perdão. O tempo não volta mais, e agora vou ter que viver não só com a dor da perda, mas também com a dor de não ter aproveitado meus dias de folga para ir até a fazenda e dizer: “Me perdoa, meu velho. Te amo. Seus ensinamentos me acompanharam por onde passei, e sou quem sou hoje graças a cada palavra de instrução que o senhor me deu.” A mala em cima da cama recebeu as últimas peças de roupa. Ficaria uns quinze dias na fazenda. Guardei meu notebook e tudo de que precisaria para trabalhar de lá. Dia seguinte... O avião pousou no aeroporto de Curitiba; eu me sentia ansioso e nostálgico ao mesmo tempo, com lembranças que era impossível não reviver. Após desembarcar, peguei um táxi e fui até a locadora buscar o carro que havia alugado alguns dias antes. Ao chegar à locadora, assinei os termos e peguei as chaves da Toyota Hilux Diamond. Despedi-me do locador, que era amigo de um colega meu, e saí. Depois de guardar minha mala, entrei no carro, coloquei o cinto de segurança e dei partida — rumo ao meu passado, retornando às minhas raízes. Depois de uma hora e meia na estrada, eu só pensava em uma coisa: quero chegar logo. Tentando conter a ansiedade, que fazia o tempo parecer se arrastar, abri os vidros do carro e deixei o ar de fora entrar. O cheiro de mato já me fazia sentir em casa. Dirigi por mais alguns minutos até chegar a Castro. Estava com fome e sede. Ao entrar na cidade, lembrei-me de quando era moleque e vinha até aqui com meus pais fazer compras. Muita coisa mudou. O asfalto liso da entrada de Castro refletia o sol forte das dez da manhã. A cidade parecia tranquila, com um movimento típico do interior — poucos carros, motocicletas cruzando de um lado a outro e pedestres andando sem pressa pelas calçadas estreitas. As primeiras placas indicavam o centro. Entrei dirigindo devagar, observando tudo, e logo à frente vi um grande supermercado. Esse é novo, pensei, reparando na placa amarela com letras pretas que chamava minha atenção. Parei para comprar água. Entrei primeiro no estacionamento aberto, mas preferi seguir até o interno, coberto. O supermercado era grande e bem iluminado. Peguei dois fardos de água com gás e fui até o refrigerador, onde retirei uma garrafinha gelada para beber. Após fazer o pagamento, coloquei os fardos no carrinho e segui para o estacionamento. Ao chegar, acomodei as compras no bagageiro da Hilux e voltei para deixar o carrinho no local apropriado. Enquanto retornava para o carro, Lorenzo, meu assistente, ligou para falar sobre as reuniões que eu havia pedido para reagendar: — O senhor Nelfrodo disse que a reunião pode ser por videochamada. Ele quer saber se pode ser amanhã — informou Lorenzo. Quando eu ia responder, ouvi alguém gritar. Virei-me e vi uma moça dentro de um carrinho de compras, vindo na minha direção em alta velocidade. Na tentativa de evitar que o carrinho batesse em mim, segurei-o com força. O impacto foi forte, e meu celular escapou da minha mão, espatifando-se no chão. Senti a raiva subir. Na verdade, meus sentimentos já estavam à flor da pele — e aquele momento foi apenas a gota que faltava para transbordar o copo. Agir de forma grosseira com aquela moça — admito —, mas ela bem que mereceu. E a danada não ficou atrás: respondeu à altura. Como pode alguém tão pequeno ser tão valente daquele jeito? Se não fosse pelo namorado para contê-la, acho que ela teria partido para cima de mim sem pensar duas vezes. Não querendo prolongar a discussão, dei minhas últimas palavras e saí dali, ainda sentindo o sangue fervendo nas veias. Meu celular estava quebrado e, antes de voltar para a estrada, parei em uma loja para comprar outro. Assim que finalizei a compra e tive todo o trabalho de recuperar meus dados, segui caminho rumo à fazenda. Durante boa parte do trajeto, não conseguia tirar aquela moça da cabeça. Maluca! Parecia uma criança... Estava errada e ainda me deu prejuízo. Senti o pescoço enrijecer de tanta tensão. Já estava na metade do caminho quando o celular começou a vibrar — era o Lorenzo. Atendi e, retomando o assunto anterior, confirmei a reunião por videochamada. — Mais algum assunto, Lorenzo? — perguntei. — Não, senhor. Qualquer mudança, eu aviso. Tenha um bom dia — respondeu ele. — Certo. Bom dia pra você também — encerrei a ligação. De volta aos meus pensamentos, senti o coração acelerar ao reconhecer a velha estrada. Uma placa à beira do caminho indicava: “Fazenda Horizonte — 8 km.” Entrei pela estrada de terra. Os pastos verdinhos, as grandes araucárias com sua beleza imponente compunham uma paisagem que parecia congelada no tempo. Suspirei fundo, tomado pelos sentimentos que me atravessavam o peito. A lembrança de uma fotografia minha com meu pai, tirada sob uma daquelas araucárias, me veio à mente. Lágrimas silenciosas escorreram, embaçando minha visão. Parei o carro por um instante, tentando me recompor. Difícil acreditar que, há apenas um mês, ele estava forte, saudável — e agora se foi tão de repente. Meu velho se foi, e eu nem pude me despedir. Respirei fundo, liguei o carro e segui. Conforme me aproximava, avistei o gado pastando e, mais adiante, a cachoeira — meu lugar favorito na fazenda. Lembrei que, todas as manhãs, meu banho ali era sagrado. Amanhã eu voltaria a fazer isso. Pouco depois, vi um cavaleiro vindo pela estrada. Era o Bento. Um sorriso me escapou ao reconhecer meu velho amigo. Buzinei para chamá-lo; ele puxou a rédea do cavalo e tirou o chapéu da cabeça. Parei o carro e desci. — Chico Bento! — gritei. Assim que me reconheceu, ele abriu um largo sorriso, bateu na traseira do cavalo e veio em minha direção. Quando chegou perto, desmontou e me abraçou com força. — Minha nossa senhora! O que ocê andou comendo, homem? Tá parecendo um touro de forte! — brincou ele. Puxei-o para outro abraço. — Que saudade, meu amigo... cresci um pouco, né? — respondi, rindo. Ele se afastou, botando as mãos na cintura. — Cresceu um pouco? Que nada! Nem parece o mesmo que saiu daqui. Cê fez uma falta danada, Álvaro. — disse com um tom de tristeza. — Também senti muita falta de todos — abracei-o de novo. Conversamos um pouco, e ele me contou as novidades da fazenda. — Melhor o senhor ir logo, que dona Carmen está que não se aguenta pra lhe ver — comentou. Bati em seu ombro, sorrindo. — É melhor eu ir mesmo. Te espero lá pro almoço. — Daqui a pouco apareço, sim — respondeu ele, antes de montar no cavalo novamente. Segui viagem. Faltava pouco mais de um quilômetro. Logo vi a grande porteira com a peça de madeira talhada com o nome da fazenda me dando boas-vindas. Um dos peões, ao me ver, correu para abrir. — Dia, senhor — cumprimentou. — Bom dia! — respondi. Até a casa-sede, o caminho era ladeado por araucárias que formavam um corredor imponente. Minha mãe estava na varanda. Quando me viu, correu em minha direção. Parei o carro e desci apressado. Ela se jogou em meus braços, chorando sem conseguir dizer uma palavra.






