Mundo de ficçãoIniciar sessãoA caminho da cidade, eu e o Vitor brigávamos pelo som: ele pulava as músicas que eu mais gostava. Quando começou a tocar “Saudade da Minha Terra”, meu peito apertou — a canção sempre me lembrava do meu falecido paizinho.
— Deixa essa, Vitor, por favor? — insisti. Ele me olhou de lado, sorriu de canto e acabou cedendo. Desviou o olhar para os meus pés, que descansavam sobre o painel. — Você é muito abusada, Cecília. Tira os pés do painel do carro — resmungou. Encolhi os ombros e passei a cantarolar baixinho. — Essa música é muito triste, Cecília — reclamou, e eu passei a cantar mais alto. — Vontade de deixar cê ir a pé não me falta. — Você não teria coragem... — Continua me provocando e vai ver que tenho, sim — ameaçou. Pelo tom, era melhor não testar sua paciência. — Tá bom, parei. É que essa era a música preferida do meu pai, Vitor. Ele sempre cantava enquanto trabalhava na lavoura ou limpava as baias da fazenda. As lembranças vieram todas de uma vez; o coração doeu. — Seu pai era um homem muito bom... Lembro quando íamos à cidade comprar adubo e ele contava histórias da infância — disse Vitor, com um sorriso nostálgico. — Era um homem alegre. A saudade me apertou quando ele trouxe à tona aquelas memórias. Ele imitou meu pai, contou mais causos, e eu me peguei rindo entre lágrimas. — Não chora, Cecília. Não gosto de te ver chorando... Gosto mais de te ver sorrindo, seu sorriso é lindo — tentou consolar e logo, no seu jeito xucro, desligou o som do carro. — Chega de música, vocês mulheres são muito sensíveis. Que machista. — Fique sabendo que só choro pelo meu pai, só por ele — retruquei, enxugando as lágrimas. — E por amor? — Por amor, o quê? — pergunto, sem entender. — Nunca chorou por um amor? — Sua pergunta me faz rir. — O que tem de engraçado na minha pergunta? — questiona, tirando o seu chapéu e batendo de leve na minha cabeça. — Eu nunca tive um namorado, como vou chorar por amor? — Nunca teve porque não quis. Já me cansei de correr atrás de você quando éramos adolescentes. Suas palavras me arrancam um riso irônico. — Até ontem você fazia isso — jogo na cara dele. — Já passei dessa — disse, emburrado. — Agora tô em outra. — E quem é, hein? — cutuquei sua barriga. — Para de fazer isso, vai me fazer bater o carro, maluca. Cê não conhece. — Então é mentira — provoco. — Não vou cair nesse seu jogo. Quer me fazer falar, mas eu não digo nada. Ele me conhece bem. Essa tática não funciona. — Deve ser feia e por isso você tá com vergonha de dizer — continuo provocando. Pra não me ouvir, ele liga o som do carro no volume máximo. Sabendo que ele não tocaria mais no assunto, recostei a cabeça no banco, fechei os olhos e fui todo o restante do caminho em silêncio. Quando chegamos à cidade, vamos direto ao supermercado. Pego um carrinho e começo a escolher os itens da lista. Assim que termino, seguimos pro caixa, e Vitor faz o pagamento. Olho pra ele, e ele já sabe o que vou pedir. — Nem pensar, hoje não tô com clima pra isso — diz, balançando o dedo indicador. — Se me empurrar no carrinho, juro que volto em silêncio e ainda lavo suas roupas essa semana. Ele põe as mãos na cintura, fazendo aquele bico que me diz que consegui convencê-lo. — Te amo, Vitor — falo, pulando dentro do carrinho de compras. — Você é uma criança no corpo de uma jovem de vinte anos, só pode — ele resmunga. Olho para ele e ordeno: — Não reclama e empurra logo esse carrinho! Ele começa a empurrar o carrinho devagar, mas, quando chegamos no estacionamento, já olho pra ele fazendo minha cara travessa. — Ah, não, Ceci, nem vem! Da outra vez quase batemos no carro daquela senhora — diz, balançando a cabeça em negativa. — Só essa vez, Vitor, por favorzinho! Lavo suas roupas por duas semanas — suplico, piscando os olhos repetidas vezes. Ele solta um suspiro. — Tá bom, mas vai lavar minhas roupas por duas semanas — diz, dando um tapa de leve na minha cabeça. Os carros estão estacionados de um lado e de outro, formando um corredor com leve descida. Adoro quando Vitor empurra o carrinho e me deixa deslizar até o final, onde o carrinho de compras só para quando b**e na parede. Ele puxa o carrinho um pouco para trás e me dá um leve impulso. Ergo as mãos para o alto, sentindo aquele friozinho na barriga enquanto o carrinho desliza pelo corredor. O barulho das rodinhas em atrito com o chão ecoa por todo o estacionamento. Fecho os olhos por míseros segundos. E, quando abro, um homem alto surge do nada, distraído, falando ao telefone. — Sai da frente, moço! — grito, mas é tarde demais. A distância entre o carrinho e ele é curta. Fecho os olhos, esperando o impacto. Sinto um solavanco, meu corpo indo para frente e para trás. — Você é doida? — a voz grave e irritada me faz abrir os olhos. Um par de olhos cor de jabuticaba me encarava, furioso. O homem tirou o chapéu e respirou fundo, visivelmente irritado. Assustada, não consigo dizer nada. — Quebrou meu celular! Porra! Estava numa ligação importante, sabia? O que tem nessa cabeça? Pelo jeito, nada, né? — esbraveja, gesticulando com as mãos, me deixando ainda mais nervosa. Ele me chamou de doida? Foi isso mesmo? — Doida é a sua mãe, seu imbecil! Tenho culpa de que você fica distraído nesse seu celular? — retruco. Ele me fulmina com seu olhar. — Sua irresponsável! Acha que está no direito de me insultar? Você está errada, descendo nesse carrinho pelo estacionamento! Pensa que está no parque de diversões, sua maluca! Meu sangue ferve. Saio do carrinho e encaro a batata dos olhos negros daquele metido. — Vai plantar banana, seu abestado! Isso aqui pode não ser parque de diversões, mas posso me divertir, e quando desci no carrinho não tinha ninguém, só pra você saber! — respondo com toda rispidez. — Peça desculpas ao moço e vamos embora, Cecília — pede Vitor, assim que se aproxima. — Você escutou o que ele falou comigo? Não vou pedir desculpas! Até poderia, se ele não tivesse me ofendido — rebati, Vitor me olha feio. Ele suspirou e olhou para o homem. — Desculpa. Ela é meio... — girou o dedo perto da cabeça. Belisquei o braço dele, furiosa. — Tudo bem. Só controla essa sua namorada — disse o sujeito, virando as costas. Quando vou abrir a boca pra gritar que não sou namorada de Vitor e mandar esse boco ir cagar no mato, Vitor cobre minha boca com a mão. — Chega, Cecília. A gente calado ainda tá errado — adverti. Afastei a mão dele bruscamente. — Sei que estamos errados, mas ele não tinha o direito de falar comigo daquela maneira — digo entre dentes, meu rosto queimando de tanta raiva. Ele me abraça, beija o topo da minha cabeça. — Melhor irmos, pra você fazer o almoço do patrão — zomba. Estreito os olhos para ele. — Me deixa! Saio dos seus braços e vou na direção da caminhonete pisando alto. Entro na caminhonete, brigando com aquele moço na minha cabeça, pensando nas coisas que devia ter dito e não me vieram à mente. Após guardar as compras na carroceria, Vitor entra no carro, olhou pra mim e riu. — Ele estava certo, você é maluquinha — diz num tom divertido. Mas mantenho a cara fechada sem dizer uma palavra. — Ia até passar na sorveteria pra te comprar um sorvete, mas acho que cê não vai querer, né? — completa, com sorriso cínico. Amo sorvete, e nem sei quando vou voltar à cidade de novo. Melhor ficar de bem com o Vitor. — Um cascão caprichado, de chocolate — murmurei, rendida. Vitor balançou a cabeça, rindo, e deu partida. O ronco da caminhonete tomou conta do estacionamento, levando com ele o resto da minha raiva.






