— Aonde você pensa que está indo?
A voz do Sr. Alfredo cortou o ar como uma faca. É claro que ele viria atrás de mim. Eu já esperava. Ele sempre vinha. Era o dono do restaurante mais caro desse shopping de luxo, onde gente com bolsas de grife entrava e saía como se o mundo fosse deles — e talvez fosse. Mas naquele momento, eu já tinha sido humilhada o suficiente.
Ainda sentia o gosto daquele beijo forçado, a vergonha de ter sido puxada para fora por um estranho arrogante de terno bem cortado, que provavelmente nem sabia o que significava lutar por um salário mínimo. E eu? Eu, que só queria terminar meu turno em paz, acabei no meio de uma cena patética, obrigada a me defender com um tapa que ainda ardia mais em mim do que nele. Agora, estava prestes a perder meu emprego por algo que nem sequer comecei.
— Não precisa nem se dar o trabalho de berrar, Sr. Alfredo — respondi, com os ombros caídos e a dignidade quase arrastando pelo chão. — Estou indo ao armário pegar minhas coisas. Sei muito bem que estou demitida.
Ele parou. Ficou em silêncio. Não esperava aquilo. Talvez achasse que eu imploraria de novo. Que cairia de joelhos, como na última vez em que quase chorei por um turno extra. Só que hoje, não. Hoje eu só queria sair dali com o resto de orgulho que me sobrava.
— Exato. Você está demitida — ele declarou, esperando que suas palavras tivessem o peso de um golpe.
Mas não tiveram.
— Que seja. Eu não gostava de trabalhar para um chefe arrogante e ditador como o senhor mesmo. — Respirei fundo, contendo a vontade de gritar. — O senhor faz ideia do que pessoas como eu passam todos os dias só pra chegar até aqui? A culpa não foi minha. Eu nem conhecia aquele homem!
— Não era o que você estava dizendo. — Ele me apontou o dedo, como se isso provasse alguma coisa.
— Não, claro que não. Mas isso o senhor nunca vai querer ouvir, né? A verdade não interessa. Então me demita logo e me deixe ir embora. Eu tenho uma vida pra tentar consertar lá fora.
Fui embora antes que ele pudesse responder. Porque naquele momento, mais do que tudo, eu precisava salvar a mim mesma.
Ai, universo… olha, eu juro que não sou do tipo que chora por leite derramado — ainda mais quando nem fui eu quem o derramou. Mas será que dá pra dar uma trégua? Só um pouco de alegria, uma pitada que seja, só pra eu lembrar que você ainda olha por mim?
Como se já não bastasse ter sido abandonada pela minha mãe depois da morte do meu pai… Fui criada por uma mulher digna, sim. Minha avó é a pessoa mais honesta que já conheci na vida. Mas não era a mesma coisa. Não preenchia o buraco que ficou. Meu irmão se tornou uma revolta ambulante. Eu tentava segurar tudo — cuidar da minha avó doente, proteger minha irmãzinha que, coitada, mal entende o que está acontecendo. Ela era só um bebê quando nossa mãe foi embora.
E agora, aqui estou. Demitida. De novo. Me virando em três por um único emprego que mal paga o aluguel. Como a gente vai pagar a luz? A água? Como vamos comer essa semana?
Desculpa, Deus… não quero te desafiar, nem questionar teus planos. Mas será que o Senhor podia, só por um momento, lembrar de mim também?
Com os olhos ardendo, desci do ônibus e comecei a andar sem rumo. As ruas já estavam escuras. Eu não queria, mas sabia que teria que contar pra minha avó. Só não sabia como. A cabeça latejava. O estômago revirava. Meu mundo parecia desabar mais uma vez.
Foi então que eu vi. Um movimento estranho no canto escuro de um beco. Nada incomum por ali — o nosso bairro nunca foi flor que se cheire. Andar por aquelas ruas depois do pôr do sol era como jogar roleta russa. Mas alguma coisa me fez olhar de novo.
E foi aí que vi. Meu coração quase parou.
Era meu irmão.
Ele estava caído, sendo espancado por três brutamontes que pareciam ter saído de um pesadelo. Sem pensar, corri até eles. O instinto gritou mais alto do que o medo.
— Deixa o meu irmão em paz, seus idiotas! — berrei, pulando nas costas de um deles.
Ele se sacudiu com raiva até me jogar no chão. A dor explodiu nas minhas costelas. Meu irmão gritou:
— Deixa ela! — mas era tarde demais.
O homem virou para mim, os olhos cheios de raiva e desprezo. Agarrou o colarinho da minha blusa e me ergueu no ar com uma facilidade assustadora. Eu tentei lutar, mas quando encarei aqueles olhos, senti o sangue gelar.
Eles não eram homens comuns.
Eram perigosos. Muito perigosos.
— Hora, hora. Quem é essa?
Os sinais estavam todos ali. Homens altos, mal encarados, vestindo preto da cabeça aos pés, tatuagens sombrias marcando os braços, pistolas à mostra, como se não dessem a mínima para as leis ou para quem estivesse olhando. Mas, naquele momento, eu não enxergava mais nada além do meu irmão, caído no chão, coberto de sangue.
Eu só queria protegê-lo. Só isso.
Mas quem eu estava tentando enganar? Eu não era uma heroína, muito menos uma supermulher. E se eu não podia protegê-lo, quem iria me proteger? O próprio idiota que tinha se metido com esse tipo de gente?
Eu nem precisava ouvir a história toda para entender. Era sempre a mesma coisa. Meu irmão se metia em dívidas que não podia pagar, com pessoas que não podia enfrentar, e quem acabava no meio da confusão… era eu.
— Isso não tem nada a ver comigo! — gritei, sem conseguir controlar minha boca. — O que ele fez? O que vocês estavam fazendo com ele?
Um dos homens, o mais alto, o mais velho, se virou devagar. O olhar dele cortou o ar como uma lâmina. Mas eu não me calei. Não conseguia. Olhei para meu irmão, ainda sentado no chão, encostado na parede, o rosto inchado, o medo escorrendo pelos olhos. Eu também estava com medo. Muito medo. Mas a minha língua, como sempre, ignorava a prudência.
— Diga logo — continuei, mesmo sentindo o corpo tremer. — Quanto ele deve?
O homem arqueou uma sobrancelha, surpreso com a ousadia. Um sorrisinho malicioso surgiu em seus lábios rachados.
— Irmã, é? — murmurou, olhando de mim para o meu irmão. — Interessante… Parece que achamos o ponto fraco.
A frase dele entrou pelos meus ouvidos como um trovão. Mas eu não recuei.
— Sim, sou a irmã. E sei que ele vive devendo pra todo mundo. Então, diga logo o valor, pra ver se ainda tem alguma salvação.
O homem deu uma risada seca.
— A dívida dele era cem mil.
— Cem mil? — a palavra saiu da minha boca como um grito. — Como você gastou cem mil dólares?!
Claro que ele não respondeu. Estava ocupado demais tentando respirar. E antes que eu pudesse pensar em qualquer solução, o homem completou:
— Mas agora, quero o dobro.
— O quê? — minha voz saiu engasgada. — D-duzentos mil?
— Pelo trabalho que tivemos em vir cobrar. — Ele sorriu com escárnio. — Vinte e quatro horas. É o que você tem. Sem drama, sem polícia, sem gracinha.
Um silêncio mortal se formou.
Então, como se aquilo tudo tivesse sido apenas um aviso, o homem que me segurava pelos ombros finalmente me soltou. Os três se afastaram, como se fossem donos da noite, e desapareceram no escuro, deixando para trás o cheiro de cigarro, sangue… e desespero.
Só restávamos nós dois naquele beco sujo.
Eu e o meu irmão.
E uma dívida que podia acabar com nossas vidas.