Daphne
Mais um novo dia começava, e eu me sentia como se não tivesse dormido nem meia hora. O corpo pesado, os olhos ardendo. Mas, como sempre, eu iria me atrasar. De novo. Só que hoje era diferente. Minha irmãzinha amanheceu com febre, e por mais que meu trabalho exigisse responsabilidade, não havia como simplesmente ignorar isso.
Antes mesmo da vovó acordar, eu já estava na cozinha, preparando o café. Quando ela surgiu, ainda sonolenta, eu a avisei sobre a febre da pequena. Ela, como sempre, se manteve firme e disse que cuidaria bem dela. Preparei os remédios, deixei tudo organizado. Já estava quase saindo quando a porta começou a ser golpeada com tanta força que pensei que fosse arrancada das dobradiças.
Respirei fundo. A irritação cresceu no mesmo instante. Quem batia assim logo cedo? Quando abri, meu coração deu um salto. Era o senhorio, o dono do apartamento, o tal do senhor Alberto. Baixinho, com poucos fios de cabelo e aquele bigode esquisito que sempre parecia molhado. E bravo. Sempre bravo.
Ele me encarava como se eu tivesse feito algo imperdoável. Eu, confusa, tentei manter a calma.
— Achei que não ia encontrar ninguém — ele resmungou. — Vocês estão fugindo de mim? Acha mesmo que vou suportar isso? Ou me paga o aluguel, ou coloco vocês pra fora. Hoje.
Arregalei os olhos, surpresa. Aquilo era um absurdo.
— Como assim? — perguntei, sem esconder a indignação. — Senhor Alberto, nós sempre pagamos em dia. Todos os meses, no mesmo dia. Eu mesma peço para o meu irmão fazer o pagamento. Não entendo por que está dizendo isso.
Ele soltou uma risada amarga, como se estivesse cansado.
— Seu irmão não paga há dois meses. Eu relevei por causa da sua avó, porque gosto de vocês. Mas não dá mais. Ou me paga agora, ou estão fora.
Engoli seco. Dois meses? Dei um passo para trás, tentando digerir a informação. Cruzei os braços, sentindo o coração acelerar. Eu dava todo mês o dinheiro ao meu irmão. Dinheiro suado. Confiava nele. E agora isso?
— Me desculpe, senhor Alberto. Eu... eu realmente não sabia. Entreguei o dinheiro nas mãos dele. Confiei. Mas parece que ele... não fez o que devia.
Falei baixo, mais para mim mesma do que para ele. A raiva começava a subir. Eu queria socar alguma coisa — de preferência, o rosto do meu irmão.
— Eu tenho algumas economias — completei, decidida. — Vou pegar o dinheiro.
Entrei batendo os pés no chão. Minha avó me olhou, preocupada, mas fingi que estava tudo bem. Não queria que ela soubesse. Seria uma decepção descobrir que o próprio neto estava usando o dinheiro do aluguel pra... seja lá o quê.
Fui até o quarto, abri minha caixinha de emergência. Eram dólares que eu vinha guardando para uma necessidade verdadeira — uma cirurgia, uma internação, algo grave. Isso era grave. Peguei o equivalente e voltei à porta.
— Aqui está. Me perdoe por isso — disse, estendendo o dinheiro.
Ele contou ali mesmo, na minha frente. Depois balançou a cabeça, com aquele olhar de quem sabia mais do que dizia.
— Se eu fosse você, não confiava tanto no seu irmão. Você não sabe com quem ele anda se metendo.
E, com isso, virou as costas e foi embora, me deixando com o coração apertado e a cabeça cheia de perguntas.
Fiquei ali parada por um bom tempo, braços cruzados, o pensamento girando sem parar. O que, diabos, o Gabriel andava fazendo? Vivia pelas ruas, desaparecido, e ninguém sabia ao certo no que ele se metia. Trabalho mesmo, ele não tinha. Nenhuma satisfação, nenhum aviso. A única coisa que eu pedia — com toda a paciência do mundo — era que ele entregasse o aluguel ao senhorio e cuidasse da nossa avó. Só isso. E, mesmo assim, parecia impossível pra ele.
Eu ia ter que colocá-lo contra a parede. Ele precisava me explicar o que estava fazendo com o nosso dinheiro — e por quê. Aquilo que o senhor Alberto disse... Com quem Gabriel estava se metendo? Que tipo de gente?
Mas não dava pra resolver isso agora. Eu já estava atrasada para o trabalho, e se tem uma coisa da qual a gente ainda depende nessa vida é do pouco que eu ganho naquele emprego. Lembrei disso e corri pra dentro, peguei a bolsa. Antes de sair, avisei à minha avó:
— Qualquer coisa, me liga, tá bem?
Ela apenas balançou a cabeça, ainda meio confusa com a confusão toda na porta. Nem quis explicar agora. Saí apressada, andando rápido até o ponto de ônibus. Graças a Deus, ele passou no horário. Entrei e me sentei, mas a cabeça... ah, a cabeça não desligava.
"Meu irmão virou mais um problema", pensei. Mais um peso. Ele acha que pode brincar com tudo, que a vida é simples assim. E o dinheiro? O pouco que a gente tem... usou pra quê, exatamente? Que ódio! Eu não ia ligar pra ele. Não. Eu precisava olhar nos olhos dele quando perguntasse tudo isso. Porque, se eu ligasse, ele ia fugir. Ia enrolar. E eu estou cansada de ser enrolada.
Por pouco, não perdi minha parada. Apertei o botão e desci quase correndo. Cruzei a rua, entrei no shopping, ainda com os pensamentos fervendo... e, como se o universo quisesse me dar um suspiro de alívio, ali estava ela.
— Que milagre! — ouvi a voz já familiar. — Minha melhor amiga chegando no horário? Isso sim é uma surpresa.
Revirei os olhos, mesmo sorrindo.
— Quase me atrasei — respondi, pegando meu avental. — Mas acho que o destino quis ser bonzinho hoje. Está tentando me recompensar pelos caos que andam me rondando.
Enquanto falava, ajeitei o cabelo como deu. Meus cachos estavam todos desalinhados, como sempre. Não tinha tempo pra nada — e isso me frustrava. Eu não era desleixada, mas ultimamente parecia até que eu morava na rua. Soltei um suspiro irritado.
— Acredita que o idiota do meu irmão não estava pagando o aluguel? Dois meses! Dois! Pra onde ele levou o dinheiro que eu dava na mão dele? — soltei, sem nem perceber que já falava pelos cotovelos.
Mila, minha melhor amiga, me olhava com aquela expressão entre o choque e a cautela. Ela tinha uma queda por Gabriel, e eu sabia disso. Mas sempre avisei: ele é um babaca. Não merece nem um milésimo do carinho dela. Vai acabar partindo o coração dela no meio — e isso eu não queria ver.
— Sério? Que coisa... — ela comentou, pensativa. — Mas... talvez ele tenha uma boa justificativa?
Virei os olhos tão forte que quase vi minha alma.
— Ah, por favor, Mila. Não faz isso. A gente se conhece. E a gente conhece ele. O senhor Alberto ainda disse que o Gabriel anda se metendo com gente perigosa. Isso me preocupa de verdade. Não é só irresponsabilidade... é burrice.
Ela mordeu os lábios, mas ficou em silêncio. Não precisava dizer nada — eu sabia que ela queria defender meu irmão. E isso só piorava tudo.
Foi quando o gerente apareceu do nada, a voz já conhecida interrompendo o momento:
— Que tal vocês trabalharem, hein? Ou vieram bater papo?
Soltei um suspiro longo. Me controlei pra não revirar os olhos outra vez — ele detestava isso. Mas confesso: era divertido ver o quanto isso o deixava furioso.