Como se não bastasse a vida corrida e solitária de Omar, marcada por decisões difíceis e sentimentos que ele insistia em esconder, havia ainda o fardo silencioso de uma família disfuncional. Desde a morte de sua mãe, ele nutria um ódio silencioso por seu avô. No fundo, culpava o velho por tudo. O homem jamais aceitara o casamento de sua filha com o pai de Omar — um simples funcionário, alguém que ele considerava indigno do sangue da família.
Com a morte precoce de seus pais, Omar se viu sozinho no mundo. Embora seu tio e sua tia o tivessem acolhido e criado como se fosse um filho, aos doze anos ele já sabia que guardaria rancor do avô até o fim. Só que a história, como a vida, é cheia de camadas. O que Omar não sabia — ou se recusava a enxergar — era que aquele velho homem o amava profundamente. Carregava a culpa por não ter sido capaz de reconstruir a ponte entre ele e a filha antes que o câncer a levasse. O arrependimento o consumia mais do que qualquer doença que lhe corroía o corpo.
Agora, doente e ciente de que seus dias estavam contados, o avô só tinha um último desejo: ver o neto feliz. Queria, de algum modo, reparar seus erros, ou ao menos ter a chance de pedir perdão. Mais do que isso, desejava ver Omar casar. Não por tradição, mas por amor. Queria vê-lo encontrar alguém com quem pudesse dividir a vida, com quem pudesse baixar as defesas e, finalmente, deixar de se esconder.
O velho acreditava que algumas dores não eram castigos, apenas feitiços da vida — escritos e reescritos por um destino que às vezes parecia cruel, mas que, no fim, ainda podia surpreender com beleza. E ele queria estar presente para ver essa beleza acontecer. Ver seu neto sorrir de verdade, antes que o tempo lhe tirasse a chance de testemunhar esse milagre.
Pensando nisso, Felipe cruzou os portões da mansão com passos firmes e silenciosos. A mesma mansão onde seu filho Marcos e sua nora Glória criaram Omar após a morte precoce da mãe do rapaz. Desde então, aquele lar carregava um propósito silencioso: resolver o futuro de Omar.
Claro, ele não podia desconfiar de nada. Omar era explosivo quando se sentia manipulado, e se soubesse que aquela busca constante por uma pretendente era, na verdade, um desejo enraizado do avô, reagiria como um vulcão prestes a entrar em erupção. Já não levava a sério as sugestões amorosas da tia — apesar de amá-la profundamente —, mas se descobrisse que tudo vinha de Felipe, o estrago seria maior. Diria com raiva que era adulto o suficiente para decidir quando e com quem se casaria.
Por isso, Felipe se escondia. Escondia seus planos por trás de Marcos e Glória, observando tudo com olhos críticos e uma expressão sempre amarga ao mirar o próprio filho. Marcos, com seus sessenta e poucos anos, ainda não havia, aos olhos do pai, tomado jeito. Tinha se casado, tido uma filha que amava, mas nunca foi o homem de negócios que Felipe desejava.
Era Omar quem carregava, mesmo sem saber, o peso da esperança do avô. O único neto que talvez fosse capaz de honrar o sobrenome da família. Um médico brilhante, determinado, mas ainda avesso à ideia de casamento. E isso incomodava Felipe mais do que qualquer coisa. Não queria morrer sem vê-lo ao altar. Queria ver o nome da família crescendo por meio dele. Era seu último desejo. Um desejo silencioso, disfarçado de preocupação. Um segredo que ele protegia com unhas e dentes.
— Meu sogro, eu não sabia que ele estava... — Glória começou a dizer, mas Felipe ergueu a mão de forma brusca, cortando a fala dela no meio.
Ela estava impecável, como sempre. Vestida como se a qualquer momento pudesse ser chamada para uma festa de gala. Aquilo irritava Felipe profundamente. Para ele, era uma forma arrogante de jogar na cara dos outros uma elegância que não lhe pertencia de fato — não de onde ele via.
Toda aquela riqueza que ela adorava ostentar vinha de seus esforços, não dos de Marcos, que mais parecia um adolescente mimado do que um homem feito. Felipe já havia desistido de esperar que o filho tomasse as rédeas dos negócios. Preferia o golfe, as viagens, o luxo... enquanto ele, velho e cansado, ainda carregava o peso da família nas costas.
— Por favor, não venha com isso. — disparou ele, seco, sem sequer tentar esconder o desprezo. Nenhuma ponta de sentimento suavizava suas palavras.
Glória sorriu com os dentes cerrados, tentando disfarçar a raiva com uma máscara de educação. Por dentro, rangia. Detestava o sogro, mas precisava manter as aparências. Era do bolso dele que vinha o estilo de vida que ela tanto se orgulhava de exibir entre as amigas.
— Desculpa, é que eu fiquei... surpresa. Quer dizer, com o Marcos eu...
Ela não teve tempo de concluir. Felipe bateu sua bengala de ponta metálica com força no piso de madeira. O som seco ecoou pela sala e fez Glória estremecer.
— Os dois. Na varanda. Agora. — ordenou, já virando as costas.
Ele foi sem esperar resposta.
Glória sentiu um arrepio percorrer sua espinha. As mãos suavam. Com passos ligeiros, subiu as escadas até o quarto onde Marcos estava penteando os cabelos, despreocupado como sempre.
— Seu pai está lá embaixo. Vamos agora.
O tom dela fez Marcos empalidecer. Largou o pente sobre a cômoda e a seguiu. Desceram as escadas em silêncio, apressados, como duas crianças prestes a serem castigadas.
— Aposto que, novamente, é aquele assunto — murmurou Glória, irritada, batendo os pés no chão a cada passo apressado enquanto cruzava o corredor em direção à varanda. — Ele acha que é fácil convencer o Omar a simplesmente se casar com qualquer uma.
Bufando, ela continuou a reclamar em voz baixa, cuidadosa para que o sogro não escutasse.
— Ele é tão cabeça-dura quanto o avô. Acha mesmo que vamos convencê-lo assim, com um estalar de dedos? Recusa todas as pretendentes que eu escolho, sem nem deixar que elas se joguem no colo dele, quem sabe assim ele acordasse para a realidade...
— Não fale assim do Omar — Marcos respondeu, atrás dela, com um tom brando. — Você sabe que ele é um querido. Se não fosse por ele...
— É claro que sim, eu amo aquele garoto — interrompeu Glória, impaciente —, mas está impossível ultimamente. Acha que pode decidir tudo na vida dele como se não existissem consequências. Mas ele não pode escolher sozinho. Não quando se trata de Felipe.
Ela virou o rosto para Marcos com raiva, mas logo percebeu que já estavam na varanda. Sua expressão endurecida se dissolveu num sorriso forçado assim que seus olhos encontraram a figura de Felipe sentado no sofá de madeira, cercado pelo jardim bem cuidado.
Felipe, é claro, não se enganava com o teatro. Reconhecia cada músculo falso do rosto de Glória. Sabia que ela o odiava com a mesma intensidade que amava a conta bancária que ele sustentava.
Sem dizer uma palavra, os dois sentaram-se diante dele, e o silêncio entre os três parecia pesar mais do que o ar morno daquela tarde. O velho os observava com olhos frios e pacientes, como quem segura a raiva há tempo demais.
— Sabe... se eu pudesse, não estaria aqui nesse sofá agora — disse ele finalmente, a voz baixa, mas cortante.
Marcos e Glória engoliram seco.
— Glória — ele continuou, mirando a nora —, achei que você fosse a melhor casamenteira do país.
O sorriso dela, antes fingido, tornou-se amargo de verdade.
— O Omar é... complicado. Eu o conheço desde menino, mas parece que não. Ele dispensou todas as garotas sem nem saber o nome delas! — respondeu ela, desconfortável, cruzando os braços.
— O que significa que você não está fazendo um bom trabalho — disparou Felipe, impassível.
Glória arregalou os olhos, quase ofendida.
— Senhor, eu tento, juro que tento! Mas ele é cabeça-dura... igual ao senhor.
Assim que disse isso, pôs a mão na boca, arrependida.
— Desculpa... só estou sendo sincera.
Felipe não se ofendeu. Mas sua expressão endureceu ainda mais, e seu tom ficou mais ríspido.
— A mansão voltou à venda.
O choque foi imediato.
— O quê?! — exclamaram os dois em uníssono.
— Como assim? — perguntou Glória, desesperada. — A mansão? Como pode fazer isso?
Felipe soltou um sorriso sarcástico, abaixando o olhar para sua bengala de madeira escura, com a ponta de ferro que tocava suavemente o chão.
— Vocês são um bando de incompetentes. Vivem nesse luxo que meu trabalho sustentou. E se não conseguem fazer o mínimo do que pedi, não merecem estar nesta casa. Nem usufruir do que eu construí.
Silêncio. E então, pela primeira vez em muito tempo, Glória não teve resposta.
— Papai, não faça isso — finalmente Marcos se pronunciou, a voz baixa e aflita. — Eu sei que o senhor quer ver o Omar casado... e estamos tentando. Estamos mesmo.
Tentou convencer, mas a falta de convicção em suas palavras era evidente.
Felipe balançou a cabeça, visivelmente irritado. Os olhos cerrados e a mão apertando o topo da bengala denunciavam sua impaciência.
— Eu tenho um plano — disse Glória de repente, com um brilho de empolgação nos olhos.
Felipe ergueu o olhar lentamente, encarando a loira com desconfiança.
— Mas não vai ser fácil... e muito menos imediato — ela acrescentou, tentando parecer confiante, mesmo sabendo que pisava em terreno instável.
Houve um breve silêncio antes de o velho falar, sua voz saindo firme, como um veredito:
— Seis meses.
Glória prendeu a respiração, captando naquelas palavras uma faísca de esperança.
— Você tem seis meses para que ele se case. Se isso não acontecer... vocês dois irão morar na rua.
Ele fez uma pausa.
— Esta mansão será vendida.
Sem esperar qualquer reação, Felipe se levantou, ajeitou o paletó e caminhou para fora da varanda com sua bengala ritmando os passos.
Não quis ouvir o plano. Não quis saber o que a nora tinha em mente. Para ele, já tinha falado o suficiente. O prazo estava dado. O peso, lançado. E o resto... era problema deles.