capítulo 1

Quando a gente é criança, acredita que crescer vai ser incrível. A gente realmente acredita. Que tudo vai se encaixar como num daqueles filmes bobos em que o final sempre dá certo. Acha que vai poder dormir tarde, comer chocolate no café da manhã e ter liberdade pra ser quem quiser. Acha que vai ser feliz, fácil, leve. Que vai ter dinheiro, tempo, escolha.

A gente olha pros adultos e pensa que eles sabem o que estão fazendo. Que têm o controle.

Só que não.

A verdade? Criança se contenta com pouco. Um brinquedo novo. Um abraço apertado. Um desenho animado depois do almoço. E a gente não vê os detalhes. Não percebe que por trás de um sorriso pode morar o cansaço, e por trás de uma risada, um coração despedaçado.

Crescer parece fácil… quando a gente só vê a superfície.

Mas aí a gente cresce.

E descobre que tudo aquilo era só ilusão.

Ser adulto é se dividir em mil pedaços pra manter o mundo de pé. É acordar cansado. Dormir culpado. Comer rápido. Engolir o choro. Engolir tudo.

E eu… eu não queria estar dizendo isso agora. Mas estou. Dentro de um ônibus lotado, com o corpo grudado em estranhos suando igual a mim. O dia nem começou e eu já tô me sentindo derrotada. E claro — tô atrasada. De novo.

O Sr. Alfredo vai me fuzilar com o olhar. Vai reclamar como se a vida dele dependesse da minha pontualidade. Vai passar o dia inteiro resmungando no meu ouvido. E eu? Eu vou aguentar. Porque preciso. Porque alguém nessa casa tem que sustentar tudo. E esse alguém sou eu.

Meu irmão? Um irresponsável profissional. Vive de favor — meu e da vovó. Não trabalha, não estuda, não faz nada. E ainda tem a cara de pau de dizer que está “esperando uma oportunidade”. Ah, me poupe.

Eu queria estar estudando. Queria estar desenhando. Esse sempre foi meu sonho. Mas sonhar custa caro. E os boletos não têm paciência. Então, guardei meus planos no fundo de uma gaveta, junto com meus cadernos de rascunho. Eles esperam. Esperam que minha irmã cresça. Que meu irmão acorde pra vida. Que o universo resolva dar uma folga.

Mas carregar uma casa inteira nas costas, só com a força de duas mulheres… não dá. Eu sei que não dá.

Admito — sou desastrada. Tropeço em calçadas lisas. Derrubo copos como se fosse pessoal. Chego atrasada com uma pontualidade cômica. Minhas roupas não combinam, meu cabelo vive em greve, e minha autoestima já fugiu há semanas pedindo hidratação e um bom corte.

A verdade? Eu não tenho tempo.

Chego tarde em casa todo dia. Ainda lavo a louça, tento organizar a bagunça da cozinha, dar conta do mínimo. Minha avó já não tem forças como antes. E minha irmã é só uma criança. E o meu irmão… bom, honestamente, nem sei onde ele anda agora.

Deito quando já passou da meia-noite, e o despertador me arranca da cama antes mesmo do corpo lembrar que dormiu.

Pela manhã, minha avó sempre deixa o café pronto. Eu engulo qualquer coisa com pressa, tentando não sair de estômago vazio. Mas o ônibus? O ônibus tem o dom de passar justo quando eu ainda não cheguei na parada. E quando ele aparece, vem tão lotado que nem o ar encontra espaço.

Mesmo assim, eu entro. Me espreito no meio dos corpos, seguro firme na barra enferrujada e rezo. Rezo pra não pegar trânsito. Pra não parar em todos os sinais. Pra, pelo amor de Deus, chegar a tempo. Porque se eu me atrasar mais uma vez, o Sr. Alfredo surta. E perder esse emprego... não é uma opção.

É esse salário que segura tudo.

A aposentadoria da minha avó mal cobre o básico. E sinceramente? Às vezes eu só queria que a vida fosse mais fácil. Só um pouco. Mas não foi. Nunca foi.

Minha mãe nos deixou cedo demais. Meu pai… bom, ele partiu antes mesmo que eu entendesse o que era a morte. E a verdade? Eu amava aquela família. Acreditava, de verdade, que mesmo com todas as dificuldades, tudo daria certo.

Mas não deu.

Depois que meu pai morreu, minha mãe murchou. Virou sombra. Um dia, ela só... sumiu. Pediu pra minha avó cuidar da gente. E nunca mais voltou. Sem explicação. Sem carta. Sem desculpas.

Hoje, com 24 anos, eu tento manter a fé. Tento. Mas a verdade é que eu não faço ideia do que estou fazendo com a minha vida. Estou exausta. Perdida. E com medo de parar. Porque se eu parar, tudo desmorona. E não tem ninguém pra juntar os cacos.

Distraída — como sempre — quase perdi a minha parada. Só percebi quando o ponto já tava ficando pra trás. Puxei a cordinha no desespero, e aquele barulho cortou o ar como um alarme pessoal.

"Graças a Deus", pensei, me esgueirando pelo corredor como quem foge de uma multidão hostil. Um homem roncava ao meu lado. Uma adolescente ouvia música como se fosse show particular. Eu só queria sair dali.

As pessoas abriram caminho como se eu estivesse cometendo um crime. O motorista já ia arrancar quando eu gritei:

— Espera! Eu ainda não desci!

Ele freou com raiva, soltando um suspiro audível. E o resto dos passageiros? Murmúrios. Olhares tortos. Como se a culpa fosse minha. Como se eu tivesse acordado hoje pedindo por esse caos.

Desci com o orgulho ferido. Ajustei a bolsa no ombro, respirei fundo, e caminhei. Não. Corria.

Corria como uma maluca. Cabelos em revolta. Roupas gritando por socorro. Parecia que eu tinha saído direto de um filme pós-apocalíptico. Mas sem o glamour.

Trabalho num restaurante dentro de um shopping de luxo. Um daqueles frequentados por gente rica que paga caro por um prato minúsculo. Prato que, sinceramente, parece mais enfeite do que comida. Mas vai dizer isso em voz alta? Perde o emprego na hora.

Então eu mordo a língua. Sempre. Engulo piada. Engulo raiva. Engulo o orgulho.

Não sou cliente. Não sou elegante. Não sou convidada.

Sou quem serve.

E preciso muito desse trabalho.

Avisto o restaurante. Finalmente. Paro de correr antes que os seguranças me confundam com alguma fugitiva do manicômio. Mas justo quando passo pela porta, sinto aquela presença atrás de mim.

E ouço a voz.

— Muito bem, senhorita.

Paro.

Congelo.

É ele.

O carrasco. O meu chefe.

Viro devagar, colando um sorriso forçado no rosto. Tentando parecer casual. Tentando parecer culpada com moderação.

— Chefe... eu sei. Tô um pouquinho atrasada, mas eu juro que...

— Meia hora a mais hoje — ele disse, olhando o relógio como quem anuncia a sentença.

— Meia hora? — repeti, confusa. — Mas eu nem me atrasei tudo isso!

— Eu sei — ele respondeu com desdém. — Mas é pra compensar todos os "só cinco minutinhos" anteriores.

E virou as costas.

Me deixou ali.

Estátua do escárnio.

Respirei fundo. Mordi a língua. De novo. E fui.

Bati os pés no chão em protesto mudo. Fui até meu armário. Bolsa. Celular. Avental. Presilha no cabelo. Rotina. Sobrevivência.

Quando me virei, lá estava ele. Me olhando de cima a baixo. Não disse nada. Só balançou a cabeça com aquele olhar julgador.

Como se dissesse: "essa garota é um desastre ambulante".

Ele não fazia ideia.

Minha aparência era só a ponta do iceberg. A parte visível da bagunça.

Mas então vi Mila.

Minha melhor amiga. Minha âncora. Estava lá, limpando as mesas. Peguei meu pano, fui até ela. Cúmplice no silêncio antes do caos.

— Eu te avisei — ela disse, num sussurro quase invisível. — Por pouco não foi demissão.

Soltei um riso nervoso.

— Se eu quebrar mais um copo, ele me manda embora com tapete vermelho.

Rimos. De nervoso. De ironia. De cansaço.

— Sério, Daphne. Para de se atrasar. Eu sei que tá tudo uma loucura. Mas tenta. Por favor. Não quero te perder aqui.

Assenti. Sem prometer nada. Mila sabia. Sabia de tudo. E por isso, respeitava meu silêncio.

— Melhor continuar. Faltam dez minutos pra abrir.

E fomos.

Trabalhar.

Com o peso do mundo nas costas.

E o silêncio como escudo.

Porque a primeira palavra em falso… e o touro sai do balcão.

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