A neve ainda não havia começado a cair, mas o céu de Nova York já trazia aquele cinza metálico que anunciava o inverno. James Carter observava o reflexo opaco da cidade no vidro escurecido do carro enquanto o motorista contornava as avenidas com a eficiência de quem conhecia cada semáforo e cada atalho de memória.
Foram sete meses em Londres. Sete meses longe de tudo que, por bem ou por mal, formava a espinha dorsal da sua vida: a sede da Carter & Lane, os olhos atentos dos acionistas, os jantares silenciosos em sua cobertura de vidro e aço — e, claro, seu irmão. Liam.
James não era homem de saudades. Tinha a exata medida do que podia controlar e o que não podia, simplesmente descartava. Era o tipo de disciplina que o havia feito chegar onde estava: no comando de um império tecnológico que crescia mais rápido do que qualquer analista prevera. Mas naquela manhã gelada, havia uma inquietação silenciosa por trás da objetividade com que ele voltava ao lar.
O avião havia pousado pouco antes do amanhecer, e ele rejeitara a ideia de ir direto para casa. Foi ao escritório primeiro. Sempre ao escritório primeiro. Subiu os quarenta e dois andares até o último nível, percorreu os corredores de vidro como quem revisita um reino adormecido, e só então se deu ao luxo de parar diante da enorme janela da sua sala.
O skyline estava igual. O que nunca mudava. Nova York permanecia alheia aos dramas pessoais de qualquer um, inclusive aos seus.
James retirou o paletó, colocou-o de maneira precisa sobre a poltrona lateral, e sentou-se à mesa como se nunca tivesse saído. Em poucos minutos, a equipe começava a chegar — batidas leves à porta, atualizações rápidas, pastas empilhadas com relatórios que ele folheava em silêncio. Tudo como antes.
Mas o reencontro com Liam ainda pairava. O irmão havia ficado à frente de parte dos negócios durante sua ausência. Um gesto calculado, mais por necessidade do que confiança. James sabia que Liam era inteligente, mas inconstante. E, embora se recusasse a admitir, havia algo de incômodo naquele reencontro iminente. Não medo — ele não temia o irmão. Mas havia uma sombra entre eles. Um ruído antigo, como um vinil riscado, que nenhuma conversa era capaz de apagar.
A porta se abriu sem aviso. Era Michael, seu assistente pessoal, com um sorriso contido e um tablet em mãos.
— Seu irmão está esperando na sala de reuniões. Disse que queria te ver antes da coletiva da tarde.
James levantou os olhos devagar, como quem retoma a consciência de algo que tentou ignorar.
— Claro. — disse, a voz firme, baixa, como um comando que não precisava de ênfase.
Levantou-se, ajeitou os punhos da camisa e seguiu pelo corredor. Seus passos ecoavam com o peso de alguém que sempre soube onde pisa, mas ainda assim, pela primeira vez em muito tempo, havia algo imprevisível à frente.
A sala de reuniões estava parcialmente iluminada, as luzes indiretas refletindo sobre a mesa de carvalho escuro. Liam estava de pé, de costas para a porta, observando a cidade pela janela como se tentasse encontrar algo que justificasse sua presença ali.
James entrou sem pressa. A porta se fechou atrás dele com um clique seco.
— Sete meses, e você ainda prefere a vista ao invés de dizer “olá”? — disse ele, sem ironia, apenas constatando.
Liam se virou devagar. O rosto levemente mais magro, a barba bem feita, mas os olhos carregavam algo entre desdém e saudade.
— Eu não tinha certeza se você ainda lembrava como entrar numa sala sem dramatizar — respondeu, com aquele meio sorriso que sempre usava quando queria parecer mais leve do que sentia.
James não sorriu de volta. Apenas caminhou até o lado oposto da mesa e se sentou. A distância entre eles era típica — nem longa o bastante para parecer frieza, nem curta o suficiente para ser proximidade.
— Recebi os relatórios. Alguns números bons, algumas decisões que vamos precisar revisar.
— Você está me dando parabéns ou preparando uma reprimenda? — Liam cruzou os braços, o tom semi-defensivo, mas já esperando a crítica.
James apoiou os dedos entrelaçados sobre a mesa.
— Não é pessoal, Liam. Nunca foi. É só... negócios.
Liam soltou uma risada curta, sem humor.
— Claro. Sempre os negócios. Você fala deles como se fossem uma extensão do seu próprio corpo.
James permaneceu em silêncio por alguns segundos. O tipo de silêncio que dizia mais do que qualquer frase improvisada.
— E como foi Londres? — Liam quebrou o silêncio, sentando-se por fim, meio inclinado, como quem nunca se acomodava completamente em lugar algum.
— Produtivo. Trouxemos dois fundos novos, fechamos a fusão com a E-Quant. Tem potencial para dobrar o valor da empresa em dois anos.
— Isso se os acionistas não te matarem primeiro com tantas mudanças. — Liam levantou uma sobrancelha, provocativo.
— Eles não me pagam pra ser amado — respondeu James, direto. — Eles me pagam pra manter a empresa viva. E crescendo.
O silêncio voltou por um momento, mas agora havia algo mais denso entre os dois. Como uma névoa que precede uma tempestade.
— Ah, e tem mais uma coisa — disse Liam, puxando o celular do bolso. — Queria te contar pessoalmente. Antes que você visse em algum lugar.
James ergueu os olhos, atento.
— Vou me casar.
Houve uma pausa. Não longa, mas tensa. Como o som de um fio prestes a se romper.
— Acabei de ficar noivo — acrescentou Liam.
James não respondeu de imediato. Aquilo soou como uma batida errada num piano perfeitamente afinado.
Ele já ouvira isso uma vez, há dois anos. Algo saiu errado e Liam rompeu o relacionamento. Agora, de novo, e ele não sabia o que dizer. E, por algum motivo não quis examinar aquilo naquele instante.
— Parabéns — disse enfim, com a neutralidade exata de quem mede cada sílaba.
Liam observou o irmão, procurando alguma rachadura na fachada. Mas James era uma fortaleza. Sempre foi.
— A gente vai fazer um jantar na semana que vem. Coisa íntima. Família, alguns amigos. Espero que possa ir.
— Claro — disse James, levantando-se. — Família é prioridade, não é?
— Bem vindo de volta, irmão. — Liam disse, esboçando um sorriso que James não conseguiu retribuir rapidamente.
— Obrigado. — James disse, olhando para o relógio de pulso. — Preciso ir... tenho que passar em um lugar. Obrigado por... tomar conta de tudo na minha ausência.
Ele disse aquilo como quem afirma um mandamento. Não como quem acredita. E saiu da sala com passos firmes, como se nada tivesse mudado. Ele não sabia o quê, exatamente, mas sentia que as coisas mudariam.