Marcos passou a reunião inteira ausente, afundado em pensamentos. As vozes ao redor soavam como ruído distante. A cada nova tentativa de se concentrar, sua mente o traía, levando-o de volta àquela garota misteriosa, à história absurda que ela havia lhe contado. Seu impulso inicial era se apegar à lógica e a experiência. Regina era plenamente capaz de uma mentira daquele tamanho. Poderia tê-la treinado, manipulado, tudo para desestabilizá-lo. Mas havia algo no olhar da garota… algo desconcertantemente genuíno.
Ele tentou racionalizar. Repetia para si mesmo que era uma armadilha emocional, que Regina já fizera coisas piores, que tudo não passava de mais uma jogada suja. Mas quanto mais pensava, mais sentia a dúvida crescer — uma dúvida que cavava fundo, como se tivesse estado ali o tempo todo, apenas esperando a hora certa para emergir.
— Desgraçada! — Marcos explodiu, batendo com força a mão na mesa, fazendo todos na sala se virarem assustados. — Desculpem — pigarreou, ajeitando a postura. — Vamos remarcar isso. Por favor.
Saiu da sala apressado, e como era de se esperar, Sérgio veio logo atrás.
— Você não pode deixar uma menina te desestabilizar desse jeito — disse Sérgio ao entrar em sua sala.
— E como é que você esperava que eu reagisse? — retrucou Marcos, parando em frente à janela. O vidro refletia mais do que sua imagem; refletia anos de silêncio e mágoas não resolvidas.
— Não sei, Marcos. Você está agindo como se ela já fosse sua filha. Mal a conhece e já está se envolvendo de novo… como sempre faz
— Eu entendo. Mas olha, essa história tem mais chance de ser uma farsa do que verdade. Aposto que ela nem volta amanhã.
— E se voltar? — Marcos voltou-se para ele. — E se ela estiver dizendo a verdade, Sérgio? Você sabe que Regina era capaz de tudo. E se ela realmente mentiu sobre a gravidez? E se… ela me roubou uma filha?
Sérgio se sentou, massageando as têmporas.
— Ok, vamos considerar isso, mas mesmo que Regina não tenha interrompido a gravidez… quem garante que o bebê era seu? Você mesmo sempre disse que ela era dissimulada.
— Eu sei. — Marcos suspirou, cansado. — Mas preciso saber. Por mim… e por ela.
— E a Luiza?
— Vou conversar com ela ainda hoje.
Sérgio assentiu, embora ainda demonstrasse preocupação.
— Só não quero que isso acabe como da outra vez. Você e a Luiza se envolvem, se apegam… e depois a verdade vem como uma bomba.
— Não é a mesma situação — cortou Marcos, irritado.
— Talvez não. Mas se essa garota for mesmo filha da Regina… e for como a mãe, vocês estarão dando espaço demais. E se não for? E se ela for inocente, e tudo isso for invenção da Regina? Como ela vai se sentir depois?
— Por isso mesmo precisamos fazer o exame o quanto antes. E, Sérgio, tem mais uma coisa. Ela precisa de ajuda agora. Dinheiro, trabalho, estabilidade.
— E você quer que eu resolva isso? — Sérgio arqueou uma sobrancelha.
— Você está procurando alguém para cuidar da Lady Juju, não está?
Sérgio arregalou os olhos.
— Você enlouqueceu. A Lady é um presente da minha mãe, eu não vou deixar uma estranha colocar as mãos nela.
— Você mal gosta da cachorra. — Marcos riu.
— Justamente, mas minha mãe gosta. E se ela souber que deixei uma desconhecida tomar conta…
— Ela não me parece uma sequestradora de cachorros. Eu só estou te pedindo um favor como amigo, por alguns dias. Até tudo se resolver.
Sérgio o encarou por alguns segundos longos. Por fim, bufou.
— Tudo bem. Mas qualquer sinal de problema, qualquer travesseiro fora do lugar, ela está fora.
Marcos sorriu, aliviado.
— Eu sabia que podia contar com você.
Abigail passou a noite escondida em um pequeno salão abandonado. O frio fazia suas articulações doerem, mas o local ao menos a protegia do vento. Ela se encolheu o máximo que pôde, abraçando os joelhos. Tentou não chorar, mas uma lágrima teimosa escapou. Pensava na mãe, em tudo que ouvira sobre aquele homem. Seria ele mesmo seu pai? E se fosse, o que isso mudaria? Talvez nada, talvez tudo. Ela adormeceu recostada numa parede, os olhos pesados pela exaustão acumulada.
Naquela mesma noite, Marcos teve uma conversa tranquila com Luiza. Como esperava, ela não o julgou. Conhecia o passado dele com Regina e entendeu a urgência da situação. Ainda assim, ele não conseguia relaxar. Pensava em Abigail, em sua expressão contida, em como ela parecia carregar o mundo nas costas. A simples possibilidade de ela ser sua filha já lhe apertava o peito.
Enquanto isso, Sérgio matutava em silêncio. Precisava de provas. Precisava entender o que havia por trás daquela aparente doçura. E então teve uma ideia.
Se ela estivesse mentindo, não resistiria a uma aproximação mais… pessoal. E ele com toda a experiência que tem, saberia identificar uma farsa.
No dia seguinte, Abigail chegou quinze minutos adiantada. A recepcionista, fria como no dia anterior, permitiu sua entrada com um aceno seco. Abigail agradeceu baixinho e seguiu até a sala de Marcos. Ao bater à porta, ouviu sua voz permitindo a entrada.
— Bom dia — disse, ao perceber que não estavam sozinhos. Sérgio também estava lá, sentado na poltrona.
— Bom dia — responderam os dois, em uníssono.
— Espero que tenha descansado e tomado café. — Marcos levantou-se, gesticulando para que ela se sentasse também.
— Sim. Tomei. — Abigail sorriu, mesmo sabendo que o café da manhã fora apenas uma barra de cereal.
Sérgio também se levantou, e por um breve instante seus olhos cruzaram com os dela. O olhar dele parecia mais calmo — ou talvez apenas mais calculado. Ela não sabia dizer.
— Vamos direto ao ponto — Marcos retomou. — O exame será feito às dez. Em um local discreto. A clínica mandará os profissionais até a casa do Sérgio.
Abigail franziu o cenho, confusa.
— A casa dele?
— É mais seguro. E também... tem outra questão, você disse que precisava de um emprego. Achei que talvez pudesse cuidar da cachorra dele por uns dias, nada muito complicado.
— Eu… nunca cuidei de um animal antes, mas posso tentar — disse, sincera.
Sérgio pigarreou.
— A Lady não gosta nem de mim. Boa sorte.
A frase arrancou uma risada espontânea de Abigail. Pela primeira vez, o ambiente pareceu mais leve. Sérgio esboçou um sorriso — um daqueles meio de lado, carregado de ironia, mas que deixou um calor estranho no peito de Abigail.
Na casa de Sérgio, tudo parecia imenso demais. O elevador exclusivo os levou até a cobertura, e Abigail ficou encantada com o luxo ao redor. Marcos percebeu seu espanto e sorriu.
— Impressionante, não é?
— É… muito bonito — disse ela, os olhos ainda explorando o espaço.
— E caro — Sérgio acrescentou, arrancando dela um revirar de olhos contido, que só o fez sorrir mais.
Abigail se sentiu desconfortável de início, especialmente porque Sérgio parecia mais... observador. Mas havia algo no modo como ele a olhava agora — com menos frieza, mais curiosidade. Ou talvez fosse sua imaginação.
Após a coleta do exame, que durou poucos minutos, Marcos anunciou sua saída.
— Tenho uma reunião. Você vai ficar bem?
Abigail hesitou.
— Sim. Acho que sim.
— Claro que ela vai — Sérgio disse, quase ofendido pela dúvida. — Eu prometi que me comportaria.
Marcos lançou um último olhar para Abigail antes de ir embora. Assim que a porta se fechou, restaram apenas ela e Sérgio. Ela sentia o peso do olhar dele mesmo de costas. Não era um olhar lascivo, muito menos gentil, era analítico, como se a medisse por dentro, procurando rachaduras. Ele, por sua vez, tentava decifrá-la — cada palavra, cada hesitação. E quanto mais tentava encaixá-la em algum estereótipo, mais frustrado ficava.
— Relaxa, eu não mordo — disse ele, indo até a cozinha.
Abigail ficou parada no meio da sala, desconfiada.
Será?
Minutos depois, ele voltou com dois copos.
— Suco? É de maracujá. Não se preocupe, não pus nada.
— Eu... aceito — disse, ainda desconfiada, mas se esforçando para não demonstrar.
Sentaram-se no sofá. Por alguns segundos, o silêncio imperou.
— Então... — Sérgio começou, tomando um gole do próprio suco. — Por que você quis conhecer ele agora?
— Porque eu precisava saber quem era. Mesmo que ele não me aceitasse eu precisava ver com meus próprios olhos.
— E agora que viu?
— Ainda não sei o que pensar.
— Bom, mantenha os pés no chão. A vida não costuma ser generosa com os ingênuos.
— Você sempre fala desse jeito? — perguntou ela, franzindo o cenho.
— Desse jeito como?
— Como se estivesse sempre esperando o pior das pessoas.
Sérgio sorriu, mas havia algo de triste no sorriso.
— Porque geralmente, eu estou.
Abigail o observou com atenção. Havia uma sombra ali, algo que não combinava com o homem sarcástico e seguro que ela imaginara. E por um instante, quis saber mais.
Mas conteve-se.
Ele também a observava. E, por mais que tivesse iniciado aquilo como um plano, sentia-se desarmado. Havia algo em Abigail que não encaixava nos perfis que ele conhecia. Não era dó. Não era fragilidade. Era… verdade.
— E então — ele disse, quebrando o silêncio — vai aceitar o emprego de babá canina?
— Vou tentar, por ela. — Abigail apontou para Lady, que a observava de longe, desconfiada.
— Se ela não gostar de você, vou saber rapidinho.
— E se ela gostar?
Sérgio arqueou uma sobrancelha.
— Então talvez eu também comece a gostar.
Abigail desviou o olhar, sentindo um calor subir pelas bochechas.
E foi assim que começou. Com pequenas palavras, um olhar mais demorado e silêncios que diziam muito mais do que qualquer frase.
Tensão, afinal, não precisa gritar para ser sentida.