Sergio foi buscar a cachorrinha que havia saído da sala e Abigail permaneceu sentada no sofá, paralisada. Tentava decifrar o que havia acabado de acontecer — aquelas palavras, o tom ambíguo, o olhar quase provocador. Ele estava tentando assustá-la? Ou apenas testá-la?
Poucos minutos depois, Sérgio retornou segurando nos braços um filhote tão pequeno que parecia um brinquedo de pelúcia.
— Essa é a Lady Juju — anunciou, colocando a cachorrinha no chão de forma delicada.
Abigail levantou-se e agachou-se para chamar o animal, que correu até ela como se fosse sua dona desde sempre.
— Que bebezinha mais linda — disse entre risos enquanto Lady tentava lamber seu rosto com entusiasmo.
— Impossível — comentou Sérgio, com as sobrancelhas erguidas. — Nunca vi essa vira-lata reagir assim com ninguém além da minha mãe.
— Os cães sentem, doutor — disse Rose ao entrar na sala com um sorriso orgulhoso.
— Que seja — respondeu ele, desviando o olhar. — Preciso fazer umas ligações. A senhora pode mostrar a casa pra ela e explicar as coisas?
— Vai ser um prazer — respondeu Rose, sincera.
— Certo. Já volto.
— Vem, vou te mostrar onde a Lady fica — disse Rose, caminhando em direção à cozinha.
— Esse nome foi escolha de quem? — Abigail perguntou, divertida.
— Da dona Carmem, mãe do Sérgio — respondeu Rose com um riso suave. — Quando ele era pequeno, dizia que ia se casar com uma mulher chamada Juju. A mãe nunca esqueceu, então resolveu dar o nome à cachorra. Uma provocação cheia de carinho, sabe?
— Parece que funcionou — comentou Abigail, pensativa.
— Você está desconfiada. Mas não é por causa da Lady né? — Rose a encarou com gentileza. — Você quer saber sobre ele.
Abigail hesitou antes de responder.
— Ele fica muito aqui durante o dia?
— Sérgio? Quase nunca às vezes nem o vejo. Você vai passar só algumas horas, vai dar tudo certo.
— Que bom…
— Olha, menina — Rose segurou suas mãos com firmeza, os olhos cheios de ternura — ele pode ser duro, exigente, e até assustador, mas eu o conheço desde menino. Ele tem uma boa alma… só que esconde isso atrás de uma muralha de controle.
— Se a senhora diz…
Rose deu um tapinha leve em sua mão.
— Vem, vou te mostrar o cantinho da Lady.
O quartinho da cachorra era impecavelmente limpo e organizado. Rose explicou as rotinas, o que Sérgio exigia e como ele percebia até os menores detalhes fora do lugar. Abigail tentava prestar atenção, mas sua mente voltava para os olhares de Sérgio — frios e inquisitivos demais para alguém que oferecia um filhote no colo. Havia uma contradição ali que a perturbava mais do que gostaria de admitir.
No andar de cima, Sérgio aguardava. Tinha decidido deixar Rose terminar as explicações para que Abigail ficasse mais à vontade. Precisava de tempo — e de silêncio. Rose viajaria pelos próximos dias, o que lhe dava exatamente o que queria: tempo a sós com Abigail.
Ele não pretendia agir com pressa. Contratara um detetive para investigar Regina. Queria saber tudo — mentiras, fraudes, o que mais pudesse usar contra aquela mulher. Só depois confrontaria Abigail, quando tivesse certeza de que não era apenas uma peoa num jogo maior.
Ao retornar para a sala, encontrou as duas conversando com risadas fáceis.
— Ótimo — murmurou com sarcasmo. — Tudo o que eu precisava: uma aliada dentro da minha casa.
— Sérgio — disse Rose ao vê-lo — já expliquei tudo pra ela.
— Obrigado, Rose. E você — ele se dirigiu diretamente a Abigail — acha que dá conta?
— Sim, até que é bem simples.
— Bom, preciso ir — disse Rose, pegando a bolsa.
— O quê? Pensei que a senhora fosse ficar! – Abigail disse confuso.
— Eu preciso viajar só por uns dias, menina. Você vai ficar bem, prometo.
— É, Abigail, relaxa. — Sérgio disse com um sorriso enviesado. — você vai tirar de letra.
— E o senhor… — Rose o encarou firme, ajustando a lapela do paletó — seja gentil com a menina.
— Eu não vou fazer nenhum mal a ela, pode ficar tranquila.
Abigail observou Rose ir embora e sentiu um vazio tomar conta do cômodo. Não sabia se era por ficar sozinha com ele ou por perceber que a segurança que sentia com Rose se esvaía junto com seu perfume.
— EI! — gritou Sérgio, fazendo-a dar um pulo. — Será que você poderia me dar um pouco de atenção?
— Desculpe…
— Você se desculpa demais — disse ele, aproximando-se até que seus olhos estivessem perigosamente perto dos dela. — E isso é irritante. Seu horário é de oito às duas, sem atrasos. E hoje vou trabalhar de casa.
Antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele já havia sumido no corredor.
Abigail soltou um longo suspiro. Mal havia começado e já se sentia exausta.
Já era quase duas da tarde. Abigail sentou-se no chão enquanto alimentava Lady
— Pelo menos você é legal — disse ela à cachorra. — Pena que não podemos dizer o mesmo do seu dono.
— Verdade — respondeu ele, divertido.
Ela se virou assustada.
— Desculpe, eu não sabia que o senhor estava aí.
— Já disse que você se desculpa demais. E quer dizer que, se soubesse, não falaria mal de mim?
— Claro que não. Não sou tão boba.
— Vim te chamar pra almoçar. – ele disse já saindo do quarto.
— Obrigada, mas estou sem fome. – ela o seguiu.
— Nada disso. — Ele já puxava uma cadeira. — Sente-se.
— Precisa de ajuda?
— Não, eu gosto de cozinhar. Mas hoje vamos comer algo pronto, mais rápido.
— Você sempre trabalha de casa?
— Quase nunca. Só em dias… especiais.
— Está com medo que eu te roube? — ela provocou, encarando-o.
Ele sorriu de canto, mas não respondeu.
Ela desviou o olhar, arrependida da provocação. Mas ele a observava — cada gesto, cada hesitação. Ela estava jogando ou apenas reagindo com instinto?
Sérgio serviu o almoço: salada, macarrão e uma garrafa de vinho.
— Eu não bebo, estou em serviço. – ela sorri.
— Para, você não está cuidando de nenhum bebê, é só um cachorro.
— Na verdade, eu não bebo — disse com vergonha, sem coragem de explicar.
— Então hoje vai ser a primeira vez, uma taça não mata ninguém. — disse ele, oferecendo a taça.
Ela hesitou. Por fim, pegou a taça mas a deixou sobre a mesa.
O almoço começou em silêncio, mas ele logo percebeu que ela não havia tomado nem um gole.
— Vamos, só um pouquinho, prometo que não tem gosto ruim.
Ela cedeu. E para sua surpresa, o gosto era suportável. Melhor que o da cerveja que Alex a obrigara a tomar — uma lembrança que ela preferia esquecer. Uma náusea leve tomou sua garganta, não pelo vinho, mas pelo nome que se infiltrou em sua mente como um sussurro venenoso.
Depois de algum tempo, a conversa se soltou. Sérgio, para sua própria surpresa, estava rindo. Abigail até esqueceu do medo — até a hora de levantar da mesa e sentir tudo girar.
— Opa — Sérgio a segurou. — Deixa que eu te ajudo, você não está bem.
Ela mal conseguiu protestar e ele a levou até o sofá com cuidado.
— Eu tô bêbada?
— Um pouco… alterada. Só isso.
— Por quê você me odeia? — perguntou de repente, olhando para o teto.
Ele se assustou com a pergunta.
— Eu não te odeio. Acho só que você está sendo usada por alguém ruim para prejudicar uma pessoa boa.
— Eu odeio ela.
— Regina?
Abigail assentiu.
— Ela me odeia também.
— Por quê?
— Porque ela disse. Muitas vezes. — Ela fechou os olhos. — E mostrou.
As palavras vieram como uma avalanche. Sérgio ficou em silêncio, até ver as lágrimas escorrerem. Então a abraçou. Sem pensar.
— Ela não pode mais te fazer mal. — sussurrou.
— Pode sim e vai. É só isso que ela sabe fazer.
Sérgio estava confuso, aquilo não parecia atuação. Era dor, era pânico, era real.
Abigail chorou por minutos, até seu corpo se acalmar. Quando Sérgio segurou seu rosto para enxugar as lágrimas, seus olhos se encontraram. Então sem pensar em mais nada ele a beijou.
Foi um beijo calmo, mas intenso. E ela retribuiu.
Mas num segundo tudo mudou.
— NÃO! — Abigail gritou e o empurrou com força. — O que você pensa que está fazendo?
— Desculpa. Eu pensei…
— Pensou errado! Eu não estou aqui pra isso!
— Achei que estivesse gostando…
— GOSTANDO? — ela gritou, em prantos novamente. — Esse era seu plano o tempo todo não é? Ganhar minha confiança, me embebedar e…
— NÃO! — Sérgio levantou as mãos, desesperado. — Eu jamais faria algo que você não quisesse!
— É claro que não, você é um homem de princípios. — ela correu para a porta. — Nem pense em me seguir. Se você tentar, eu faço um escândalo que até os seguranças do prédio vão ouvir.
E saiu.
Sérgio ficou parado, o peito arfando. O gosto do beijo ainda em seus lábios.
— MAS QUE PORRA… — murmurou frustrado.
Ela pensava que ele queria… se aproveitar dela? Ele não é esse tipo de homem.
Então ele olhou pela janela e ainda chovia.
E ela estava lá fora. Sozinha, desorientada e com medo. E tudo por culpa dele.
— Meus parabéns, Sérgio — disse para si mesmo. — Nessa você se superou.
Ao ver a mochila dela no sofá, pegou as chaves do carro.
— Foda-se o que ela disse.
Ele precisava encontrá-la.