Mundo de ficçãoIniciar sessãoCapítulo 10 O Chalé do Pão de Forma
Durante todo o trajeto, depois de desembarcarem em um aeroporto regional, Umberto permaneceu em absoluto silêncio sobre o destino. Conduzia o carro com serenidade, o olhar atento à estrada e um discreto sorriso no rosto. Emilyke, por outro lado, mal conseguia conter a ansiedade. — Vamos para o litoral? — arriscou ela, mais de uma vez, tentando arrancar alguma pista. Mas Umberto apenas desviava o olhar para ela por um instante, murmurando com suavidade: — Confia em mim. Conforme o tempo passava, ela foi percebendo que se afastavam cada vez mais da civilização. A paisagem urbana foi sendo substituída por campos verdes, colinas longínqua, árvores frondosas e o som dos pássaros. Era, de fato, um cenário deslumbrante… para quem apreciava o contato com a natureza. Emilyke, porém, não era uma dessas pessoas. Seu universo era feito de concreto elegante, jantares refinados e comodidades irrepreensíveis. O cheiro da terra, o som do mato, o vento entre as árvores… tudo aquilo lhe era estranho. Quando finalmente chegaram, o carro parou diante de um chalé rústico, porém charmoso, cercado por árvores e próximo a um rio que corria sereno logo adiante. Uma trilha de pedras levava até a varanda de madeira, onde pendia uma rede. Umberto desligou o motor com calma e desceu sorridente. Emilyke não se moveu de imediato. Ficou ali, dentro do carro, observando a cena como se estivesse diante de um cenário de filme… só que ela preferia outro gênero. Com um suspiro discreto, ela finalmente desceu, os saltos afundando levemente na terra fofa. Permaneceu alguns segundos em silêncio, olhando para o chalé com expressão contida. — Então…disse, finalmente, medindo as palavras — é aqui que vamos ficar? Ele então se virou para ela com entusiasmo desmedido, os olhos brilhando como se estivesse diante de um sonho realizado. Ergueu os braços ao céu, como se estivesse agradecendo ao universo pela beleza da natureza, e exclamou, eufórico: — Não é incrível?! Sim! É aqui que vamos passar os três mais MARAVILHOSOS dias das nossas vidas! Emilyke piscou devagar. Seus olhos varreram a paisagem novamente: o chalé rústico, o mato em volta, o som de grilos ao fundo, o cheiro de terra misturado ao frescor do rio. — Três… dias? — repetiu, quase num sussurro. Emilyke olhou ao redor com atenção. O chalé, por dentro, era elegante na medida do possível: havia luz elétrica, internet, ar-condicionado, banheiro com água quente, cama confortável. O lugar fora claramente planejado para ser um refúgio de luxo em meio à natureza. Mas havia um detalhe que nenhum sistema de aquecimento poderia resolver: Emilyke não gostava da natureza. Nunca gostou. Era uma mulher de hotéis cinco estrelas, onde o café da manhã surgia como mágica e o serviço de quarto resolvia tudo. Cozinhar? Jamais. Ela pagava bem para nunca ter que cortar cebola ou ligar um fogão. Ela forçou um sorriso, ainda parada no mesmo lugar, os braços cruzados diante do peito. A ideia de preparar o próprio alimento não lhe causava empolgação, mas o brilho nos olhos de Umberto, tão raramente visto, a desarmou por dentro. — Vai ser… inesquecível — murmurou, sem conseguir esconder totalmente o sarcasmo. Umberto a puxou pela mão, rindo. — Isso mesmo! Inesquecível! E ela, olhando para ele, soube que seria mesmo. Só não tinha certeza de que seria por boas razões. Então Emilyke entrou. A passos lentos, como quem adentra um território desconhecido, e possivelmente hostil. Começou a desarrumar as malas sem nenhuma empolgação, colocando os vestidos luxuosos em cabides improvisados, longe de combinarem com o ambiente rústico. Suspirava alto a cada peça de roupa, como se perguntasse a si mesma: “O que eu estou fazendo aqui?” Enquanto isso, Umberto abria, orgulhoso, a pequena despensa ao lado da cozinha. — Amor, vem ver isso aqui! — chamou ele, com a empolgação de um garotinho exibindo uma coleção de figurinhas raras. Emilyke se aproximou, sem pressa. Quando olhou, seus olhos encontraram o que, para Umberto, era o verdadeiro tesouro daquela viagem: — Cogumelos! — disse ele, erguendo a latinha como quem levantava um troféu. — Pêssegos em calda! Espinafre, sardinha, atum, azeitonas! Tem linguiça, salmão defumado, queijo tipo suíço, parmesão e... olha só isso: vinhos de reserva especial. Ela piscou lentamente, depois virou-se para ele com uma sobrancelha arqueada. — Que fartura... — comentou, seca. — Você trouxe tudo isso, mas não trouxe um chef? Umberto riu, como se fosse piada. Mas ela estava sendo sincera. — Vamos cozinhar juntos! Vai ser divertido. Tem receita de lasanha de atum, salada morna de espinafre, tábua de frios com cogumelos salteados... Ela já tinha se afastado, voltando a organizar seus perfumes em cima da cômoda. — Eu mal sei onde liga esse fogão — murmurou. Umberto, ainda sorridente, não captou o tom. Estava encantado demais com a ideia de uma experiência diferente ao lado da noiva. — Ah, isso é o de menos. Eu te ensino! Vamos fazer tudo com as próprias mãos. Não é maravilhoso? Ela, pegando uma escova de cabelo dourada e se olhando no espelho do chalé, respondeu apenas: — Inesquecível mesmo. Umberto, ainda eufórico, virou-se de repente como se tivesse lembrado de algo vital. — Ah! Eu já ia me esquecendo! Apressou-se até uma sacola de lona próxima à porta e, com um brilho nos olhos, ergueu um pacote com entusiasmo. — Trouxe essa massa italiana para cozinharmos juntos! Emilyke virou-se devagar, com os braços cruzados. Olhou para o pacote erguido por ele. Piscou uma vez. Depois, arqueou a sobrancelha com a frieza de quem estava diante de um sacrilégio gastronômico. — Isso é macarrão instantâneo, Umberto! Ele congelou por um instante. Olhou para o pacote, depois para ela. Depois de volta para o pacote. — Mas é... sabor quatro queijos! — tentou argumentar, balançando o pacote como se o nome do sabor redimisse a situação. Ela virou-se de volta para a mala e começou a guardar sua nécessaire com precisão cirúrgica. — Quatro queijos... na embalagem de plástico. Que romântico. Umberto riu, um pouco sem graça, e colocou o pacote de volta na prateleira dos “enlatados preciosos”. — Ok, talvez não seja a massa que eu imaginava, mas… ainda pode ser divertido. Emilyke não respondeu. Apenas tirou da mala um par de pantufas felpudas e murmurou baixinho: — Isso aqui vai ser uma eternidade. O jantar começou com uma busca desesperada no celular de Umberto por um site de receitas. Após digitar “receitas rápidas para não morrer de fome”, ele abriu o primeiro link com a confiança de um chef premiado. — Pronto, amor, olha isso aqui. “Torta improvisada de atum com pão de forma”. Parece fácil, não? — disse ele, já retirando o pão, a lata de atum e algo que poderia ou não ser requeijão. Emilyke, sentada no sofá com os braços cruzados e uma expressão de julgamento absoluto, respondeu: — Você acha mesmo que eu vou comer uma torta feita com... pão de forma? — É gourmet! — reb**eu ele com um sorriso travesso. — Tudo é gourmet quando a fome b**e e o cenário é romântico. Ela suspirou profundamente, como quem estivesse prestes a sobreviver a uma guerra. — O cenário talvez. A comida… ainda não sei. Entre tentativas desastradas de abrir latas sem o abridor certo, e um pequeno incêndio controlado no fogão por descuido com o azeite, a “torta” foi finalmente montada. Umberto a serviu em dois pratos, decorando com azeitonas e duas folhas de manjericão colhidas do vasinho de plantas que tinha na janela. — Voilà, madame. Torta rústica de atum ao toque campestre. Emilyke olhou para o prato. Depois para ele. — Você só não quer admitir que fez um sanduíche quente. — Sanduíche gourmet! — corrigiu ele, sentando-se ao lado com seu prato e um olhar de esperança. Eles comeram em silêncio por alguns minutos. O gosto, surpreendentemente, não era tão ruim. Talvez fosse o friozinho da serra, talvez o improviso. Talvez... fosse ele. E então, pela primeira vez naquela noite, Emilyke riu. Riu mesmo, de verdade. — Sabe, essa sua empolgação... chega a ser contagiante. Umberto ergueu a taça de vinho improvisada em um copo de vidro estampado com desenhos de pinguins. — Ao nosso retiro romântico. Emilyke ergueu sua taça também, resignada. — À sobrevivência. E brindaram, entre cogumelos, pão de forma e um céu coberto de estrelas. A manhã surgiu tranquila, banhada por uma luz dourada que se filtrava suavemente pelas frestas da cortina de linho, dançando sobre o rosto de Emilyke. Não havia despertador, tampouco vozes apressadas chamando para trilhas ou propostas absurdas de caçada matinal. Apenas o silêncio, entrecortado pelo som longínquo de folhas se mexendo ao vento e o cantar de alguns pássaros invisíveis. Ela espreguiçou-se devagar, como se o próprio corpo hesitasse em abandonar aquele raro estado de repouso profundo. Havia tempos que não dormia tão bem. Desde que se lembrava, o sono vinha em parcelas inquietas, perseguidas por pensamentos e compromissos. Mas ali, naquela madrugada escondida na mata, o mundo parecia ter se calado a seu favor. Ao se levantar, atravessou a sala de madeira clara até a pequena cozinha, de onde vinha um leve aroma de pão recém-preparado. Nenhum sinal de Umberto. Sobre a bancada, repousava um sanduíche simples, embrulhado em papel manteiga e um bilhete escrito à mão: “Volto logo. Explore o silêncio. Com amor, U.” Emilyke pegou o sanduíche com uma curiosidade descompromissada. Aquilo não era típico dele. E talvez nem dela. Foi quando o cenário da cozinha, o gesto simples, e o silêncio cúmplice da natureza a tomaram de surpresa. A lembrança veio como uma brisa morna de verão: sua mãe, ainda jovem, com as mãos manchadas de frutas maduras, preparando uma geleia improvisada com pêssegos amassados com calda de açúcar, sem livro de receitas. Apenas a fruta e o carinho. Lembrava-se do cheiro, da textura... e do calor da presença materna em cada manhã da infância. Emilyke sentou-se à mesa. Ali, diante de um lanche feito com intenção, ainda que longe de ser uma geleia artesanal, sentiu um tipo diferente de saudade. Uma que não doía, mas acolhia. Talvez, pensou, naquele lugar perdido entre o nada e a coisa alguma, ela estivesse encontrando não o que havia vindo buscar... mas o que havia esquecido que precisava.






