3. Tensão

A casa era tão grande que eu continuava com a sensação de que, se me perdesse ali dentro, só me encontrariam na próxima temporada de um reality show, provavelmente já eliminada, porque ninguém teria paciência de procurar por mim. Márcia, a governanta, andava devagar, explicando cada cômodo com uma calma de quem conhecia aquele lugar como a palma da mão, e eu… bem, eu mal lembrava o caminho de volta pra cozinha.

— Aqui é o quarto dos pequenos — disse ela, abrindo uma porta branca que parecia ter sido polida cinco minutos antes.

Entrei e quase deixei escapar um “uau”. O quarto era literalmente digno de revista de decoração, mas a versão vida real, com um toque generoso de caos infantil. Brinquedos pelo chão, roupas largadas como se fugissem de algum monstrinho do armário, meias perdidas num nível que eu jurava ouvir gritos de socorro vindo delas.

— Eles não gostam muito que mexam no espaço deles — explicou Márcia, entregando-me uma prancheta com folhas plastificadas. — Essa é a rotina. Horários de lanche, tarefas, momentos de descanso, atividades. O senhor Monteiro gosta de tudo organizado.

A forma como ela disse “senhor Monteiro” quase exigia que eu fizesse uma reverência. O nome parecia carregar um peso, um status, um “se prepare porque ele não aceita menos do que perfeito”. E pior… combinava com o homem.

— Ele gosta mesmo, né? — murmurei, passando os olhos pela rotina.

— Ele exige. — Márcia suspirou. — E exige muito. Mas não se preocupe, você se adapta rápido.

“Adapta rápido.” Claro. Eu, Eliza, sobrevivente de mudanças caóticas, recém-chegada na cidade, encarando um castelo cujo dono parecia ter sido treinado para achar defeito até na sombra das pessoas.

— Esse quarto era pra ser só do Lucas, mas eles gostam de ficar juntos. O quarto da Alice é o do lado, mas eles quase não usam — ela explicou.

Aquilo acendeu um alerta silencioso dentro de mim. O “quase não usam” não era sobre mania infantil. Era sobre necessidade. Sobre medo. Sobre apego.

Quanto mais Márcia falava, mais eu entendia que aqueles dois pequenos tinham o olhar de quem já perdeu mais do que qualquer criança deveria perder.

Seguimos para o banheiro, impecável mas cheio de bancadas lotadas. Depois, o closet, gigantesco, lotado de roupas caríssimas, a ponto de realmente merecer seu próprio CEP. 

De volta a sala de brinquedos, a sala tão abastecida que poderia sustentar uma pequena creche. Lucas e Alice me observavam com a cautela de dois animaizinhos ariscos, sempre grudados um no outro, sempre atentos a cada movimento meu. Eu era o território desconhecido, a estranha, a recém-chegada que talvez fosse embora como as outras.

— Eles são bons, viu? — Márcia disse antes de sair. — Só… quietos. Você vai pegando o jeitinho deles.

E me deixou ali. Com duas crianças desconfiadas. E uma casa inteira me testando.

Respirei fundo, arregacei as mangas, e decidi que, se fosse pra eles fugirem de mim, então pelo menos fugiriam em um ambiente organizado.

Comecei pelo quarto: juntei brinquedos, dobrei roupas, tirei um carrinho debaixo da cama (ele quase me derrubou quando tentei puxá-lo), arrumei a escrivaninha, endireitei travesseiros… tudo com cuidado, sem mexer demais, sem tocar no que parecia importante pra eles. Eu queria deixar arrumado, não militarizado.

Depois, enfrentei a sala de brinquedos. Ali sim foi guerra. Bonecos jogados, pecinhas de montar até dentro do puff, carrinhos posicionados como se tivessem parado no meio de um trânsito imaginário. Organizei tudo por cor, tamanho e tipo, se isso era capricho ou autodefesa, só Deus sabe.

Às três, preparei o lanche seguindo religiosamente a rotina: fruta, fibras, carboidrato leve, leite ou suco natural. Lucas e Alice comeram em silêncio absoluto. Sem desviar muito o olhar da comida. Sem sequer arriscar uma piadinha infantil. Eu tentava sorrir, ser gentil, fazer comentários leves… e eles se encolhiam, como se qualquer palavra pudesse virar problema.

Era uma casa grande demais para tanto silêncio.

Quando deu seis e vinte, estávamos todos na sala. As crianças no tapete assistindo desenho, eu no sofá, atualizando a Ângela via mensagens e dando aquela conferida básica na rotina do dia seguinte.

Mas então a porta abriu.

E o mundo dos pequenos desabou num segundo.

Lucas e Alice ficaram rígidos, ageitaram a postura. Ombros encolhidos. Olhos fixos na TV, sem piscar. O tipo de modos que ninguém deveria ter diante do próprio pai.

Meu coração apertou de um jeito que eu não esperava.

Rafael entrou primeiro, alto, impecável, postura perfeita, olhar cortante. Ele simplesmente preenchia a sala como se fosse dono do ar. Atrás dele, um homem sorridente. Simpático. Um contraste tão forte que até doeu.

— Boa tarde, campeões! — o homem disse.

Lucas levantou a mão timidamente. Alice abriu um sorriso e correu para abraçá-lo. E só pela reação, eu sabia: aquele sim era um porto seguro.

Rafael observou a cena, mas não disse nada. Seus olhos voltaram para mim, depois para o celular na minha mão. E então veio o ataque.

— Isso aqui é hora de trabalho, não de lazer.

Eu sorri educadamente, ativando meu modo “não vou brigar com meu chefe no primeiro dia”.

— As crianças estão assistindo ao desenho. Eu só estava conferindo a rotina de amanhã.

Ok, mentira. Mas a fofoca da Ângela não precisava entrar na conversa.

Ele estreitou os olhos. Caminhou um passo na minha direção.

— Já arrumou a sala de brinquedos? Estava uma zona aquele lugar.

Sério? Eu tinha passado quase meia hora lá dentro lutando contra um apocalipse de brinquedos.

— Sim, senhor. Tudo arrumadinho.

— E o quarto? Não quero ver roupa fora do lugar.

— Tudo no seu devido lugar — respondi com um sorriso impecável. — Fique à vontade para fazer a vistoria.

O ar perdeu temperatura. Eu e minha boca grande.

Os olhos dele brilharam de um jeito estranho, irritado, sim, mas também… curioso. Como se ele não estivesse acostumado a alguém que respondia. Como se eu fosse um erro de cálculo.

O amigo dele riu baixo, claramente se divertindo.

— Cara, pega leve — disse ele, vindo até mim e estendendo a mão. — Sou Henrique. Não liga pra ele, não. Rafael é insuportável, mas não morde.

Henrique tinha aquele jeito que deixava qualquer pessoa relaxada. Rafael… era o oposto absoluto disso.

Rafael revirou os olhos, ignorou o comentário, e então voltou a focar em mim. Ele deu mais um passo. Depois outro.

Eu continuei sentada, mas minha espinha estava reta como uma régua. Meu coração, no entanto, estava fazendo batuque de escola de samba.

Ele parou tão perto que eu senti o ar ao redor mudar.

Se inclinou ligeiramente, a voz baixa, firme, cortante:

— Não se acostume a falar comigo desse jeito.

E o problema não foi a frase.

Foi o tom.

Aquilo… não era só irritação.

Era outra coisa. Algo que eu ainda não sabia nomear. Algo que poderia ser muito pior.

Ou muito, muito melhor.

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