Mundo de ficçãoIniciar sessãoAssinei um contrato de experiência e um de confidencialidade. Gente rica tem dessas coisas. Rafael me disse que meu tempo em teste começaria agora, já que é uma e meia da tarde e as duas crianças estão em casa.
— Acho que elas estão na sala de brinquedos. Você sabe onde é?
Não, eu não sei. Eu nunca estive aqui.
— Não, senhor.
— Corredor a esquerda da escada, segunda porta à esquerda.
Assenti e saí apenas murmurando um “com licença”.
A mansão dos Monteiro é tão grande que deveria vir com mapa, bússola e guia turístico. Eu me perco só de olhar para o corredor. Juro. Tem hotel cinco estrelas que não tem essa quantidade de portas.
Quando abro a porta da sala, quase tomo uma bola de borracha na cara. Desvio no reflexo. Obrigada, academia e meu personal imaginário.
— Oi… — tento dizer, sorrindo, já ativando meu modo diplomático nível ONU.
As duas crianças me encaram. Lucas, o mais velho, oito anos, olha pra mim como se eu fosse uma fiscal prestes a fechar o playground. Alice, cinco anos, abraça um ursinho com tanta força que eu quase peço socorro por ele.
— Eu sou a Eliza — tento de novo, animada o bastante pra fingir que não estou entrando num campo minado emocional.
Nada.
Silêncio absoluto.
E assim começa o meu dia.
— Olá! — Uma senhora sentada numa poltrona que eu nem tinha visto fala, levantando animada. — Você deve ser a nova babá!
Quase pulei de susto. Eu achava que estava sozinha nessa missão.
— Sim, Eliza. Muito prazer — aperto sua mão.
— Sou a Márcia, a governanta. Cuido de tudo por aqui. Seja bem-vinda.
— Obrigada!
— Elas podem ser difíceis no começo… geralmente não se aproximam de ninguém, mas só precisam de amor e carinho.
— Entendi. Vou dar meu melhor.
— Qualquer coisa me chame. Depois te mostro o quarto delas e a rotina.
Agradeci e ela saiu. Fiquei sozinha novamente com os seres pequenos que me analisavam como se eu fosse um alienígena recém-desembarcado.
Tento me aproximar.
Erro número um.
Lucas vira de costas sem cerimônia, pega outra bola e finge que eu não existo. Alice se afasta até encostar na parede, abraçando o ursinho com força renovada.
Certo. A recepção calorosa fica pra depois.
Respiro fundo. Pego uma caixa de lápis, tento puxar assunto.
Talvez eu seja invisível. Ou talvez eles só me odeiem mesmo.
— Tudo bem, posso ficar sentada aqui — digo, me acomodando num canto. — Não mordo, prometo.
Lucas me lança um olhar de canto. Aquele olhar rápido, de quem está avaliando se pode confiar em mim… ou se eu sou só mais um adulto que vai decepcioná-los.
Alice deixa cair um lápis. Me abaixo para pegar. É aí que vejo: debaixo da mesa, escondido, um desenho com a ponta dobrada. As cores borradas. Peguei sem pensar, reflexo de irmã mais velha.
Uma família de palitinhos. Dois adultos. Duas crianças.
Um murro emocional no estômago.
— Isso não é seu! — Lucas grita, arrancando o papel da minha mão, os olhos arregalados num pânico que eu não esperava.
Eu dou um passo pra trás. Não por medo dele. Mas pelo que ouvi na voz dele.
Alice corre para o lado do irmão, protegendo-o como pode.
Ergo as mãos devagar.
— Desculpa… vi caído aqui embaixo. Só ia devolver. Não vou mexer mais.
Lucas respira depressa, com aquele tremor de quem já precisou defender o pouco que restou dele muitas vezes.
— Eu não mexo nas suas coisas — ele cospe, magoado. — Então não mexe nas minhas.
Meu coração afunda.
— Claro. Você tem toda razão — digo suavemente.
E então…
— O que está acontecendo aqui?
A voz de Rafael corta o ar como um trovão.
Congelo. As crianças congelam. Até o ursinho parece congelar.
Ele está parado na porta, expressão dura, o olhar afiado indo de Lucas até mim.
— Eu ouvi o Lucas gritando. — Ele me encara como se eu fosse o problema. — Já estamos tendo dificuldades no primeiro dia?
— Eu só...
— Acho melhor cancelar o contrato agora — ele diz, voz fria, sem hesitar. — Se você não consegue manter ordem nem evitar conflitos básicos, não faz sentido continuar.
Sinto o chão sumir por um segundo.
Márcia aparece atrás dele, ofegante, provavelmente veio pelo grito.
— Senhor Rafael — ela diz com firmeza educada — a menina acabou de chegar. As crianças precisam de tempo para se adaptar, o senhor sabe. Elas ainda estão muito sensíveis.
Rafael fecha a mandíbula, pensando.
Lucas e Alice…
Eles parecem estar se encolhendo. Ombros duros, mãos trêmulas, rostinhos tensos, como se esperassem sermão. Ou bronca. Ou pior: indiferença.
Não é medo do pai bater.
É medo do pai existir.
E ignorá-los.
— Dê um tempo para ela — Márcia insiste. — Eliza está tentando.
Rafael me olha outra vez. Longamente. Como se estivesse avaliando cada centímetro da minha alma.
— Está bem — ele diz enfim. — Mas não quero mais gritos. Entendido?
Ele fala olhando para mim, mas o impacto cai nas crianças.
E dói mais do que qualquer bronca.
— Sim, senhor — respondo.
Ele sai. Márcia sai atrás.
E eu fico ali, em pé, no meio da sala, com duas crianças tensas, grudadas uma na outra, e um ursinho que testemunhou trauma demais.
Respiro fundo. Muito fundo.
Eu achava que cuidar de crianças era a parte difícil.
Mas agora estou percebendo…
Lidar com o chefe pode ser ainda pior.







