Mundo de ficçãoIniciar sessão
Eliza*
Se alguém me dissesse, há nove meses, no dia da minha formatura em Design de Moda, que eu estaria aqui, sentada em uma cadeira dura, quase sem respirar, diante de um CEO viúvo, sério e absolutamente intimidador, eu teria gargalhado. Daquelas gargalhadas que você solta quando acha que a vida só está brincando com você. Mas não. A vida não estava brincando. Ela me deu um pisão no joanete e me empurrou direto para a entrevista de emprego menos glamourosa que uma aspirante a estilista poderia imaginar. Faz um mês que eu e minha melhor amiga, Bianca, empacotamos nossas vidas em duas malas — as mais baratas, porque a gente acreditou que ia dar pra comprar outras depois — e nos mudamos para a cidade grande. O plano era simples: achar emprego na área. O plano real: ouvir tantos “não” que eu perdi a conta. As lojas queriam alguém com experiência. As confecções queriam um portfólio gigante. As marcas queriam alguém “indicado por alguém”. E nós… bom, nós não tínhamos ninguém para indicar a gente além de nós mesmas. E aparentemente o mercado não achou isso suficiente. Depois de semanas tentando, chorando no chuveiro e comendo miojo de 3 sabores diferentes (porque variedade importa), tomamos uma decisão: arrumar qualquer emprego que pagasse aluguel e continuar tentando aos poucos no ramo da moda. É assim que acabei sentada na sala enorme de Rafael Monteiro, respirando o perfume amadeirado dele, caro o suficiente pra me fazer sentir pobre só por existir. A sala parece saída de um catálogo de móveis que eu jamais teria coragem de entrar. Madeira escura, estantes altas, uma mesa de vidro que eu tenho certeza que vale mais que meu guarda-roupa inteiro. E no centro disso tudo: ele. Rafael segura meu currículo com a mesma expressão de quem encontrou um enigma. E eu acho que sei exatamente o que ele está olhando: “Formada em Design de Moda”. Eu tinha feito o currículo pra vaga na área de moda e depois fui fazendo conforme foi surgindo vaga que eu podia me inscrever, fiz a de babá pra entregar pra Rafael Monteiro mas na primeira impressão me esqueci de tirar o curso, imprimi outra, mas, eu trouxe a errada. No desespero das contas, do ônibus lotado e do meu estômago roncando, simplesmente esqueci de apagar a parte mais importante, e menos útil do papel. Parabéns, Eliza. Nota dez no quesito “autossabotagem”. — Curso de moda — Ele falou ainda olhando o papel, e então me encarou — Seu currículo é… incomum para uma babá — ele comenta, com aquela voz baixa de quem nunca precisou fazer esforço para ser levado a sério. Eu tento sorrir. Tento mesmo. Mas sai algo meio “socorro”. — Mostra que tenho criatividade, lidar com crianças exige isso — digo. A verdade é que eu estava tentando manter dignidade. E emprego. Principalmente emprego. Rafael apoia o currículo sobre a mesa, mas continua me analisando com olhos intensos demais para o meu nível de preparo emocional. — Tá escrito aí que sua experiência foi cuidar de dois irmãos — ele fala como se fosse pouca coisa. — Sim, dois irmãos, um menino e uma menina. Além de cuidar de outras em outros momentos. E eu aprendi rapido. — respondo, ajeitando o blazer baratinho que insiste em enrugar só pra me irritar. Eu não estou mentindo. Eu tenho experiência com crianças. Uma vez tomei conta do priminho de uma amiga. Ele me arranhou, me mordeu e derrubou suco no meu tênis. Se isso não é experiência, eu não sei o que é. Rafael dá mais um daqueles silêncios. Do tipo que me faz querer levantar e ir embora antes que ele perceba que eu sou uma farsa ambulante. Mas eu não vou embora. Tenho aluguel pra pagar. Ele finalmente se levanta. O mundo parece diminuir quando ele fica de pé — ou talvez eu que esteja pequena demais aqui dentro. Ele caminha até mim com passos lentos, firmes, calculados, como se cada movimento fosse planejado. Para tão perto que eu consigo contar a quantidade de fios de barba por fazer no rosto dele. Não que eu vá fazer isso. Até porque estou ocupada suando frio. — Eu preciso de alguém responsável — ele diz, com aquela calma que não combina com meu ataque de ansiedade interno. — Alguém que não complique minha vida e que saiba exatamente o que está fazendo. Eu abro um sorriso. Um sorriso que diz: “Eu definitivamente não sei o que estou fazendo”. Mas por fora, claro, parece só “educada e simpática”. — Eu posso começar quando quiser. — respondo. E posso mesmo. Até porque, no momento, minhas contas estão brigando entre si pra ver qual vai me humilhar primeiro. Rafael continua me olhando. E é um olhar que pesa. Não porque é agressivo. Mas porque parece que ele está tentando me classificar, encaixar, decifrar. Sinto que ele está buscando algo em mim, e eu só espero que não seja perfeição, porque aí ferrou. — Você mora longe? — ele pergunta. — Não muito. Dois quilômetros na verdade. Mas de ônibus da cerca de uma hora... Mais, se o motorista resolver ser filosófico e andar devagar. Rafael não ri. Ele parece incapaz de rir. Talvez até tenha esquecido como faz. — Horários flexíveis? — ele continua. — Completamente flexíveis. — Exceto quando eu estiver chorando pelo meu sonho de moda, mas ele não precisa saber disso. Silêncio de novo. Eu quase pergunto se posso colocar música ambiente pra diminuir a tensão. Então Rafael respira fundo, como se tivesse chegado a uma conclusão que só ele conhece. Ele estende a mão. Eu aperto. A mão dele é quente, firme e completamente incompatível com a minha, que está fria e trêmula. — Seja bem-vinda — ele diz. Eu sinto o peito afundar. E não sei se isso é bom ou ruim. Quando estou prestes a agradecer, ele adiciona, do jeitinho dele, seco, controlado, definitivo: — Não me decepcione.






