Capítulo 3

Fiquei parada no meio do quarto, olhando para a porta fechada, como se o simples fato de encarar a madeira polida fosse fazer o tempo voltar e me impedir de ter esbarrado naquele homem no shopping, mas não, o estrago já estava feito.

E, pior, agora eu tinha que aguentar.

Sophia, ainda no chão onde o pai a havia colocado com cuidado, me encarava com os olhos semicerrados, como se estivesse me avaliando com a mesma desconfiança que um gato usa para decidir se vai arranhar ou ronronar.

— Você realmente vai me levar no parque? — perguntou, de repente, com a voz mais baixa, quase tímida.

— Se seu pai deixar — respondi, honesta. — Mas antes, a gente precisa arrumar essa bagunça. Porque se ele voltar e ver esse caos, vai pensar que sou uma babá que só serve pra jogar travesseiro e comer iogurte no sofá caro.

Ela bufou, mas se levantou.

— Tá bom. Mas eu só ajudo se você prometer que vai me levar ao parque. 

— Combinado — sorri. — E se tiver escorregador em espiral, eu até te empurro da parte mais alta.

Ela riu. Um riso rápido, mas de verdade. Foi o primeiro sinal de que talvez eu não ia sair daquela casa em menos de 24 horas.

Arrumamos o quarto em silêncio, com ela jogando os brinquedos na caixa com mais força do que o necessário, mas sem gritar. Quando terminamos, ela se jogou na cama com os braços abertos, como se tivesse corrido uma maratona.

— Tô com fome — anunciou, como se fosse uma emergência nacional.

— Tá com fome ou com vontade de comer biscoito? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.

— As duas coisas — respondeu, sem nem pestanejar.

Desci com ela até a cozinha, onde uma cozinheira simpática, de cabelos brancos e avental florido, me recebeu com um sorriso largo.

— Ah, você é a nova babá! Me chamo Cida. Esse bichinho — apontou para Sophia — já comeu três fatias de bolo hoje. Se o pai soubesse, me mandava embora junto com as últimas babás.

— Ela comeu bolo no café da manhã, almoço e agora? — sussurrei, horrorizada.

— Comeu, bebeu suco com açúcar, e ainda pediu pra temperar a sopa com chocolate em pó. — Dona Cida revirou os olhos, mas com carinho. — Essa menina é um desafio, mas tem um coração do tamanho do mundo.

— Então vamos começar com algo simples — falei, abrindo a geladeira. — Que tal um sanduíche de queijo e um suco de laranja sem açúcar?

Sophia fez cara de quem tinha acabado de ouvir que o Natal foi cancelado.

— Isso é comida de pobre!

— E daí? — respondi, cortando o pão com firmeza. — Pobre também vive, sabia? E vive com os dentes bons, porque não come açúcar o dia inteiro.

Ela me encarou. Ficou em silêncio. Depois, deu de ombros.

— Tá. Mas quero ketchup.

— Ketchup não.

— Mostarda?

— Nem pensar.

— Então quero que você coma também. Para eu ver se não é veneno.

— Combinado — ri, sentando à mesa com ela.

Enquanto comíamos, ela me contou, entre mordidas, que a última babá “sumiu depois que eu joguei suco na calça dela”.

— Ela disse que não ia mais voltar. E não voltou.

— Por que você jogou suco nela?

— Porque ela tava falando no telefone com o namorado e não me ouviu quando eu caí.

Meu peito apertou de novo.

Essa menina não era má. Só desesperada por atenção.

— Pois eu não tenho namorado — falei, limpando a bochecha dela com um guardanapo. — E mesmo se tivesse, ia ouvir você cair. Pode jogar suco, iogurte, até sopa de chocolate em mim. Eu fico.

Ela me olhou por um longo segundo.

— Sério?

— Sério.

— Então… — ela se aproximou, sussurrando — você pode me contar uma história depois do banho?

— Claro.

— Mas não aquelas chatas de príncipe. Quero uma de monstro bom que vira amigo.

— Fechado.

Naquela tarde, Regina apareceu com um uniforme simples — calça jeans, blusa branca, tênis.

— É só pra identificação. Não queremos que os seguranças te confundam com uma intrusa — explicou, com um meio sorriso. — Ah, e o Sr. Arthur autorizou que você leve Sophia ao parquinho dos fundos. Mas Larissa vai acompanhar.

— Larissa?

Antes que eu pudesse perguntar mais, a porta se abriu e entrou uma mulher que parecia saída de um filme de ação.

Cabelo curto, óculos escuros, jaqueta preta, braços com veias que pareciam cabos de aço.

— Sou Larissa — disse, com voz grave. — Cuido da segurança pessoal da menina. Vou com vocês.

— Tá — respondi, tentando não parecer intimidada. — Só não me empurre no escorregador, tá bom?

Ela me encarou. Depois, deu um quase sorriso.

— Só se você merecer.

Sophia, ao ver Larissa, pulou:

— Larissa! Hoje a babá nova vai me levar no parque! Ela prometeu!

— É? — Larissa me olhou de cima a baixo. — Vamos ver se ela cumpre.

O parquinho era um sonho.

Escorregador gigante, gangorra de verdade, casinha de madeira, até um balanço de pneu suspenso por correntes grossas. Tinha até um pequeno jardim com flores coloridas e um gatinho preguiçoso tomando sol.

— Olha, Mauren! É o Mingau! — Sophia correu para o gato, que nem se moveu.

— Mingau?

— Ele mora aqui. O papai disse que não pode entrar na casa, mas a gente dá comida pra ele.

Fiquei impressionada. Arthur permitia um gato nos jardins? O mesmo homem que torceu o nariz para mim no shopping?

O mundo é mesmo cheio de contradições.

Enquanto Sophia brincava, Larissa ficou parada perto do portão, braços cruzados, olhos atentos.

— Ela já quebrou o braço uma vez — comentou, de repente. — Escorregou do balanço de pneu. A babá da época estava no celular.

— Entendi — falei, me aproximando do balanço. — Então é melhor eu não tirar os olhos dela.

— É melhor.

— Mas você não acha que ela precisa de liberdade para cair e aprender?

Larissa me olhou, surpresa.

— Você fala como quem já cuidou de criança.

— Só de primos teimosos. Mas acho que criança não é porcelana. É ser humano e as pessoas aprendem errando.

Ela assentiu, quase imperceptivelmente.

— Talvez você dure mais que as outras.

— Vamos ver.

Quando o sol começou a se pôr, Sophia estava exausta, com as bochechas vermelhas e o cabelo cheio de folhas.

— Quero jantar com você — disse, agarrando minha mão.

— Tá bom. Mas só se você comer legumes.

— Só se você comer também.

— Fechado.

Na cozinha, dona Cida serviu macarrão com molho de tomate e brócolis.

— Brócolis? — Sophia torceu o nariz.

— Brócolis com poderes mágicos — falei, séria. — Quem come vira super-herói.

— Sério?

— Sério. Até seu pai come.

— Meu pai odeia brócolis!

— Então ele é fraco. Você quer ser forte ou fraca?

— Forte!

E enfiou um pedaço na boca com a cara mais determinada do mundo.

Larissa, que estava na porta, riu baixinho.

— Essa é nova.

Foi então que ouvi passos firmes e familiares no corredor.

Arthur entrou na cozinha, ainda de terno, mas com a gravata afrouxada e os olhos mais cansados do que antes.

Parou ao me ver sentada à mesa com Sophia, os dois de boca cheia de macarrão, e um brócolis pendurado no garfo dela como se fosse uma medalha olímpica.

— Você comeu brócolis? — perguntou, incrédulo.

— É mágico! — ela gritou, feliz. — A Mauren falou!

Ele me olhou.

— Brócolis mágico?

— Todo alimento tem poder — respondi, limpando a boca com o guardanapo. — Até iogurte no sofá caro.

Ele quase sorriu, mas se segurou.

— Regina me disse que você levou ela ao parquinho. Sem incidentes.

— Só o gato Mingau tentou roubar meu sanduíche. Mas acho que foi por carência.

— A gente sempre leva ração ao gatinho. Ele é um bom negociador, não incomoda, não fica dentro de casa e ainda ganha comida. 

— Ah. Então ele é mais esperto que eu.

Desta vez, ele sorriu de verdade. Um sorriso pequeno, rápido, mas que iluminou aquele rosto sério como um raio de sol num dia nublado.

Sophia, toda animada, puxou a manga dele.

— Papai, a Mauren vai me contar uma história de monstro bom. Ela prometeu!

— É? — ele me encarou. — E você sempre cumpre o que promete?

— Só prometo o que posso cumprir — respondi, segurando o olhar dele.

Houve um silêncio denso, quase íntimo. Como se, por um segundo, não fôssemos patrão e empregada, nem CEO e babá caída no chão.

Só duas pessoas cansadas tentando fazer o certo.

— Boa noite, Mauren — ele disse, por fim.

— Boa noite, Sr. Arthur.

— É só Arthur.

— Tá… Arthur.

Ele acenou com a cabeça e saiu, mas antes de fechar a porta, parou.

— Ah…

— Sim?

— O sofá vai precisar de um estofador.

— Eu ajudo a pagar.

— Não precisa. — Ele olhou pra mim, sério. — Só não suma amanhã.

E foi embora.

Sophia me puxou pela mão.

— Vamos? Quero a história!

Subi com ela, dei banho, escovei os dentes, e sentei na beirada da cama.

— Era uma vez um monstro chamado Bobo…

— Bobo? Que nome bobo!

— É por isso que ele era bom. Porque todos riam dele, então ele decidiu fazer os outros felizes pra se sentir útil…

Enquanto eu falava, ela foi ficando sonolenta. Antes de dormir, murmurou:

— Mauren…

— Sim?

— Você vai ficar amanhã?

— Vou.

— E depois de amanhã?

— Também.

— Para sempre?

— Até você não precisar mais de mim.

Ela sorriu no escuro.

— Tá bom.

Fui para o meu quarto de hóspedes, exausta, mas com o coração mais leve do que em semanas.

Me joguei na cama, fechei os olhos…

E ouvi batidas leves na porta.

— Pode entrar — falei, achando que era Sophia com sede.

Mas era Regina.

— Aqui — disse, entregando um envelope. — Seu contrato. E um adiantamento.

Abri. Dentro, além dos papéis, havia uma nota manuscrita, em letra firme:

“Dura mais que um dia. — A.”

Segurei o papel contra o peito e respirei fundo.

Talvez, só talvez, eu tivesse achado não só um teto…

Mas um lugar onde eu pertencia, mesmo que por um tempo.

E, no fundo, era mais do que eu tinha esperado no dia em que esbarrei num homem chato no shopping.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP