Capítulo 4

Na manhã seguinte, acordei com o sol batendo na janela e o silêncio mais pesado que eu já ouvi. Como se a casa inteira estivesse prendendo a respiração pra ver se eu realmente ia ficar.

Sophia ainda dormia. Larissa já fazia sua ronda matinal pelo jardim. Dona Cida cantarolava na cozinha, e eu tinha uma promessa a cumprir comigo mesma:

Voltar ao apartamento e pegar minhas coisas.

Não podia continuar vivendo na mansão como um fantasma que trouxe só a roupa do corpo.

Eu precisava de minhas fotos antigas. Do meu travesseiro surrado. Do caderno onde anotava receitas da vó.

Coisas que não valem nada pra ninguém, mas que valem tudo pra quem não tem mais nada.

Regina pediu ao motorista que me levasse até meu antigo apartamento. O carro era lindo, um sedã preto tão limpo que dava medo de respirar dentro.

— Só não demore muito. — disse, séria. — O Sr. Arthur tem uma reunião importante à tarde,  e a Sophia fica mais calma com você por perto.

— Entendi — respondi, segurando as chaves de casa como se fossem feitas de vidro.

O motorista dirigia devagar, ouvindo o rádio baixinho, mas meus pensamentos estavam mais altos que qualquer música.

Será que Seu Barcelos já tinha alugado o apartamento?

Será que Mirielen tinha contado para todo mundo que eu virei babá de milionário?

Será que eu ainda cabia naquele mundo?

Quando estacionei na frente do prédio antigo, com as paredes descascadas e o portão rangendo como sempre, senti um aperto no peito. Eu ia me despedir desse local que me acolheu durante tantos anos. Não era fácil para mim deixar tudo o que eu era para traz. 

Subi as escadas, cada degrau rangendo como um lamento.

A chave ainda girava na fechadura.

E, quando abri a porta, tudo estava exatamente como eu deixei, só que mais vazio.

As paredes nuas pareciam me julgar.

“Você está fugindo, Mauren?”

“Você está se vendendo?”

“Você esqueceu quem você é?”

Mas então vi meu espelho em cima da cômoda.

E vi eu mesma — cabelo preso de qualquer jeito, olheiras, mas com os olhos menos cansados do que antes, por incrível que pareça. 

— Tá tudo bem — sussurrei pra mim. — Você não está fugindo, está sobrevivendo.

Comecei a colocar minhas coisas numa mala velha. Fotos, roupas, o caderno de receitas, o chinelo surrado que eu usava pra varrer a varanda…

Foi quando ouvi uma voz familiar do corredor:

— MAUREN!

— Mirielen — disse, me virando na hora, com um sorriso automático.

Ela entrou sem bater, como sempre, com um pão na mão e os olhos arregalados.

— Você sumiu! Eu estava achando que tinham te sequestrado! O cara é tão rico que deve ter te prendido num porão com cama de seda!

— Quase isso — ri, abraçando ela. — Só que em vez de porão, é quarto de hóspedes com vista para o jardim. E em vez de cama de seda, é colchão ortopédico que parece feito de nuvem.

— Sério? — ela me encarou, maravilhada. — E a menina? Ela é daquelas que jogam prato na parede?

— J**a travesseiro, iogurte e até suco de caixinha. Mas ontem comeu brócolis porque eu disse que dava superpoderes.

Mirielen soltou uma gargalhada alta.

— Nossa, você já está domando a fera!

— Não estou dominando ninguém, mas estou tentando ficar.

Ela me olhou com seriedade, pela primeira vez.

— Você está feliz?

A pergunta me pegou de surpresa.

Fiquei em silêncio por um segundo.

— Não sei se é felicidade. Mas é alívio. Alívio de não ter que procurar onde dormir. Alívio de não ter que fingir que tô bem o tempo todo.

Mirielen me abraçou forte.

— Então fica. Mas não esquece de mim, tá? Porque se você virar rica e esquecer que eu te levei para o shopping, eu vou lá na mansão e jogo iogurte no seu sofá caro.

— Pode jogar, o sofá já está acostumado mesmo. Quando cheguei lá tinha iogurte no sofá. — Respondi fazendo careta. — Ainda bem que eu sou a babá, imagina se eu fosse a faxineira do poderoso chefão. Que nojo! — Rimos. 

— Tem coisas piores. — Respondeu ela, rindo. 

— Se tem… e, por falar nisso, tu acredita que eles meio que adotaram um gatinho de rua? — Contei como se fosse um grande babado. — O nome dele é Mingau, deve ter sido dado pela Sophia, e ele compra ração para dar ao tal gato. Sinceramente, não combina em nada com o homem que me deixou atirada no chão do shopping aquele dia. — Resmunguei.

— Olha, o CEO adotando pets de rua. Tá aí uma coisa que eu nunca imaginei ver na vida. — Rimos. — Pronto, agora quero ir te visitar nessa mansão. 

— Não sei se tenho autorização para isso, mas bem que eu gostaria de te receber lá, amiga. 

— Então venha me ver. Só não esquece de trazer o Mingau junto. — Rimos juntas, ali no meio do apartamento vazio, como se o mundo ainda fosse simples.

Mas quando me despedi, carregando a mala, senti um nó na garganta.

Porque eu não tava só levando minhas coisas.

Tava levando minha antiga vida para dentro de um novo mundo e não sabia se ela ia caber lá.

De volta à mansão, encontrei Sophia sentada na escada da entrada, com os joelhos no queixo e os olhos vermelhos.

— Você foi embora — disse, sem me olhar.

— Só fui buscar minhas coisas.

— Você prometeu que não ia sumir.

— E eu voltei, não voltei?

Ela levantou os olhos, cheios de lágrimas, mas sem chorar.

— Por que você não mora aqui pra sempre?

— Porque… — respirei fundo — casa de babá é temporária.

— Mas eu quero que você fique.

— Eu também quero ficar, Sophia. Enquanto você precisar.

Ela se levantou, pegou minha mão, e me puxou com força.

— Vem! Quero te mostrar uma coisa!

Me levou até o fundo do jardim, atrás da estufa de flores, onde havia um banco de madeira velho e um canteiro com margaridas.

— É o meu esconderijo secreto — sussurrou. — Só eu e o Mingau sabíamos. Mas agora você também sabe.

Sentamos ali em silêncio por um tempo, ouvindo os passarinhos e o vento nas árvores.

Foi então que ela disse, tão baixinho que quase não ouvi:

— Minha mãe costumava vir aqui comigo.

— Ela gostava de margaridas?

— Gostava de tudo que fosse simples.

— Como eu?

Ela me olhou, séria.

— Sim, como você.

Meu coração doeu, porque soube que de alguma forma ela perdeu sua mãe e agora  eu era tudo o que ela tinha. Eu me identificava um pouco com ela. 

Mais tarde, ao entregar a mala no meu quarto, encontrei Arthur na biblioteca, de costas pra janela, segurando um copo de uísque.

— Você voltou — disse, sem se virar.

— Prometi que voltava.

— Promessas são fáceis de fazer.

— Mas difíceis de manter — completei. — Principalmente quando você está com medo de não ser suficiente.

Ele se virou.

Seus olhos estavam pesados, mas atentos.

— Você é suficiente pra ela.

— E pra você?

A pergunta saiu antes que eu pudesse segurá-la.

Ele me encarou por um longo segundo.

— Eu não sei o que é “suficiente”. Só sei que, desde que você chegou, ela dorme a noite inteira, come legumes e ri.

— Isso não é mérito meu.

— É sim. Porque você não a vê como um problema. Vê como uma pessoa.

E, pela primeira vez, sua voz soou quebrada.

Ficamos em silêncio, pensando.

Naquela hora éramos apenas dois adultos tentando carregar o peso de um mundo que não ensinou ninguém a ser pai e mãe.

— Eu vou ficar — falei, baixinho.

— Por quanto tempo?

— Até você não precisar mais de mim. — Ele sorriu, triste, cansado, mas real.

— Então prepare-se, porque eu vou precisar por muito tempo.

E, antes de sair, deixou algo sobre a mesa:

uma chave.

— É do portão lateral. Para você não depender de carro toda vez que quiser ir embora.

— Eu não vou mais embora — respondi.

— Todo mundo vai embora, Mauren.

— Não eu.

Ele não disse mais nada, só acenou com a cabeça e saiu.

Naquela noite, deitei na cama com o som do jardim entrando pela janela.

E, pela primeira vez em anos, não rezei pra sobreviver, mas para merecer estar ali, agradecendo pela missão que me foi dada.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP