O trajeto foi tranquilo. O carro deslizou pelas ruas movimentadas da cidade, enquanto eu tentava, em vão, esvaziar a cabeça. Pensava em tudo e em nada ao mesmo tempo, mas sabia que, na mansão, me aguardava algo que, por mais complicado que fosse, trazia um pouco de vida ao meu dia.
Cheguei em casa e, antes mesmo de tirar o paletó, ouvi a voz da Lívia, um alívio no meio do turbilhão do dia.
— Papai!
Vi ela se levantar num pulo, com aquele sorriso que só ela sabe dar. A única coisa que me faz esquecer, mesmo que por pouco tempo, o que perdi.
Me abaixei para abraçá-la com toda a ternura que ainda consigo sentir.
Ver minha filha é o meu momento de paz. Ela tem sido o meu tudo, se não fosse por ela, não sei no que eu teria me transformado depois que perdi a Bárbara.
— Verônica! — cumprimentei a irmã da minha esposa com um beijo no rosto, tentando esconder a frustração que sinto cada vez que ela aparece. — Como foi a viajem?
Essa visita é um lembrete do que foi e do que não volta.
— Incrível, Leo. Depois te conto. — Ela sorri, mas seus olhos não estão realmente aqui. Nunca estão.
— Dona Regina, tudo certo por aqui? — perguntei, tentando manter o tom firme, mas quase familiar.
Preciso que a casa pareça um porto seguro para Lívia.
— Tudo sob controle, senhor — respondeu Regina, com aquele sorriso que esconde um mar de desconfiança.
Seguimos para a sala de jantar. Fiquei parado, observando. Peguei o prato, servi minha comida sem pressa. Para a Lívia, preparei tudo com o cuidado que a morte da mãe nos tirou: soprei a colher para que ela não se queimasse, perguntei com a voz baixa se estava quente demais.
De repente, a campainha tocou. Franzi a testa, surpreso com a interrupção. Será que era Áugusto? Eu disse depois do almoço, mas vai saber. Regina se levantou para atender.
Logo depois, ouvi a voz dele, animada, falando com Regina, e os três vieram até a sala de jantar
— Eu disse, papai, que chegaríamos na hora do almoço e não depois dele — Rafaela riu, com aquele sorriso descontraído.
— Que isso, juntem-se a nós — Regina disse, já fazendo sinal para uma das cozinheiras. — Coloque mais dois lugares na mesa.
Verônica me lançou um sorriso caloroso, tão natural que era impossível desconfiar de suas verdadeiras intenções. Ela parecia genuinamente feliz por estarmos juntos ali, como uma amiga próxima, como sempre aparentou ser.
Regina parecia aprovar a presença de Rafaela, comentando de leve como ela era uma boa companhia e que poderia ser um bom apoio para mim.
— É tão bom ter você aqui, Rafaela — disse Regina, com um sorriso caloroso. — A casa fica mais leve com sua presença.
Rafaela agradeceu com um aceno tímido, mas eu percebi o leve rubor em suas bochechas. Ela sempre parecia desconfortável quando era colocada sob os holofotes.
— Concordo plenamente — entrou Augusto, que se acomodava de frente para mim. Seu olhar era firme, como quem já vinha com uma intenção clara. — Todos sabem como estimo que nossa família se una. Nós somos grandes apoiadores do Leonardo.
Entendi claramente o que ele quiz dizer, todos entenderam, e Veronica com aquela expressão doce que só ela sabia usar, tratou de dar sua opnião imediatamente.
— Ah, mas todos nós apoiamos o Leonardo — disse, mexendo delicadamente o vinho em sua taça. — Uns mais de perto, outros de longe. O importante é que ele saiba fazer boas escolhas, para si e para a pequena Lívia.
Olhei para minha filha, sentada entre mim e Verônica, distraída com a comida no prato. Por um instante, senti uma pontada de desconforto. Verônica sempre usava Lívia como desculpa para se meter onde não era chamada.
— Boas escolhas são fundamentais — reforçou Augusto, como se estivesse deliberadamente me empurrando para um caminho que ele julgava óbvio. Seus olhos se voltaram para Rafaela, e eu não precisei de muito para entender a mensagem.
Verônica se recostou na cadeira, o sorriso permanecendo, mas os olhos frios como gelo.
— Leonardo precisa mesmo é de alguém forte. A vida não é feita só de calmaria.
A segunda intenção por trás da frase dela ficou no ar, quase palpável. Eu me limitei a beber um gole de vinho, disfarçando o incômodo.
Às vezes, um simples almoço na minha casa parecia mais uma reunião estratégica, onde cada um tinha sua pauta oculta e o cardápio era apenas um detalhe.
***
Depois do almoço Verônica foi embora, eu e Augusto fomos pro escritório, lemos e assinamos o documento e o entreguei, depois que ele saiu com a filha eu me despedi de Lívia e voltei ao trabalho.
O resto da tarde foi tomado por reuniões, análises de contratos e decisões estratégicas que, para quem não está no meu mundo, podem parecer entediantes, mas para mim são o combustível que mantém tudo funcionando.
À noite, o momento mais esperado: o jantar com Lívia. A simplicidade daquele instante, quando vejo seus olhos brilhando ao meu lado, apaga um pouco da dureza que o dia impôs. Mesmo cansado, faço questão de estar presente, contando histórias bobas, tentando arrancar risadas, porque sei que é o que ela merece, e o que me mantém são.
Mais tarde, já no quarto, ouvi o silêncio que antecede o sono. Me entreguei ao cansaço, mas, como tem acontecido nos últimos meses, o sono não veio fácil. Quando o relógio marcou 23h40, despertei com uma sede repentina. Levantei-me devagar, e caminhei até a cozinha.
No caminho, algo me chamou a atenção: a luz estava acesa. Estranho. Geralmente, a casa inteira está mergulhada no escuro àquela hora.
Aproximei-me com cautela, o silêncio pesado me fazendo questionar quem poderia estar ali, naquele horário.