Varanda da fazenda Duarte – Tarde fria.João estava imóvel. O vento varria a varanda da sede, mas ele não sentia nada. O corpo presente, a alma dispersa — ausente como quem já havia sido sepultado vivo.As mãos estavam frias, apesar do chá quente que Clara lhe entregara. Ela sorria com doçura. O tipo de doçura que sufoca."É o certo, João", diziam todos.Seu pai. Seu tio Afonso pai de Clara. Até Ana silenciara diante da imposição.O nome Duarte precisava sobreviver. O escândalo precisava ser abafado. A aliança com Clara — filha perfeita, prima ideal — seria o selo de honra.Honra.A palavra soava como ferro enferrujado contra os dentes. Ele não queria. Nunca quis. Clara era o passado... Amanda, o abismo que ele escolheu cair.Mas agora, estava de mãos atadas.Augusto batera na mesa dias antes, os olhos em brasas, a voz como um trovão:— Ou você casa com Clara, ou sai desta família sem um centavo, sem um sobrenome, sem um teto para onde voltar.João sentiu o ódio raspar-lhe o peito. N
Varanda da sede – Mesmo fim de tarde.João estava ao lado de Clara, mas seus olhos vagavam, inquietos. O vento trazia um pressentimento antigo. Aquela dor atrás do peito — que ele aprendera a calar — voltou com força.E então ela apareceu.Amanda.Não era mais a mesma. Era mais. Mais mulher. Mais firme. Mais distante. Seus cabelos, soltos ao vento, pareciam tecido de ouro antigo. Os olhos azuis — aqueles que um dia haviam se voltado para ele com ternura — agora eram puro gelo.Ela subia os degraus com um porte de rainha exilada que retorna ao palácio.Mas não era isso que o feria.Era o homem ao lado dela.Bruno.Alto, elegante, o olhar atento. Como se a escoltasse. Como se fosse dele a responsabilidade de protegê-la — ou pior, como se fosse dele o privilégio de merecê-la agora.João sentiu o estômago contrair. Um nó se fez na garganta, mas ele não podia demonstrar. Clara estava ao seu lado. E todos olhavam.Amanda não parou. Não hesitou. Passou por ele... como quem não via.Mas ele a
Sala de jantar – Sede da Fazenda DuarteA mesa estava impecável. Louças de porcelana azul-cobalto, taças de cristal limpo como a primeira neve do inverno, talheres de prata realinhados com obsessiva perfeição. Uma lareira crepitava em um canto, mas o verdadeiro calor da sala... estava longe de vir do fogo.Amanda entrou.Vestida como quem sabia seu lugar no mundo — e que o lugar era no topo. O casaco pendia de seus ombros como uma capa de rainha. Os cabelos estavam soltos, dourados como trigo sob o sol do leste. Seus olhos, azuis e gelados, atravessaram a sala com a precisão de uma lâmina.Ao seu lado, Bruno.Alto, loiro como o ouro de velhas coroas eslavas. Olhos verdes que contrastavam com a dureza de sua expressão. Trajava um terno cinza-escuro, sem exageros, mas cortado com perfeição. Era impossível não notá-lo.Todos os olhos voltaram-se para eles — como se uma tempestade tivesse acabado de cruzar a porta.José foi o primeiro a se levantar, o sorriso genuíno, como o de um irmão m
A Princesa da CasaA família Duarte era conhecida em toda a Rússia e reverenciada nos círculos mais influentes da Suíça. Seu nome abria portas em grandes corporações, e seu brasão, gravado em cartas, contratos e taças de cristal, era sinônimo de prestígio e poder.Originários de uma linhagem antiga, os Duarte haviam transformado heranças de terra em impérios de negócios. O frio europeu não gelava seus corações — apenas os mantinha ainda mais firmes, calculistas, inabaláveis.Entre todos, Amanda talvez fosse a mais inesperada das herdeiras. Nascida longe dos salões dourados e dos jantares diplomáticos, ela fora criada por Ana e Augusto como filha, e agora carregava o nome Duarte com a mesma elegância e firmeza que os legítimos descendentes de sangue.Apaixonada pela vida, Amanda agora também carregava nas costas uma responsabilidade que faria muitos sucumbirem: ajudava na administração das empresas da família. Seu olhar era agudo como o da tia Ana, sua língua, afiada como a das mulhere
José dirigia com tranquilidade, o braço apoiado na janela emoldurada pelo frio russo e a mente já mergulhada nos preparativos da viagem com Sofia. Amanda, ao seu lado, observava as árvores cobertas de neve desfilarem pela estrada, em silêncio. Quando chegaram em frente ao colégio, Amanda se despediu do irmão com um sorriso sincero.— Vai com Deus, Zé. Qualquer coisa, me liga, tá? — Disse, ajustando a alça da mochila.— Cuida de você, pequena. E não deixa ninguém te irritar — ele piscou, como quem já adivinhava o caos que rondava os corredores daquela escola.— Eu? Nunca! — Ela riu, fechando a porta e seguindo em direção à entrada coberta de gelo.No colégio, Amanda era popular. Seu carisma natural e inteligência afiada faziam dela uma presença marcante. Mas ser uma Duarte — mesmo que de coração e não de sangue — também atraía inveja.Entre os desafetos, Emili era a mais notável. Filha de Carlos, irmão de Augusto, ela ostentava o sobrenome Duarte com arrogância. Estudavam na mesma esco
Entre Salas e SilênciosAmanda atravessou a recepção da sede da Duarte Holdings com passos firmes. Os saltos altos ecoavam no piso de mármore e contrastavam com o som discreto das vozes, teclas e telefones ao redor. A recepcionista sorriu ao vê-la.— Bom dia, senhorita Amanda.— Bom dia, Helena — respondeu com gentileza, ajeitando a pasta nos braços.Subiu os andares até a sala de reuniões executiva. Ali, todas as terças, participava dos encontros estratégicos do setor agropecuário, ao lado de figuras influentes e experientes. Muitos a olhavam como a “sobrinha da dona Ana”, mas poucos compreendiam a força da mulher que Ana vinha moldando com precisão há anos.Ao entrar, os olhares se voltaram. Alguns se levantaram para cumprimentá-la — formais, respeitosos, mas distantes. Outros apenas assentiram, como se a presença dela ali fosse uma mera formalidade.Amanda escolheu um lugar ao centro da mesa e abriu a pasta com os relatórios de desempenho trimestral. O diretor financeiro, um homem
O Jaguar e a TempestadeO expediente finalmente chegou ao fim. Amanda saiu da empresa com passos cansados, os ombros ainda tensos pelas discussões do dia. Mas ao atravessar a calçada, avistou João encostado no Jaguar preto, de braços cruzados e expressão indecifrável.— Vamos — disse ele, simplesmente, abrindo a porta do passageiro.Ela hesitou por um segundo, mas entrou.O trajeto foi silencioso, tenso como se palavras fossem armadilhas. Quando estacionaram em frente à faculdade, Clara já aguardava na calçada, com a mochila pendurada num ombro e o celular no outro.Ao ver Amanda no banco da frente, não conteve o comentário ácido:— Não sabia que a Amanda já ia voltar com a gente hoje, João... — disse, com a voz melosa. — E ainda está no meu lugar. Agora eu vou ter que ir no banco de trás?Antes que João pudesse responder, Amanda soltou o cinto num gesto rápido, abriu a porta e desceu com a mochila em mãos.— Podem ir vocês. Eu não preciso ir com o casal — disparou, a voz afiada como
Coração em SilêncioAmanda estava deitada de lado, ainda com a roupa da empresa, os sapatos jogados no chão. O quarto estava escuro, iluminado apenas por um feixe de luz que passava pela fresta da janela. O caderno aberto sobre a cama, a caneta parada entre os dedos. Ela queria escrever, como sempre fazia quando o mundo ficava pesado demais. Mas as palavras não saíam.“Você vai mesmo dormir fora de casa três vezes na semana? ”A frase de João ecoava na mente, atravessando o peito como um estalo. Ele sempre dizia que era proteção. Mas por que doía tanto?Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo. Queria chorar, mas não dava esse luxo nem a si mesma.Na porta, uma batida suave.— Posso entrar?Amanda reconheceu a voz antes mesmo de ouvir o fim da frase.— Pode — respondeu sem se mover.Ana entrou devagar, sentou-se na beirada da cama e olhou o caderno sem invadir.— Não quer escrever hoje?— As palavras não querem sair — disse Amanda, ainda deitada.— Às vezes, elas só preci