O expediente finalmente chegou ao fim. Amanda saiu da empresa com passos cansados, os ombros ainda tensos pelas discussões do dia. Mas ao atravessar a calçada, avistou João encostado no Jaguar preto, de braços cruzados e expressão indecifrável.
— Vamos — disse ele, simplesmente, abrindo a porta do passageiro.
Ela hesitou por um segundo, mas entrou.
O trajeto foi silencioso, tenso como se palavras fossem armadilhas. Quando estacionaram em frente à faculdade, Clara já aguardava na calçada, com a mochila pendurada num ombro e o celular no outro.
Ao ver Amanda no banco da frente, não conteve o comentário ácido:
— Não sabia que a Amanda já ia voltar com a gente hoje, João... — disse, com a voz melosa. — E ainda está no meu lugar. Agora eu vou ter que ir no banco de trás?
Antes que João pudesse responder, Amanda soltou o cinto num gesto rápido, abriu a porta e desceu com a mochila em mãos.
— Podem ir vocês. Eu não preciso ir com o casal — disparou, a voz afiada como uma lâmina.
Começou a caminhar em direção ao ponto de táxi, mas antes que desse mais alguns passos, ouviu João sair do carro, já com o tom alterado:
— Clara, você não consegue manter essa boca fechada por uma única vez?
Clara abriu os braços, indignada.
— O quê? Só falei a verdade!
Sem pensar, João correu até Amanda, a alcançou pela cintura e a ergueu do chão, carregando-a de volta para o carro como se fosse uma boneca rebelde.
— Me solta, João! Me solta agora! — Gritava Amanda, batendo nos ombros dele, furiosa.
Mas ele não disse uma palavra. Os olhos estavam cravados nela com uma mistura de raiva, frustração... e algo mais que nem ele sabia nomear.
Clara assistia à cena paralisada, engolindo em seco.
João colocou Amanda de volta no banco da frente e fechou a porta com força. Respirava com dificuldade, tentando controlar os próprios impulsos. Entrou do outro lado e ligou o carro em silêncio.
Amanda, com os olhos marejados e o rosto em brasa, olhava pela janela. Por dentro, algo nela tremia — de ódio, de vergonha, de cansaço. Mas também... de algo que nem ela conseguia explicar.
E, mais uma vez, o silêncio se impôs entre os três. Só que agora, era o tipo de silêncio que grita.
O Jaguar atravessou o portão principal da fazenda sob o silêncio mais pesado do dia. Nenhum dos três dizia palavra. Clara olhava pela janela, bufando de tempos em tempos. Amanda permanecia com os olhos fixos no campo aberto, tentando engolir o nó na garganta. João mantinha as mãos firmes no volante, o maxilar trincado, como se dirigir fosse a única forma de não explodir.
Ao estacionar diante da casa principal, Amanda foi a primeira a sair. Nem esperou que o motor fosse desligado. Bateu a porta com força e subiu as escadas de madeira como um raio. Clara desceu logo depois, ainda bufando e lançando olhares irritados para João.
— Eu não fiz nada. Só falei a verdade — disse, antes de seguir para o próprio quarto.
João ficou no carro por um momento, esfregando o rosto com as duas mãos. Quando finalmente entrou, deu de cara com Ana na varanda, com uma xícara de chá nas mãos e aquele olhar de quem já sabe exatamente o que está acontecendo, mas ainda quer ouvir da boca do outro.
— Boa noite, João — disse ela, sem tirar os olhos do filho.
— Noite... — ele respondeu, sem ânimo, tentando passar direto.
— O que houve? — Perguntou Ana, seca, direta.
João parou no último degrau da escada. Respirou fundo antes de se virar.
— Coisa de adolescente mimada. Clara provocou, Amanda respondeu, e eu... perdi a paciência.
— Ah — Ana sorriu de leve, como quem já esperava por isso. — E a Amanda perdeu mais do que a paciência, não foi?
- Sim – disse João
— O que você fez com a Amanda?
— Mãe... — ele começou, cansado.
— Ela saiu do carro, queria pegar um táxi. Eu não deixei. Fui atrás, trouxe de volta. Peguei no colo, e ela começou a gritar para fazenda inteira ouvir, se é isso que quer saber.
— Ela saiu do carro, João. E o que você fez? A trouxe de volta à força?
Ele ficou em silêncio.
— E você achou mesmo que essa era a melhor forma de resolver?
— Eu só queria garantir que ela chegasse bem! Ela é teimosa, mãe... não ouve ninguém.
— Ela é teimosa, como você. E sabe o que mais? Ela tem o direito de não ouvir. De escolher o próprio caminho. João desviou o olhar, engolindo seco.
Ana desceu um degrau da varanda. Ficaram frente a frente, olhos nos olhos.
— Eu te criei pra ser um homem forte. Mas força não é gritar. Não é pegar uma mulher à força só porque você não concorda com ela. Isso é fraqueza. E se eu ouvir que você fez algo assim de novo com a Amanda — ou com qualquer mulher — te coloco de volta na cocheira, do jeito que Augusto fazia quando você mentia.
João baixou a cabeça. Não era fácil ouvir bronca... ainda mais dela.
— Vai pedir desculpas.
No quarto de Amanda...
A respiração dela ainda estava descompassada. Tinha jogado a mochila no chão, arrancado os sapatos com raiva e agora encarava o próprio reflexo no espelho.
— Idiota... — sussurrou para si mesma, os olhos ainda úmidos.
Lembrou da sensação de ser erguida no meio da rua. Da raiva. Do constrangimento. Do olhar de Clara. Da força de João. E do que aquilo provocava em seu peito: não era só dor — era humilhação, e... desejo maldito.
O toque dele ainda queimava sua cintura.
Mas o orgulho... esse gritava mais alto.
Bateu a mão na penteadeira e se afastou do espelho como se fugisse de si mesma.
Na sala, Clara encontra Ana na cozinha. A tensão ferve.
— Vai dizer que a senhora também acha que tudo isso foi culpa minha? — disparou Clara, cruzando os braços, ainda fuzilando o corredor por onde João havia sumido.
Ana pousou a xícara na mesa com calma, mas o olhar era duro.
— Não sei, Clara. Mas você tem um talento natural pra colocar fogo onde já tem gasolina.
— Eu só disse a verdade! — rebateu, se exaltando. — A Amanda se acha. Se mete no meio das coisas. Chega como se fosse dona do mundo... e ninguém pode falar nada?
Ana se aproximou lentamente.
— E você se sente ameaçada por isso, não é?
Clara congelou.
— Ameaçada? Eu? — deu uma risada sem graça. — Por que eu me sentiria ameaçada por uma mulher desequilibrada?
Ana ergueu uma sobrancelha.
— Porque você sabe que João nunca olhou pra você da forma como olha pra ela.
Silêncio.
Clara abaixou os olhos. A mão tremeu sobre a bancada.
Ana suspirou e completou:
— A diferença entre você e Amanda, Clara... é que ela não precisa tentar ser o centro. Ela simplesmente é.
Clara engoliu em seco, mas não respondeu.