Saída do curso técnico — Moscou, noite friaAmanda desceu os degraus do prédio ao lado de Beatriz. O frio cortava o ar, e a cidade parecia mergulhada num silêncio denso. João já a esperava do outro lado da rua, encostado no carro com os braços cruzados. Ela acenou, se despediu de Beatriz com um beijo no rosto e atravessou.Assim que entrou no carro, percebeu no ar que algo estava errado.— Oi... — disse ela, fechando a porta.João não respondeu de imediato. Apenas ligou o motor e começou a dirigir, em silêncio, com o maxilar travado.— Vai me ignorar agora?— Não tô te ignorando. Só tô tentando entender algumas coisas.Amanda o encarou, sem entender de imediato.— Que coisas?— O professor. O jeito como ele te olha. E você rindo das piadinhas da Beatriz como se fosse tudo normal. Parece que sou o único que se incomoda.Ela cruzou os braços.— Você tá falando sério? Você tava me espiando?— Eu fui te levar e vi o suficiente. Ele vive te elogiando, te puxando pra perto... Eu não sou idi
Manhã na Fazenda – Confronto no corredorA luz do amanhecer mal começava a atravessar as janelas da Fazenda Volchya Dolina. O silêncio ainda dominava os corredores, interrompido apenas pelo som leve do ranger da madeira sob os pés de João.Ele abriu a porta do quarto de Amanda devagar, ainda com os cabelos molhados do banho da noite passada e a camisa semiaberta. Seus olhos estavam cansados, mas seu corpo parecia leve — como quem havia atravessado um furacão e saído inteiro, apesar dos estragos.Deu um passo no corredor.Foi quando ouviu o som firme de saltos ecoando no piso encerado.Virando-se, deparou-se com Ana Duarte.Ela vinha em sua direção, elegante como sempre, vestida já para o trabalho na fazenda, segurando uma pasta sob o braço. Seus olhos, afiados como navalhas, pousaram diretamente nos de João. Não disse nada de imediato.O ar entre eles pesou.João respirou fundo, parou no meio do corredor e manteve a postura ereta. Sabia que não havia como fingir, nem para ela, nem par
Fim de tarde – Estacionamento da faculdadeJoão esperava no carro, com o rádio ligado baixo, enquanto Clara saía do prédio da faculdade. O céu de Moscou estava começando a tingir-se com os tons alaranjados do pôr do sol, e uma brisa fria passava pelas ruas.Clara entrou no carro com sua bolsa atravessada e o jaleco dobrado no colo. Tirou o elástico do cabelo e comentou, quase distraída:— Você está esquisito desde o almoço, João. Aconteceu algo?João apenas deu partida no carro, seco:— Nada demais.Enquanto dirigia em direção ao colégio técnico para buscar Amanda e Emili, os olhos de João escaneavam cada esquina como se procurasse algo. Ou alguém.Ao se aproximarem do colégio...De repente, do outro lado da rua, João avistou Amanda. Ela estava em pé, encostada numa das mesas externas da sorveteria com Beatriz, Eduardo e Bruno. Ria de algo que Bruno dizia. O professor segurava dois sorvetes, um para ele e outro para Amanda.João pisou no freio de leve, o carro desacelerando quase que
Escritório da sede – Ainda a noite, instantes após o "chamado"João ajeitou a gola da camisa amassada, passou a mão pelos cabelos e abriu a porta com o máximo de naturalidade que conseguiu reunir. Amanda estava atrás dele, já sentada à mesa, fingindo rever um dos relatórios — impecável como se nada tivesse acontecido.Ana entrou com a postura ereta, olhos atentos, braços cruzados. Trazia consigo uma pasta preta fina, documentos administrativos. Mas o olhar... o olhar percorreu o ambiente como se farejasse a verdade.— Interrompi alguma coisa? — perguntou com um leve levantar de sobrancelha, o tom suave demais para ser despretensioso.João respondeu com um sorriso sem graça:— Só estávamos resolvendo uns detalhes da planilha de custo do novo lote de reprodutores.Ana não disse nada de imediato. Apenas se aproximou da mesa, depositou os documentos com calma e olhou direto para Amanda.— Amanhã cedo temos reunião com o contador russo e com o representante da Embaixada Suíça. Preciso que
A noite seguiu embalada por músicas suaves, vozes em conversas calorosas e o tilintar de taças brindando aos bons momentos. Os empregados da fazenda haviam preparado uma ceia impecável: pratos tradicionais russos misturados com receitas suíças e toques da culinária brasileira que Amanda fizera questão de incluir — um símbolo sutil de suas raízes múltiplas e do quanto ela pertencia, com orgulho silencioso, àquela casa, àquela história.Bruno, elegante, movia-se entre os convidados com naturalidade, mas seus olhos sempre voltavam para Amanda. Ele percebia algo ali — algo que os outros fingiam não ver, ou não sabiam nomear. José, atento, o chamou para junto da lareira.— Você ainda é o mesmo, Bruno? — perguntou, com um sorriso cordial, mas os olhos faiscavam com aquela sabedoria amarga que os velhos adquirem.Bruno soltou uma risada curta.— Talvez um pouco mais ambicioso. Um pouco mais experiente.— E um pouco mais interessado em... Amanda?Bruno não respondeu. Apenas ergueu a taça, bri
O jantar chegara ao fim entre louvores à família, pratos vazios e taças quase secas. As risadas ainda ecoavam pelos salões da sede principal, como ecos de um mundo que fingia ignorar o que se passava nas sombras. Mas os olhos de João não viam nada disso. Eles viam apenas Amanda.Ela conversava com Ana e Otávio, a postura impecável, os gestos calculadamente suaves, o sorriso que encantava — e ao mesmo tempo mantinha os outros a uma distância segura. Uma muralha feita de charme e precisão. Mas João a conhecia. Conhecia o tremor leve em seus dedos quando estava inquieta. Conhecia a pausa prolongada antes de um sorriso verdadeiro. E naquela noite... havia algo diferente. Uma tensão contida, como um fio prestes a romper.José se aproximou do irmão e murmurou com aquele tom de quem disfarça preocupação com ironia:— Vai com calma, maninho. Ela não vai fugir.João forçou um sorriso. Mas seus olhos, duros e escurecidos, diziam outra coisa.— Eu só preciso falar com ela.E então foi.Atravesso
O silêncio se tornou quase cruel.E então, como se tudo mais fosse apenas ruído distante, João a tomou nos braços. Amanda, atônita, não reagiu — ou reagiu rendendo-se. Deixou-se levar como quem cruza um rio sem saber se a margem oposta existe.Um murmúrio percorreu o salão como o vento que anuncia a tragédia.— Isso... não vai acabar bem — sussurrou Carla, as mãos trêmulas.— Já passou do ponto de retorno — respondeu o marido, os olhos fixos nas escadas por onde João subia.Ele caminhava como um usurpador que já não teme ser expulso do trono. Como um homem que carrega seu pecado nos braços como um troféu sagrado.Ao chegar no quarto, trancou a porta com a mão firme. O vento batia contra as janelas, e a neve escorria pelos vidros como lágrimas do céu.Colocou Amanda sobre a cama — não com delicadeza, mas com reverência bruta. Um ato de amor... e de ruína.Aproximou-se, os olhos ardiam como fogo sob a neve.— Hoje... quem te doma sou eu, Amanda. Meu amor proibido.Ela o olhou, os cabelo
Escritório da sede – minutos depois da reunião no café da manhã.A lareira estalava com o fogo baixo, como se até as chamas sussurrassem medo da decisão que pairava naquela sala. Do lado de fora, a neve se acumulava nas janelas, formando molduras geladas para um mundo prestes a ruir.Augusto estava de pé, as mãos às costas, o olhar fixo no nada branco da paisagem russa. Dentro de si, a guerra já estava vencida. Faltava apenas anunciar o veredito.Ana permanecia sentada na poltrona de couro escuro, impecável. O vapor da taça de café subia lento, mas os olhos dela — oh, os olhos — eram navalhas de gelo.— Isso não é só paixão, Ana. É rebeldia. É um desafio ao nome que construímos — disse Augusto, a voz rouca de décadas de comando.— Não, Augusto. — Ana respondeu sem hesitar, cruzando as pernas com elegância aristocrática. — Isso é inevitável.Ele virou-se, levemente, surpreso com a serenidade na voz da esposa.— Inevitável?— Amanda nunca foi qualquer uma — ela disse, lentamente, como q