Mundo de ficçãoIniciar sessãoANGELINE HARRINGTON
A consciência voltou como um afogamento. Um peso imenso sobre as pálpebras, uma língua grossa e seca, e uma dor de cabeça latejante que ameaçava rachar meu crânio. O mundo veio de volta em fragmentos: a textura áspera dos lençóis que não eram os meus, o cheiro amadeirado de um perfume masculino que me era estranho… e o calor de outro corpo na cama. Quando consegui forçar meus olhos a se abrirem, o ar parou em meus pulmões. Ele era enorme. Mesmo deitado, sua presença dominava o espaço. E seus olhos… olhos cinza e gélidos que já me fitavam, não com desejo, mas com um desprezo tão profundo que pareceu me esfaquear. Eu estava de costas para ele, mas me virei instintivamente, e seu rosto se tornou nítido. Duro. Esculpido em granito e ódio. O pânico, um animal vivo e selvagem, despertou dentro de mim. Um grito se formou na minha garganta, um som rouco e quebrado de terror. — Cale-se, maldita — ele rosnou, sua voz um trovão baixo e ameaçador que ecoou no quarto silencioso. Mas já era tarde. A porta do quarto se abriu com um estrondo, e a luz do corredor invadiu o espaço, iluminando o rosto da única pessoa que poderia tornar aquela situação ainda pior: Victoria. Ela estava lá, parada na moldura da porta. E sorria. Não um sorriso de preocupação, mas um sorriso largo, satisfeito, de triunfo absoluto. Seus olhos azuis brilhavam com uma luz que eu conhecia bem — a luz da crueldade atingindo seu objetivo. Atrás dela, meus pais. Richard e Elizabeth Harrington. Meu sangue. E eles não pareciam chocados. Pareciam… expectantes. Foi então, naquele exato instante, que o véu não só caiu dos meus olhos, mas foi arrancado com violência. Era uma peça. Eu era a peça no jogo sujo deles. Os eventos da noite anterior começaram a voltar, dolorosamente claros, como cenas de um filme de terror. —Sua irmã está dando uma festa, Angeline. Você entende que, com esse rosto, é melhor ficar em seus aposentos — A voz gelada da minha mãe, Elizabeth. Era a mesma de sempre. Desde os dez anos, desde o acidente de carro que levou meu irmão e me deixou com esta cicatriz serpenteando no rosto, eu era uma vergonha a ser escondida. Eles nunca me perdoaram por ter sobrevivido no lugar dele. Fazia sete meses que eu havia voltado do internato na Suíça, e desde então, Victoria fizera da minha vida um inferno particular. Apesar de termos o mesmo sangue, éramos day e night. Enquanto ela era o sol dourado dos Harrington, eu era a sombra, a mancha. E ela adorava me lembrar disso. —Angeline, venha aqui! Preciso que você arrume minha roupa para a festa e engraxe meus sapatos. Nada de deixar marcas, sua inútil. Eu fui. Como sempre. A governanta Serafina — a única alma neste lugar que sempre me tratou com uma centelha de bondade, desde pequena — assistia com olhos tristes, mas era impotente contra a vontade da "jovem senhora". Naquela noite, porém, Victoria estava estranhamente… animada. —Hoje é o grande dia, irmãzinha — ela disse, enquanto eu a ajudava a se vestir —O homem que eu amo vai me pedir em casamento nesta festa. Finalmente."Seus olhos brilhavam, mas havia algo de falso naquela alegria, uma centelha de cálculo que eu só percebo agora. Foi então que ela fez o pedido que mudou tudo. —Angeline, desça e pegue uma garrafa de champanhe para nós. Vamos celebrar. Hesitei. —Eu… não bebo, Victoria. "Não seja chata! É uma ordem. E depois, dê uma última olhada no meu closet, quero ter certeza de que meus outros sapatos estão perfeitos." Inocente. Tão estúpida e inocente. Desci, peguei a champanhe. Quando voltei, duas taças estavam na mesa. Ela serviu, insistiu. Para não causar mais conflito, eu peguei a minha. Mal molhei os lábios, mas foi o suficiente. Ela deve ter colocado algo na taça enquanto eu virava as costas para verificar o closet. O mundo começou a girar assim que saí do quarto dela. Minhas pernas amoleceram, a visão escureceu. A última coisa que lembro é do cheio do corredor escuro, e depois… nada. E eu, marcada pela cicatriz que tanto odiavam, tinha acabado de ser jogada na cova do lobo pela minha própria família. O desespero foi um grito mudo dentro de mim. Nos poucos minutos caóticos dentro daquele quarto entre sermos descobertos e sermos arrastados para a igreja, eu mal tive tempo de processar a própria tragédia, quanto mais de falar com ele. Mas num raro momento, enquanto meu pai falava que ele teria que assumir as consequência, consegui sussurrar para Nikolai, minha voz um fio de esperança desesperada: — Por favor… não aceite isso. Diga que não foi isso que aconteceu. Eles estão mentindo. Ele nem sequer olhou para mim. Seu perfil era uma escultura de granito, seus olhos fixos num ponto à frente, queimando com um ódio que eu não conseguia compreender. E então, na frente dos meus pais e minha irmã, ele aceitou. Ele concordou em se casar comigo. A perplexidade que tomou Victoria e meus pais foi um espelho da minha própria perpexidade. Por um instante, até a máscara de triunfo dela rachou, substituída por uma confusão furiosa. E eu… eu simplesmente desabei por dentro. Meu destino, a única vida que eu tinha, foi selado com um "sim" gelado daquele homem. Eu era dele agora. Uma propriedade. Uma consequência. O que ele não podia imaginar era que eu era a maior vítima de todas. Uma peça inconsciente no jogo da família que me odiava. Acordei assustada e violada não no corpo, mas em minha própria vontade, em meu próprio futuro, ao lado de um estranho que me olhava como se eu fosse a arquiteta de todo o seu ódio. Mas o que eu não esperava era que a violação iria além da minha mente e da minha vontade. A cerimônia foi um borrão de palavras vazias e olhares pesados. Na limusine, a caminho do que seria meu novo cárcere, o silêncio era mais alto que qualquer gritaria. Ele quebrou o gelo com uma faca de ironia. — Por que o medo, senhora Valkov? — sua voz cortou o ar, carregada de um desdém que me fez encolher ainda mais. — Não foi você mesma quem procurou entrar na caverna do lobo? A pergunta foi tão absurda, tão cruelmente distorcida, que me tirou o pouco ar que me restava nos pulmões. Ele realmente acreditava naquilo. Ele via minha presença naquela cama como uma escolha, uma manobra calculada junto dos meus pais. Ele não via uma vítima; via uma cúmplice. E se ele acreditava nisso, que chances eu teria? O lobo não apenas me devoraria; o faria convencido de que eu mesma tinha oferecido a minha própria carne. Quando o carro parou diante da imponente mansão dos meus pais, sua fachada agora me pareceu mais sombria e gélida do que nunca. Um calafrio mortal percorreu minha espinha. Aquele lugar nunca fora um lar, apenas a Mansão Harrington – um título vazio para mim, que fora trancafiada num internato distante dos dez aos dezenove anos. E agora, o pesadelo se repetia: eu seria aprisionada novamente, mas desta vez pelo homem que jurara ser meu marido. O homem que não me enxergava como esposa, nem mesmo como pessoa, mas como um inimigo a ser punido. A caverna do lobo não era mais uma metáfora. Estava ali, diante de mim. E a porta do meu destino já rangia, fechando-se para sempre atrás de mim.






