Capítulo 2

O dia amanheceu pálido, coberto por uma neblina que parecia ter se enroscado nas árvores e nas paredes do casebre.

Bianca acordou cedo, como sempre, não porque tivesse algo urgente a fazer, mas porque o silêncio da casa carregava uma solidão que não a deixava descansar.

Depois de um café ralo e um pedaço de pão amanhecido, saiu para o quintal.

O chão de terra batida estava úmido pela garoa da noite, e o cheiro de mato molhado misturava-se ao sal do mar. Ela gostava de sentir o vento no rosto pela manhã, mas naquele dia ele parecia mais frio do que de costume.

Do portão velho, via-se a estrada de terra que serpenteava até desaparecer no horizonte. As outras casas ficavam afastadas, e a mais próxima estava a cerca de vinte minutos de caminhada. Por isso, Bianca raramente via alguém por ali.

Foi por isso que estranhou quando avistou uma figura vindo pela estrada.

— Bia! — chamou uma voz alegre, ainda de longe.

Era Rafael, um menino de onze anos que morava com a avó. Ele carregava uma sacola de pano.

Minha vó mandou pra vocês — disse, entregando o pacote. — Não tá quente… já faz um tempinho que ela assou, mas ainda tá bom.

Bianca abriu um sorriso tímido.

— Obrigada… vai dizer pra ela que eu gostei muito.

Rafael não era de falar muito sobre si, mas sempre encontrava um jeito de passar por ali quando vinha ajudar o tio na pesca, aproveitando a rota para visitá-la.

Para Bianca, a presença dele era como um raio de sol num dia nublado.

Mas a luz não durou muito.

Enquanto conversavam, uma voz áspera cortou o ar.

— Olha só quem tá aí… a princesinha do casebre. — Gustavo, filho de um pescador que vivia brigando com todos, surgia chutando pedras pelo caminho.

— Aposto que tá esperando o papai rico vir te buscar de carruagem — zombou. — Deve estar ocupado demais com gente de verdade.

O rosto de Bianca se contraiu, mas ela não respondeu.

Gustavo se aproximou, dando voltas ao redor dela como um gato prestes a atacar.

— Deve ser triste… nem o seu pai te quer. — A frase veio como um golpe seco.

Chega, Gustavo — disse Rafael, com firmeza. — Vai embora.

O menino deu uma risada debochada e se afastou, chutando o galho no chão.

— Até mais, princesinha. Não esquece de esperar na muralha… quem sabe um dia ele aparece.

Bianca ficou olhando o chão, sentindo um nó apertar sua garganta.

Rafael colocou a mão no ombro dela.

— Não liga pra ele. Ele só sabe machucar porque é pequeno demais por dentro.

Mas as palavras de Gustavo já tinham se alojado como farpas. Bianca sabia que iria carregá-las o dia todo.

Quando Rafael se despediu, Bianca voltou lentamente para dentro de casa. As tábuas do assoalho rangiam sob seus passos, e o ar frio parecia ter entrado com ela pela porta. Esther estava na cozinha, cortando um pedaço de mandioca para o almoço, e Lúcia lavava roupas no tanque improvisado, do lado de fora.

Bianca subiu para o quarto e se sentou na beira da cama. Pegou o caderno que mantinha escondido sob o travesseiro e começou a desenhar. O lápis corria no papel, mas sua mente voltava às palavras de Gustavo.

"Nem o seu pai te quer."

A frase ecoava como se tivesse sido gravada na madeira do quarto. Ela tentava se convencer de que não importava, que Gustavo não sabia de nada, mas a voz dele se sobrepunha até mesmo às lembranças boas.

Depois de alguns minutos, fechou o caderno e se levantou.

Caminhou até a janela, que dava para o mar, e se apoiou no peitoril. O vento trazia cheiro de sal e algas, e ao longe, as ondas quebravam contra as pedras.

A muralha, onde passava tantas horas esperando, estava parcialmente molhada pela maré alta.

Lá fora, não havia sinal de ninguém. Só o mar, imenso e indiferente, seguindo seu movimento constante.

Mais tarde, depois do almoço simples, Bianca decidiu sair para caminhar um pouco. Seguiu pela trilha estreita que descia até a praia, desviando das poças de água e das raízes expostas.

A areia estava fria sob as solas gastas das botas, e conchas quebradas se espalhavam pela beira da água.

Sentou-se perto de uma rocha grande, onde costumava recolher pedrinhas e pedaços de vidro polido pelo mar. Passou um bom tempo observando o reflexo do sol nos cacos coloridos, imaginando como seria ter um colar feito deles — algo bonito o suficiente para que o pai olhasse para ela com orgulho.

O céu começou a mudar, ficando mais cinzento. O vento aumentou, e ela soube que a tarde chuvosa estava a caminho.

Levantou-se devagar e começou a voltar para casa, abraçando os braços para se proteger do frio.

Quando entrou, encontrou Lúcia dobrando roupas no sofá e Esther costurando um remendo na barra de um vestido. Nenhuma delas perguntou onde ela tinha estado; sabiam que Bianca precisava desses momentos sozinha, como se tentasse, de alguma forma, encontrar respostas no som das ondas.

O resto da tarde passou devagar, com o barulho intermitente da chuva batendo no telhado e o cheiro de lenha queimando no fogão. Bianca se manteve no quarto, observando as gotas escorrerem pelo vidro da janela e desenhando formas imaginárias.

No fundo, mesmo ocupando o tempo, ela sabia que estava apenas esperando a noite chegar — e, com ela, mais um dia terminado sem que nada mudasse.

O som de passos na varanda quebrou o ritmo lento da tarde. Esther se levantou com dificuldade e foi até a porta.

Um homem de chapéu, molhado da chuva fina, entregou-lhe um envelope amassado. Não disse nada, apenas fez um aceno rápido e voltou pela estrada de terra.

É dele… — murmurou Esther, olhando o nome no remetente.

Bianca, que estava no quarto, ouviu e desceu correndo as escadas.

Esther abriu a carta com cuidado, tirando de dentro algumas cédulas dobradas e um papel escrito à mão. A caligrafia era firme, mas apressada.

Ela começou a ler em voz alta, sem olhar para a menina:

Não poderei ir no próximo mês. Tenho compromissos importantes e não posso me ausentar. O dinheiro enviado deverá ser dividido para os próximos três meses. Façam bom uso e não gastem com coisas desnecessárias.”

Esther suspirou e colocou as notas sobre a mesa. Não eram muitas — mesmo sem contar, já dava para saber que não seria suficiente.

Ele… não vem nem no seu aniversário? — perguntou Bianca, a voz embargada.

Esther desviou o olhar, tentando evitar a verdade crua.

— Ele está ocupado, Bia… — disse, num tom que não convencia nem a si mesma.

A menina ficou parada por alguns segundos, como se tentasse processar a informação. Então, sem dizer nada, virou-se e saiu pela porta, sob o chuvisco.

Dentro da casa, Lúcia se aproximou da mesa, pegando as cédulas.

— Esther…tirando o nosso salário isso aqui mal dá para um mês, mesmo se a gente economizar em tudo.

Eu sei — respondeu a mais velha, apertando o xale contra o peito. — Mas vamos ter que dar um jeito. Não é a primeira vez que ele faz isso… e provavelmente não será a última.

Lúcia olhou para a porta entreaberta, de onde Bianca havia saído.

— Ela ouviu?

Só a parte sobre o aniversário… e já foi o bastante.

Bianca caminhou pela trilha até a muralha. A chuva molhava seus cabelos e escorria pelo rosto, misturando-se com as lágrimas. Subiu nas pedras com a facilidade de quem conhecia cada fenda e se sentou no mesmo ponto de sempre, encarando o mar revolto.

Ali, podia chorar sem que ninguém visse. O barulho das ondas fortes engolia qualquer som que fizesse.

Ela abraçou as pernas e escondeu o rosto, sentindo o peso da ausência do pai mais uma vez. Não era apenas o aniversário que ele deixaria passar — era mais um mês de espera transformado em vazio.

Enquanto o vento frio soprava, Bianca pensou no pouco dinheiro que tinha visto sobre a mesa e se perguntou se, para o pai, ela valia só aquilo.

A chuva engrossou, mas Bianca continuou sentada na muralha, deixando que a água fria lavasse o rosto e as roupas. Não sabia quanto tempo havia passado — talvez minutos, talvez mais de uma hora. O céu estava completamente cinza quando finalmente se levantou.

O caminho de volta estava escorregadio, e as botas ensopadas afundavam na lama. Ao chegar em casa, empurrou a porta devagar. Esther e Lúcia estavam na cozinha, e pararam o que faziam ao vê-la entrar, pingando água pelo chão.

Bia… você ficará doente — disse Lúcia, indo até ela secando as mãos.

Bianca não respondeu. Subiu as escadas lentamente, cada passo mais pesado que o anterior, e entrou no quarto.

Deitou-se ainda vestida, encolhida, ouvindo ao longe as vozes abafadas das babás conversando, mas sem conseguir entender as palavras.

Naquele dia, não havia mais nada a dizer.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP