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Capítulo 2 — O Lobo Entre as Sombras

(POV Selene)

O beco sumia atrás de nós, engolido pelas sirenes. A mão dele prendia meu braço como uma algema viva, e cada passo era uma ordem. Eu tentava resistir, mas meus pés obedeciam mais a ele do que a mim mesma.

As ruas desertas da cidade passavam rápido demais. Lojas fechadas, letreiros piscando com falha, sombras esticadas pelas luzes dos postes. Eu conhecia cada esquina, mas, pela primeira vez, parecia que estava atravessando um lugar que nunca tinha visto. O cheiro de ferrugem e gasolina velha grudava no ar, misturado ao odor de chuva parada. Um gato derrubou uma lata de lixo mais à frente, e o barulho me fez saltar como se fosse tiro. A respiração estava curta, parecia que tinha corrido uma maratona sem treinar.

“Se eu tivesse ouvido a tia Ivy e ficado em casa, agora estaria debaixo do cobertor com uma caneca de chá barato. Não aqui, sendo arrastada por um desconhecido que parece feito de pedra.”

— Me solta! — tentei de novo, puxando o braço. — Eu consigo andar sozinha.

— Não é uma questão de andar. — ele respondeu, sem sequer olhar.

— Ah, claro. Você me sequestra e eu que tenho que colaborar. Brilhante.

Ele não reagiu. Nem raiva, nem impaciência. Só aquele silêncio que me irritava mais do que qualquer ameaça.

Dobrou por uma viela estreita, onde o cheiro de lixo competia com o da chuva velha. Eu tropecei numa pedra solta e bati no ombro dele, que nem se moveu com o impacto. Como se fosse feito de pedra.

As sirenes ficaram para trás. Mas o coração continuava batendo como se tivesse viatura dentro do meu peito.

— Onde você tá me levando? — perguntei, tentando soar firme. — E não vem com “um lugar seguro”, porque já ouvi esse clichê em filmes demais.

Dessa vez, ele olhou. Rápido. Os olhos mudaram de cor de novo, ou talvez fosse a luz. Cinza. Verde. E algo além.

— Um lugar onde eles não vão te achar. — disse.

— Eles quem, exatamente? — provoquei. — A polícia? Os assassinos de rua? Ou sei lá, o clube secreto de malucos que desenham luas em corpos?

A sombra de um sorriso cruzou o rosto dele, mas não chegou a durar.

— Você vai descobrir logo.

Ótimo. Misterioso e enigmático. Como se minha vida fosse um episódio ruim de série.

Se isso fosse uma série de TV, eu já teria desligado. Mas a diferença é que não dá pra mudar de canal quando é a própria vida em jogo. Eu até pensei em gritar — mas a lembrança da marca brilhando no meu pulso me cortou o ar. A polícia ia me prender antes de me ouvir.

Não sei quanto tempo andamos, mas o concreto da cidade começou a dar lugar ao asfalto rachado da estrada. As luzes diminuíram, as casas ficaram para trás. O silêncio aqui era mais profundo, cheio de espaços vazios. As casas foram ficando para trás, uma a uma, até sobrarem só paredes descascadas e janelas cegas. Um ponto de luz piscava ao longe — talvez a última lâmpada da cidade — antes de desaparecer. Olhei para trás e senti que estava deixando o mundo conhecido pra trás. O resto era só sombra.

Foi então que ouvi.

Um som longo, grave, que fez meu estômago virar. Um uivo.

Travei no meio da estrada.

— Meu Deus… — o grito saiu antes que eu pudesse segurar. — Tem feras selvagens aqui! Eu vou ser rasgada viva!

O frio desceu pela minha espinha como água gelada. Os pelos do braço se arrepiaram sem pedir permissão.

“Excelente, Selene. Sequestrada e prestes a virar ração canina. Você realmente sabe tomar decisões brilhantes.”

Pensei em correr. Mas bastou olhar para os lados e ver a estrada vazia, a mata escura, para entender que sozinha eu só duraria cinco minutos. Meu coração batia contra as costelas como se quisesse escapar antes de mim. A garganta secou, e a única coisa que consegui pensar foi que, se abrisse a boca, sairia um grito — não palavras.

Ele não parou de andar. Só respondeu, seco:

— Lobos.

Meu riso nervoso escapou sem controle.

— Ótimo. Bom saber que, além de sequestrador, você também me arrastou pra um lugar cheio de lobos famintos.

— Eles não estão famintos. — ele disse, enfim virando o rosto na minha direção. — Estão caçando.

Meu corpo inteiro gelou.

— Caçando… o quê?

Os olhos dele se fixaram nos meus. Não precisei da resposta. Entendi.

— Ah, que maravilha. Então é oficial: eu sou o prato principal do jantar.

Ele se aproximou um passo. A tensão no ar mudou, como se a noite tivesse prendido a respiração junto comigo.

— Eles vão tentar te matar, Selene. — disse, sem rodeios. — Mas não vou deixar.

Eu ri de novo, só que o som saiu quebrado.

— Confortante. Super reconfortante ouvir isso de um estranho que sabe meu nome e me arrasta pra dentro do mato.

Ele não rebateu. Só virou e continuou andando, encerrando a conversa sem precisar de palavras.

Eu respirei fundo, prendi a chave do apartamento na mão de novo e corri para alcançá-lo. Porque, no fim das contas, ficar parada sozinha naquela estrada parecia uma escolha ainda pior.

A cidade ficou para trás. A estrada também. Agora era a floresta.

As árvores fechavam o caminho como muralhas escuras. As raízes quase me derrubavam a cada passo, e os galhos batiam na minha pele como chicotes. O ar era mais úmido, mais pesado, e cada sombra parecia ter olhos. O cheiro de terra molhada invadia minhas narinas, os galhos estalavam como ossos velhos, e insetos zuniam no meu ouvido como se zombassem de mim.

Lembrei da tia Ivy me dizendo, quando criança: “a floresta engole quem não pertence a ela.” Nunca tinha dado importância até agora.

— Sério — resmunguei entre dentes. — Isso aqui parece mais sequestro do que resgate.

Ele não olhou pra trás.

— Se fosse um sequestro, você já estaria morta. A voz saiu fria, mas os olhos não.

— A gente vai andar até quando? — perguntei, tentando disfarçar o pânico. — Até eu desmaiar? Porque tá quase acontecendo.

— Quase lá. — foi a única resposta.

Eu rolei os olhos, mas não falei nada. O coração ainda ecoava o uivo.

Depois de mais alguns minutos, ele parou diante de uma construção escondida pela vegetação. Uma porta de madeira escura, reforçada com ferro, camuflada entre troncos grossos. Se eu não estivesse olhando direto, juraria que era só mais uma parte da floresta.

Ele girou dois pinos escondidos sob a madeira — um clique, depois outro — como quem conhecia o lugar melhor do que conhecia a própria casa. O cheiro que veio de dentro era forte: madeira, terra molhada, fumaça antiga. A visão me deu mais medo do que alívio. As paredes de madeira úmida e ferro velho gritavam esconderijo de criminosos, não abrigo. Sobre uma das caixas havia uma faca de lâmina larga, ainda manchada de ferrugem, e um mapa rabiscado com linhas vermelhas atravessando ruas que eu conhecia — parecia planejado, como se alguém já esperasse por mim. O coração batia mais forte do que lá no cais, porque aqui não havia testemunhas, não havia luz — só ele e eu.

“Eu devia ter escolhido morrer no beco”, pensei, amarga. “Pelo menos teria sido rápido.”

— Entra. — ordenou.

Eu hesitei na soleira, olhando para a escuridão do lugar. Tudo em mim gritava para correr. Mas correr para onde? Para os lobos? Para as sirenes que já tinham me visto sumir?

Engoli em seco.

— Se isso for uma armadilha, espero que você esteja pronto pra perder um olho.

Ele quase sorriu de novo, mas não confirmou nem negou.

E eu entrei.

A porta se fechou atrás de nós com um estalo que soou mais definitivo do que deveria. O som reverberou nos meus ossos como se tivesse me lacrado ali dentro. O peito pesou, e tive a sensação de que o ar ficou mais curto, como se o abrigo tivesse sugado o pouco de liberdade que me restava.

E, pela primeira vez, percebi que minha vida tinha acabado de mudar — e que não havia volta.

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