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(POV Selene)
Meu nome é Selene Marlowe. Tenho vinte e dois anos e uma vida feita de retalhos que nunca se costuraram direito. Em algumas noites o mundo parece normal. Em outras, ele sussurra coisas que ninguém mais ouve. Hoje era dessas. Meus pais morreram quando eu era criança. É tudo o que sei. Nunca houve fotos, histórias, nada que preenchesse o vazio. Minha tia Ivy me criou sozinha e, sempre que eu tentava perguntar, ela desviava: “não é assunto pra você”. Cresci com um buraco que fala mais alto que qualquer resposta. Talvez por isso eu tenha aprendido a andar na sombra. A não chamar atenção. A existir em silêncio. Quem me vê enxerga só uma garota comum: um metro e sessenta e sete, cabelo castanho indeciso, olhos que minha tia insiste serem cor de mel. Eu nunca vi nada de especial neles. Nunca vi nada de especial em mim. A vida com Ivy é simples. Pequena demais. Trabalho que mal paga as contas, refeições rápidas, noites em claro. E é nessas noites que eu saio. Ando até cansar, como se pudesse despejar os pensamentos no asfalto. Foi assim que cheguei ao cais naquela noite. O vento cortava como lâmina molhada. Trazia gosto de ferrugem. As tábuas da madeira rangiam sob meus pés. A cidade parecia morta. Mas não era paz — era um silêncio denso, opressivo, como se o ar segurasse a respiração esperando alguma coisa acontecer. E aconteceu. O cheiro me atingiu primeiro. Ferro. Quente. Denso demais pra ser engano. Meu estômago virou, o coração disparou sem aviso. Apertei a chave do apartamento na mão até sentir o metal cortar a pele. Ridículo — como se um pedaço de metal pudesse me salvar. Avancei um passo. Depois outro. O cheiro só aumentava. E então eu vi. Um corpo. Encostado no muro grafitado, caído sobre uma poça que refletia a lua quebrada. Uma mulher. Jovem. Cabelos grudados no rosto. Pele branca demais, como se o sangue tivesse sido arrancado até a última gota. Mas não tinha desaparecido. Estava no chão. Um filete grosso descia até o ralo entupido, desenhando uma linha vermelha torta no concreto. A bile subiu, queimando a garganta. Eu devia correr. Gritar. Chamar a polícia. Mas não consegui. Fiquei ali. Imóvel. Como se o chão tivesse pregado meus pés. E então vi o símbolo. No meio do peito dela, talhado a faca, uma lua crescente mordendo o próprio rabo. O ar sumiu. Eu conhecia aquilo. Não da vida real — mas dos meus sonhos. Sempre os mesmos: a lua rabiscada na água, vozes sussurrando em volta. Quando criança, eu desenhava sem parar. Em cadernos, guardanapos, até na parede do quarto. Ivy arrancava da minha mão e mandava eu parar. Mas nunca explicava por quê. Agora estava ali. Gravado na carne de alguém morto. Um frio deslizou pela espinha. — Não encosta. A voz veio atrás de mim. Grave. Firme. Autoritária. Paralisou cada músculo. Virei devagar. Ele estava lá. Parado na sombra do poste. Alto, ombros largos, casaco escuro. O rosto quase todo escondido, mas a mandíbula marcada aparecia. E os olhos… mudavam com a luz falha: cinza, depois verde, depois algo sem nome. Mesmo sem se mover, ele exalava perigo. Minha boca secou. — Eu… eu não toquei em nada — gaguejei. — Acabei de achar assim. Ele avançou um passo. Lento. Controlado. Como um predador que não precisa correr. — Eu sei. Você sempre chega antes… dos outros. A frase cortou o ar. Sempre? Recuei até a parede fria nas minhas costas. O coração martelava nos ouvidos. Eu nunca tinha visto aquele homem em toda a minha vida. Como ele podia saber meu nome? E disse com tanta convicção… como se me conhecesse desde que eu nasci. — Quem é você? — soltei, mais nervosa do que corajosa. — Tá me confundindo com outra pessoa. Ele não respondeu. Só ficou me olhando. E o jeito que olhava era pior do que qualquer resposta: frio, calculado, como se fosse dono de um segredo que eu nunca deveria ter tocado. — Se afasta — tentei manter firmeza na voz. — Eu vou ligar pra polícia. Deslizei a mão para o bolso. Ele avançou mais, e a sombra dele engoliu a luz do poste. — Não faz isso. — a voz veio cortante. — Vão te pôr no lugar dela. — O quê? Tá me ameaçando? Ele inclinou a cabeça, como quem mede distância. Então disse, simples: — Selene. Meu nome. Do jeito certo. Como se tivesse dito mil vezes antes. O estômago gelou. As tábuas rangeram sob meus pés. — Como você sabe meu nome? — a garganta arranhou. — Me diz agora ou eu grito. — Não grita. — não foi pedido; foi ordem. — Sai daqui comigo. Agora. — Eu não vou a lugar nenhum com você. As sirenes começaram a crescer ao longe, um som que invadia como maré. E foi nesse instante que ardeu. Primeiro, um calor fino no pulso. Depois, fogo aberto. Olhei. A cicatriz que eu carregava desde criança — aquele meio-círculo apagado — acendeu. Luz prateada, viva, pulsando como se tivesse coração próprio. O peito travou. — Não… não, não. — esfreguei com a outra mão, frenética. — Isso não tá acontecendo. É estresse, é coisa da minha cabeça. A luz só aumentava, refletindo no muro molhado e voltando nos meus olhos. — O que você fez comigo?! — a voz saiu rasgada. Ele não desviou. Olhou de relance para o corpo no chão, com frieza que me arrepiou. Depois voltou pra mim. — Eu não fiz nada. — a voz sem vacilo. — Isso é seu. — Meu uma ova! — a raiva veio como defesa. — Isso não existe! Mas dentro de mim, a lembrança insistia: eu desenhando aquela lua. Ivy arrancando os papéis. O silêncio pesado na casa. As sirenes dobraram a esquina. Ele lançou um olhar rápido para a rua e voltou pra mim. — Vão ver você, o corpo e essa marca acesa. — apontou com o queixo. — E vão decidir em segundos que é culpada. A bile queimou minha garganta. — Você fala como se me conhecesse. Os olhos dele se estreitaram. — Conheço o suficiente pra saber que, se ficar, morre. — Por que eu acreditaria em você?! Ele se aproximou mais. Não tocou. Só encostou a presença. O cheiro de couro molhado e pedra fria me cercou. — Porque não tenho tempo pra te convencer. — seco. — E prefiro te levar andando do que desmaiada. — Você tá me sequestrando? — Estou tirando você de uma cena de morte com uma marca brilhando no braço. Chame como quiser. Meu corpo gritava pra correr, mas as pernas não obedeciam. O suor escorria frio pela nuca. Eu odiava isso. Odiava ter que pesar risco com um estranho. E odiava que, no fundo, parte de mim soubesse que ele estava certo. — Minha tia… — a frase escapou. — Ela vai enlouquecer se eu sumir. — Melhor viva e enlouquecida do que morta em jornal. As luzes já começavam a lamber as paredes do fim da rua. Ele estendeu a mão — não como oferta, mas sentença. — Vem. — Eu não— A mão dele fechou no meu antebraço. O toque queimou. Não como dor: como choque. A marca vibrou junto, pulsando na mesma frequência. O mundo girou um passo à frente. — Solta! — bati no ombro dele. Ele não recuou. — Dois minutos. — a voz perto, cortante. — Decide: confiar em mim agora ou explicar essa luz pra um policial com câmera. Engoli seco. O corpo da mulher ainda brilhava no canto da visão. O símbolo talhado. A minha marca respondendo. E os olhos dele — predadores, frios, sem mentira. — Se você me machucar… — sussurrei, a voz falhando — …eu te arranco os olhos. Um traço de quase sorriso curvou a boca dele e sumiu. — Então anda. Um passo. Outro. As sombras nos engoliram antes que a primeira luz azul riscasse a boca do beco. A marca queimava. E eu fui — não por confiar. Mas porque, naquela noite, o medo tinha corpo, voz… e sabia o meu nome.






