A neve caía grossa, branca demais para um campo coberto de sangue.
Cada floco pousava sem som, mas o ar tinha cheiro de ferro e medo.
O vento gemia como fera ferida, arrastando rugidos, lamúrias e orações que já não subiam aos deuses.
Kael Dravik lutava.
Não pelo território — pela alma.
A guerra entre os clãs desabara no vale como avalanche; não havia honra, só lâminas, gritos, lobos e morte.
Os guerreiros do Norte tombavam, e o rugido do Alfa era a única coisa que ainda fazia os inimigos hesitarem.
O aço batia no aço.
A cada impacto, o gelo abaixo dos pés estalava em veias, como se a terra também sangrasse.
Kael avançava, os braços cobertos de cortes, o peito aberto em respiração ardente.
No olhar, não havia dúvida: ele não temia morrer — temia perder.
Do outro lado, Lyra, sua Luna, corria entre as árvores, protegendo os mais jovens.
O vestido prateado — símbolo do Norte — rasgara na altura das coxas; a neve mordia a pele, mas ela seguia, guiando crianças pelos troncos, empurrando feridos para longe da linha de combate.
Virou-se um instante.
Viu Kael.
Foi o suficiente para o tempo partir.
Um rugido profundo rasgou a névoa.
Do meio da fumaça surgiu
Dravon, Alfa do Sul, montado em cavalo negro, espada erguida, ódio nos olhos.
O homem que sempre invejara Kael.
O homem que sempre desejara Lyra.
Kael o reconheceu e tudo o mais desapareceu.
Não havia aliados nem inimigos, nem montanha, nem céu.
Só o tambor cego do próprio coração.
Dravon sorriu, lâmina à altura do rosto.
— Ainda acredita que o amor vence a guerra?
Kael não respondeu.
O silêncio era a língua dele.
O rugido, a promessa.
— Kael! — Lyra gritou, e o som cortou o vento.
A lâmina de Dravon desceu.
Houve um clarão, o estalo do gelo, a música metálica de algo que encontra carne.
O mundo parou.
Lyra cambaleou.
O sangue irrompeu quente no branco, e a neve pareceu recuar, chocada.
Kael correu. Cada passo, um lamento. Cada respiração, uma prece.
— Lyra… — tentou dizer, mas a voz não veio.
Ela sorriu, olhos brilhando com dor e ternura.
— Kael… não… grite. — As sílabas eram sopro. — Se gritar… o lobo morre com você.
Mas ele gritou.
O rugido subiu das entranhas como avalanche e explodiu no céu.
Árvores se curvaram.
Os lobos choraram.
Homens do Sul recuaram, pálidos, como se a própria noite tivesse dentes.
Junto do rugido, veio o castigo.
A garganta de Kael incendiou-se; a cicatriz antiga abriu em luz.
A voz que sustentava o Norte despedaçou-se no ar.
O último som que ele deu ao mundo foi o nome dela.
Depois — silêncio.
Kael a segurou contra o peito.
O corpo de Lyra parecia leve demais, como se a alma já tivesse virado neve.
Ela tentou falar outra vez, mas o sangue foi mais rápido que as palavras.
Quando os olhos dela se apagaram, o vale desabou com eles.
Kael moveu os lábios. Nada.
Nem rugido, nem gemido.
Dentro dele, o lobo uivava preso, sufocado.
Dravon observava à distância, satisfeito.
Para ele, aquilo era vitória — e castigo.
Ergueu a espada ensanguentada, girou o cavalo, deixou o campo coberto de mortos e partiu levando consigo o eco daquele grito que continuava vibrando nas montanhas.
Kael permaneceu ajoelhado, curvado sobre Lyra.
A neve, obediente, começou a cobrir os dois: o sangue, o corpo, o amor.
Ele não reagiu.
Deixou o gelo fechar-se.
A dor virou pedra.
O rugido, lembrança.
Quando o sol nasceu, o Alfa do Norte havia morrido — e no lugar ficou um homem sem voz.
Os sobreviventes o chamaram de
“aquele que calou o mundo.” Desde então, o Norte aprendeu a temer o próprio silêncio.
Diziam que, em noites de lua cheia, o vento ainda trazia o eco do grito.
Outros juravam que era o silêncio de Kael que mantinha a neve viva.
Mas ninguém ousou falar com ele de novo.
Nem mesmo os lobos.
Ele voltou ao castelo e nunca mais abriu a boca.
Governava com o olhar, o gesto, a lâmina pousada de leve sobre o mapa do vale.
À noite, ficava diante do fogo, como quem espera que alguma chama aprenda a falar por ele.
E às vezes, jurava ouvir.
Um sussurro de memória:
Se gritar… o lobo morre com você.
Kael fechava os olhos e deixava que o vento arrastasse a lembrança.
Mas naquela noite, havia outra coisa no ar: um frio que não vinha da neve, um pressentimento que não vinha do corpo.
Muito longe dali, em outra fronteira, uma mulher corria pela mata vestida de branco — o mesmo branco de Lyra.
Não corria por escolha; fugia de um destino alheio, com uma
marca antiga ardendo no ombro como brasa.
Os ramos batiam na pele, o hálito saia em nuvens, o coração buscava uma batida que não era só sua.
Quando parou para respirar, o vento soprou por entre as árvores e fez o céu estremecer.
Era o mesmo vento que, um dia, guardara o grito do Alfa.
Agora, trazia outra coisa — um nome novo, nítido, impossível de ignorar.
— Helena.
A mulher ergueu o rosto.
Os lobos, escondidos na orla do bosque, ergueram as orelhas.
A neve, por um instante, pareceu ouvir.
No alto, a lua inteira se virou devagar, como quem reconhece um sangue.
E, no castelo de pedra, a cicatriz de Kael reacendeu sob a pele como um fio de prata.
Ele abriu os olhos.
Nenhum som saiu.
Mas o coração — esse, sim — rugiu.
E o Norte, inteiro, conteve a respiração.