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A LUNA DO ALFA SEM VOZ
A LUNA DO ALFA SEM VOZ
Por: Anne Vellencourt
✦ CAPÍTULO 1 — O GRITO E A NEVE

A neve caía grossa, branca demais para um campo coberto de sangue.

Cada floco pousava sem som, mas o ar tinha cheiro de ferro e medo.

O vento gemia como fera ferida, arrastando rugidos, lamúrias e orações que já não subiam aos deuses.

Kael Dravik lutava.

Não pelo território — pela alma.

A guerra entre os clãs desabara no vale como avalanche; não havia honra, só lâminas, gritos, lobos e morte.

Os guerreiros do Norte tombavam, e o rugido do Alfa era a única coisa que ainda fazia os inimigos hesitarem.

O aço batia no aço.

A cada impacto, o gelo abaixo dos pés estalava em veias, como se a terra também sangrasse.

Kael avançava, os braços cobertos de cortes, o peito aberto em respiração ardente.

No olhar, não havia dúvida: ele não temia morrer — temia perder.

Do outro lado, Lyra, sua Luna, corria entre as árvores, protegendo os mais jovens.

O vestido prateado — símbolo do Norte — rasgara na altura das coxas; a neve mordia a pele, mas ela seguia, guiando crianças pelos troncos, empurrando feridos para longe da linha de combate.

Virou-se um instante.

Viu Kael.

Foi o suficiente para o tempo partir.

Um rugido profundo rasgou a névoa.

Do meio da fumaça surgiu Dravon, Alfa do Sul, montado em cavalo negro, espada erguida, ódio nos olhos.

O homem que sempre invejara Kael.

O homem que sempre desejara Lyra.

Kael o reconheceu e tudo o mais desapareceu.

Não havia aliados nem inimigos, nem montanha, nem céu.

Só o tambor cego do próprio coração.

Dravon sorriu, lâmina à altura do rosto.

— Ainda acredita que o amor vence a guerra?

Kael não respondeu.

O silêncio era a língua dele.

O rugido, a promessa.

Kael! — Lyra gritou, e o som cortou o vento.

A lâmina de Dravon desceu.

Houve um clarão, o estalo do gelo, a música metálica de algo que encontra carne.

O mundo parou.

Lyra cambaleou.

O sangue irrompeu quente no branco, e a neve pareceu recuar, chocada.

Kael correu. Cada passo, um lamento. Cada respiração, uma prece.

— Lyra… — tentou dizer, mas a voz não veio.

Ela sorriu, olhos brilhando com dor e ternura.

— Kael… não… grite. — As sílabas eram sopro. — Se gritar… o lobo morre com você.

Mas ele gritou.

O rugido subiu das entranhas como avalanche e explodiu no céu.

Árvores se curvaram.

Os lobos choraram.

Homens do Sul recuaram, pálidos, como se a própria noite tivesse dentes.

Junto do rugido, veio o castigo.

A garganta de Kael incendiou-se; a cicatriz antiga abriu em luz.

A voz que sustentava o Norte despedaçou-se no ar.

O último som que ele deu ao mundo foi o nome dela.

Depois — silêncio.

Kael a segurou contra o peito.

O corpo de Lyra parecia leve demais, como se a alma já tivesse virado neve.

Ela tentou falar outra vez, mas o sangue foi mais rápido que as palavras.

Quando os olhos dela se apagaram, o vale desabou com eles.

Kael moveu os lábios. Nada.

Nem rugido, nem gemido.

Dentro dele, o lobo uivava preso, sufocado.

Dravon observava à distância, satisfeito.

Para ele, aquilo era vitória — e castigo.

Ergueu a espada ensanguentada, girou o cavalo, deixou o campo coberto de mortos e partiu levando consigo o eco daquele grito que continuava vibrando nas montanhas.

Kael permaneceu ajoelhado, curvado sobre Lyra.

A neve, obediente, começou a cobrir os dois: o sangue, o corpo, o amor.

Ele não reagiu.

Deixou o gelo fechar-se.

A dor virou pedra.

O rugido, lembrança.

Quando o sol nasceu, o Alfa do Norte havia morrido — e no lugar ficou um homem sem voz.

Os sobreviventes o chamaram de “aquele que calou o mundo.”

Desde então, o Norte aprendeu a temer o próprio silêncio.

Diziam que, em noites de lua cheia, o vento ainda trazia o eco do grito.

Outros juravam que era o silêncio de Kael que mantinha a neve viva.

Mas ninguém ousou falar com ele de novo.

Nem mesmo os lobos.

Ele voltou ao castelo e nunca mais abriu a boca.

Governava com o olhar, o gesto, a lâmina pousada de leve sobre o mapa do vale.

À noite, ficava diante do fogo, como quem espera que alguma chama aprenda a falar por ele.

E às vezes, jurava ouvir.

Um sussurro de memória:

Se gritar… o lobo morre com você.

Kael fechava os olhos e deixava que o vento arrastasse a lembrança.

Mas naquela noite, havia outra coisa no ar: um frio que não vinha da neve, um pressentimento que não vinha do corpo.

Muito longe dali, em outra fronteira, uma mulher corria pela mata vestida de branco — o mesmo branco de Lyra.

Não corria por escolha; fugia de um destino alheio, com uma marca antiga ardendo no ombro como brasa.

Os ramos batiam na pele, o hálito saia em nuvens, o coração buscava uma batida que não era só sua.

Quando parou para respirar, o vento soprou por entre as árvores e fez o céu estremecer.

Era o mesmo vento que, um dia, guardara o grito do Alfa.

Agora, trazia outra coisa — um nome novo, nítido, impossível de ignorar.

— Helena.

A mulher ergueu o rosto.

Os lobos, escondidos na orla do bosque, ergueram as orelhas.

A neve, por um instante, pareceu ouvir.

No alto, a lua inteira se virou devagar, como quem reconhece um sangue.

E, no castelo de pedra, a cicatriz de Kael reacendeu sob a pele como um fio de prata.

Ele abriu os olhos.

Nenhum som saiu.

Mas o coração — esse, sim — rugiu.

E o Norte, inteiro, conteve a respiração.

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