Mundo de ficçãoIniciar sessãoEu mal tinha conseguido dormir.
Cada vez que fechava os olhos, era o toque dele que voltava. A respiração quente no meu pescoço. Os dedos firmes segurando minha cintura como se soubessem exatamente onde encaixar minha alma na dele. O problema não era só o beijo. Era tudo o que o beijo tinha despertado. E agora eu tinha que enfrentar o dia como se nada tivesse acontecido. Desci para a cozinha ainda antes das seis. O cheiro de café fresco tomava o ambiente, e minha mãe já estava de avental, cortando frutas enquanto cantarolava baixinho — como sempre fazia quando percebia que havia algo pesado no ar, mas ainda não sabia o que era. — Você dormiu? — ela perguntou sem me olhar, porque não precisava. — Mais ou menos — respondi, pegando as xícaras de porcelana para arrumar a mesa do café dos Alvarenga. Ela riu de leve, como quem já imagina a causa. — Faculdade, né? A cabeça não para. Quase deixei uma xícara cair. Faculdade. Se ela soubesse. A verdade é que meu dia sempre começava assim: ajudando minha mãe na cozinha até as sete. Às sete e meia, eu precisava sair correndo para o estágio, que ficava do outro lado da cidade. À tarde, eu voltava para casa e a ajudava com a arrumação dos quartos e da despensa. Só depois, às 18:40, eu pegava duas conduções até a faculdade, onde ficava até quase onze da noite. E ainda assim, nada disso parecia tão cansativo quanto lidar com Noah Alvarenga após a noite anterior. Eu estava terminando de arrumar a bandeja de sucos quando ouvi passos no corredor. Minha espinha inteira congelou. Olhei para minha mãe como se ela pudesse me esconder de tudo — do passado, do presente e de mim mesma. Noah entrou na cozinha como se tivesse sido feito para ocupar aquele espaço. Camisa social branca, arremangada até o antebraço. Cabelo úmido, arrumado com descuido. E um olhar. Um olhar que tocou minha pele antes que qualquer outra parte dele pudesse. — Bom dia — ele disse, com aquela voz baixa que parecia ter descoberto um caminho exclusivo até o meu estômago. Engoli seco. — Bom dia, senhor Noah — respondi, tentando soar profissional, neutra, distante… um fracasso completo. Ele arqueou uma sobrancelha. — Senhor? Agora é assim? Minha mãe virou para ele com um sorriso gentil. — Bom dia, Noah. Café na mesa em três minutos. Quando ela passou por mim para pegar o pão, cochichou: — Você está vermelha. Está tudo bem? — Calor — menti. Naah ficou ali, perto demais do balcão. Olhando demais para mim. Respirando demais no mesmo ar. E minha mãe ainda no ambiente. Era tortura em sua forma mais elegante. — Você vai para o estágio agora? — ele perguntou, casual, mas com um toque de… território? Ou eu estava ficando louca? — Vou — respondi, entregando a bandeja pronta. — Saio em cinco minutos. Ele se inclinou, apoiando as mãos no balcão. — Quer uma carona? Minha mãe nem disfarçou o espanto. — Noah, não precisa! Ella sempre foi sozinha… — Eu sei — ele disse sem tirar os olhos de mim — mas posso querer acompanhar agora, não posso? Eu quase derrubei outra xícara. — Não precisa — engoli, firme. — Eu vou de ônibus mesmo. Obrigada. Ele me encarou como se estivesse lembrando do meu corpo colado ao dele na noite anterior. Como se soubesse exatamente qual parte minha ainda tremia só de olhar para ele. — Como quiser — murmurou, com um meio sorriso que só piorava tudo. Saí da cozinha antes que minha mãe notasse que minhas pernas pareciam feitas de vento. *** No estágio, eu tentei me ocupar. Respondi e-mails, organizei documentos, arquivei relatórios. Fiz tudo com precisão quase militar — porque era isso ou pensar no Noah. E eu não podia pensar nele. Não quando a lembrança da boca dele ainda queimava no canto da minha. Mas sempre que meu celular vibrava no bolso, meu coração fazia aquele movimento estúpido que denunciava exatamente o que eu estava tentando evitar. Eu. Estava. Perdida. À tarde, enquanto organizava as compras da despensa com minha mãe, ouvi risadas vindo do hall. Risadas femininas. E uma delas eu reconheceria de longe. Helena Ferraz. A herdeira perfeita. A candidata perfeita. A noiva perfeita — aos olhos de Henrique Alvarenga. — Noah, você deveria almoçar comigo amanhã — Helena dizia, com a voz doce demais para ser real. — Tenho novidades sobre a fusão das empresas. Meu estômago embrulhou. Minha mãe me olhou, e eu desviei o olhar rápido demais. Quando Noah respondeu — algo como “podemos ver isso depois, Helena” — o tom dele não era o mesmo que usava comigo. Com ela era impessoal. Elegante. Diplomático. Mas doía igual. *** À noite, na faculdade, consegui me concentrar um pouco mais. A rotina me ajudava, os exercícios de contabilidade me prendiam o foco, e por alguns momentos consegui respirar sem sentir o peso da lembrança do beijo. Mas tudo desmoronou quando cheguei em casa. A luz da cozinha estava acesa. E Noah estava lá. Sozinho. Apoiado no balcão. Manga da camisa dobrada. Gravata jogada ao lado. Olhei ao redor. — Cadê a minha mãe? — Já subiu para o quarto. Meus pais também. — Ele deu dois passos em minha direção, como se testasse a gravidade. — Estava te esperando. Meu coração despencou. — Noah… a gente não… — respirei fundo. — Aquilo não deveria ter acontecido. Ele riu — um riso baixo, lindo e devastador. — Você vai fingir que não sentiu? Que não quis? Meu corpo vibrou inteiro. — Eu não posso — sussurrei. Ele chegou perto suficiente para que eu sentisse o perfume dele — amadeirado, quente, perigoso. — Então por que está tremendo? Fechei os olhos. — Porque você mexe comigo… e isso é um problema. Ele tocou meu queixo. Só isso. Um toque. Mas meu juízo escorreu pelos meus dedos. — Ella… — ele disse meu nome como se fosse uma promessa. Eu me afastei um passo, com o pouco de lucidez que ainda tinha. — Noah… você tem uma vida completamente diferente da minha. E seu pai… Ele se aproximou de novo. — Meu pai não manda no que eu sinto. Eu respirei fundo. — Mas manda no que você faz. Silêncio. Ele não contradisse. Isso doeu mais do que eu esperava. — Boa noite, Noah — murmurei, baixo, quase sem voz. — Ella… — ele tentou. Mas eu já estava indo para as escadas. Não olhei para trás. Se olhasse, não teria força para subir.






