O som dos meus sapatos ecoava na entrada impecável do prédio sede da Auros. O saguão central ainda estava sendo limpo, como todos os dias pela manhã. Mas, naquela Sexta-feira, meus olhos se detiveram por um instante.
Lá estava ela. A mulher curvilínea, de uniforme simples, se curvando para lustrar o mármore com vigor. Os cabelos escuros estavam presos num coque frouxo, e o rosto parcialmente coberto pelos óculos de grau — mas nem elas escondiam os olhos surpreendentemente azuis, frios como vidro molhado. Tinha um brilho natural que eu não sabia explicar, e isso me atraia. Mesmo com olheiras evidentes, carregava a esperança no olhar de quem está sempre esperando o melhor dos outros e da vida, apesar das dificuldades. Incomum. Natural. Diferente de tudo que eu via naquele prédio. Desacelerei o passo, sem perceber. Observei o jeito como ela mordia o lábio inferior ao se concentrar. O uniforme marcava sutilmente o quadril cheio, a cintura curvada... um corpo que não seguia o padrão esculpido das mulheres que normalmente o cercavam, e isso não o tornava menos atraente, pelo contrário. Era genuíno. Ela limpou o suor do rosto e quando me olhou desviei os olhos para meu celular. Um gesto automático. Como se eu não estivesse parado ali. Como se eu não estivesse sentindo absolutamente nada. Você tá mesmo olhando pra uma funcionária, Monteverde? Endireitei a postura, pigarreei discretamente e entrei no elevador. Tentei afastar a imagem da cabeça. Eu não era o tipo de homem que misturava negócios com fantasias — pelo menos, nunca tinha sido. Ao entrar em minha sala, vi que a cadeira de visitas já estava ocupada. — O que está fazendo aqui? — disse, sem emoção, tirando o paletó e pendurando-o no cabide da direita. Sempre usava aquele cabide da Direita. — Visitando a pessoa com a qual eu vou me casar. É proibido? — respondeu Isabela Villar, a mulher que todos chamavam de minha noiva. Todos, menos eu. Isabela era minha amiga de infância. Loira, olhos de um verde tão claro quanto uma folha ao sol. Vestia-se com elegância, voz aveludada, presença treinada. A filha de um dos acionistas do Grupo Auros. Uma união estratégica, “perfeita”, segundo nossos pais. Sempre usando salto alto, estava com um vestido social rosé que marcava seu corpo esguio. Era uma beleza notável, mas sua personalidade a tornava uma pessoa difícil de lidar. Ao andar até minha mesa percebi que a cadeira de visitas desocupada estava a centímetros fora do alinhamento perfeito que tinha com a mesa, ajeitei com um movimento inconsciente e fui para minha mesa, onde alinhei uns documentos que estavam tortos e sentei. Destravei a gaveta inferior e conferi se tudo estava correto: canetas em paralelo, clipes enfileirados e pastas por cor. Tudo em seu devido lugar. Apenas depois desta checagem foquei em meus relatórios. Tudo em seu perfeito lugar, como deve ser. Um silêncio se prolongou, até ser quebrado por Ana, minha secretária pessoal que entrou, comprimentou e deixou uma xícara de café na mesa para mim. Após a saída da secretaria Isabela indagou: — Acha mesmo que vai conseguir adiar isso por muito mais tempo, Otávio? — Não tô tentando adiar — respondi, seco. — Só não vejo motivo pra correr. — Nossos pais acham que é o momento ideal. E, sinceramente... você precisa de uma esposa. Alguém à sua altura. — À minha altura... ou à altura da diretoria? — rebati, já cansado desse assunto. Ela franziu o cenho, cruzando as pernas. — Você sabe que temos história. Eu te conheço desde os cinco anos. Não precisa parecer tão enojado com a ideia. Não estava enojado com ela. Isabela era bela, leal, educada. Mas não me despertava... nada. — Só não quero me casar com pressa. E nem por obrigação — Então não diga que vai. Diga que não quer. — disse ela com a voz levemente alterada. A encarei por longos segundos. Ela sustentou o olhar com firmeza. Eu sabia que ela me amava, mesmo que tentasse esconder. Isso só piorava a culpa que eu sentia. — Depois a gente fala sobre isso. — tentei encerrar. Isabela sorriu com tristeza. Se levantou. — Como quiser. Mas saiba que, se eu te perder, alguém vai ter que me convencer que você não estava apenas esperando uma desculpa pra escapar de mim. Sem que eu respondesse, ela saiu da sala. Fiquei sozinho, girando a caneta entre os dedos, ainda com o rosto da mulher do saguão na cabeça. O contraste entre ela e Isabela era gritante. A simplicidade. A falta de pretensão. A naturalidade com que existia naquele chão frio. Tinha algo nela que incomodava. Uma presença que atravessava minhas defesas. Sem pensar, peguei o telefone e disquei direto para o setor de supervisão de limpeza. — Luan? — Sim, senhor Monteverde? — A funcionária nova... a da limpeza. Qual é o nome dela? Houve um silêncio breve do outro lado. — Lúcia Andrade, senhor. Deixei o nome pairar nos lábios. — Ela está em qual andar agora? — Creio que ainda no oitavo. Deve estar terminando o banheiro ou seguindo pro térreo. — Certo. Não comente essa ligação com ninguém, entendeu? — Claro, senhor. Sigilo absoluto. Desliguei. Fiquei mais um instante olhando para o telefone, depois para a caneca de café em cima da mesa. Frio. Levantei-me, peguei a caneca e fui até a mesa de centro que ficava no meio da sala entre duas cadeiras estofadas de visita, onde Isabela estava sentada a minutos atrás, em frente a minha mesa. Respirei fundo, e num gesto controlado, derramei metade do café no chão de mármore branco. Observei a poça se espalhar, escura e densa. — Agora sim — murmurei. Voltei à mesa, sentei-me , e apertei o botão de chamada de serviço três vezes seguidas. Nada. Me levantei e, com passadas firmes, fui atrás de minha donzela. O jogo, mesmo que eu negasse, tinha começado. E como todo jogo, eu não aceitava perder.