O morro acordava cedo.
E acordava rápido. Era tiro, era samba, era foguetão. A vida ali não dava tempo pra bocejo. Os passarinhos cantavam junto com os estouros secos que riscaram o céu antes do sol nascer. A carga tinha chegado. Todo mundo sabia. E o dia prometia movimento. Mas naquela manhã, o foco não tava na carga. Estava no Raízes do Morro. A ONG de Isis — orgulho dela, filha mais ousada do morro — respirava um ar diferente. Tinha uma energia no ar. E o motivo tinha nome: Theo. O novo professor de boxe. Na noite anterior, Isis já tinha trocado palavras afiadas com ele. O cara era bonito, sim. Cheio de marra. Mas não era qualquer playboy disfarçado — tinha pegada de quem sabe onde pisa. Só que ela também sabia onde pisava. E sabia farejar coisa errada de longe. Mesmo com o desconfiômetro ligado, ela tava ali, no pátio, de óculos escuro, short de lycra e regata preta, observando tudo com aquele olhar dela: firme, calculista. Enquanto os moleques jogavam bola de um lado, do outro, os voluntários montavam o ringue. — Tia Isis, o professor chegou cedo hoje — avisou Léo, um dos adolescentes da ONG, suando com a luva na mão. Ela chupava uma bala de hortelã e nem levantou a cabeça. — Que bom. Quem chega cedo mostra que quer alguma coisa. Mas quando Theo passou por ela e deu aquele sorriso discreto, Isis sentiu o estômago dar uma volta. Ele usava uma regata branca, a tatuagem do braço mais visível agora, e o cabelo úmido, como se tivesse acabado de tomar banho. Tava bonito. O tipo que fazia estrago. E ela sabia disso. — Bom dia, Tia Isis — ele disse, com aquele tom de voz rouco que parecia sempre um convite. Ela tirou os óculos escuros devagar. — Vai querer estrear o ringue ou só desfilar por ele? — Só entro se for pra ganhar — ele respondeu, encarando. — Atrevido... — ela murmurou, baixo, mas o suficiente pra ele ouvir. Ele sorriu. A tensão entre os dois já era nítida. Até os adolescentes notaram. — Ei, bota ele contra o Binho! — gritou um moleque lá do fundo. — Quero ver se é bom mesmo ou só cara de modelo! Risadas estouraram pelo pátio. — Vambora então — disse Theo, já puxando a regata pela cabeça e revelando o abdômen trincado. Houve um breve silêncio. Até o tamborim parou de bater. Isis mordeu o canto da boca, mas disfarçou com deboche: — Só não vai sair daqui chorando, viu, professor. — Chorar? Eu nem comecei a suar. A roda se abriu. O ringue tava improvisado, mas era sagrado. Isis mesma tinha ajudado a montar aquilo, com pedaços de lona, madeira e amor próprio. Ali, ninguém era bandido nem santo. Ali, todo mundo era só gente tentando lutar de outro jeito. E Theo tava prestes a provar quem era. --- Binho era conhecido. Forte, rápido, marrento. Um dos protegidos da ONG, resgatado das ruas antes de se perder de vez no tráfico. Tava treinando há dois anos e se achava o dono do ringue. — E aí, playboy, pronto pra apanhar? — ele disse, subindo com as luvas já vestidas. Theo calçou as luvas com calma. Nem respondeu. Só fez sinal com a cabeça. O sinal foi dado. No começo, Binho veio com tudo. Direta, jab, cruzado. Tava confiante, achando que o professor era só pose. Mas bastaram três esquivas rápidas de Theo, um giro no tronco e um contragolpe seco no abdômen, pra plateia gritar: — Ihhhhhhhhh! Binho cambaleou. Theo não sorriu. Não provocou. Só esperou o próximo movimento. Isis assistia tudo com os braços cruzados, tentando não se deixar envolver. Mas por dentro, tava surpresa. O cara lutava com inteligência. Técnica limpa, respiração certa, foco. Tinha preparo. E charme. Um charme que irritava. Depois de dois rounds, Binho já tava sem fôlego. — Acabou? — Theo perguntou, tirando as luvas. — Ou ainda quer mais? — Tá de sacanagem... — o moleque respondeu, rindo, enquanto descia do ringue. Os meninos aplaudiram. Alguns até gritaram: — Professor é brabo! — Quero aula com ele! — Ô Tia Isis, posso treinar amanhã também? Isis respirou fundo. O que ela menos queria era que esse homem começasse a virar referência ali. E mesmo assim… não conseguia tirar os olhos dele. Ele desceu do ringue e parou diante dela. — Aprovado? — ele perguntou, suado, o peito subindo e descendo devagar. — Ainda tô decidindo — ela respondeu, olhando pra ele como quem analisa uma arma nova. — Quer testar você mesma? Ela riu. Um riso curto. Provocador. — Pode deixar que eu vou te testar, professor. Só não sei se vai ser no ringue. Os dois ficaram em silêncio por um segundo que pareceu eterno. Theo segurou o olhar dela até o fim. Depois virou as costas e foi até a torneira improvisada, molhar o rosto. Isis ainda estava parada no mesmo lugar, com os olhos fixos nele. E pela primeira vez em muito tempo… ela não conseguiu decifrar um homem. --- Mais tarde, sentada em sua laje, ela anotava coisas no caderno de planos da ONG. Projetos, despesas, listas de alimentos. Mas a mente fugia. Fugia pro ringue. Pro suor dele. Pro olhar firme. Pro jeito como a desafiava sem medo. Aquilo era perigoso. E por isso mesmo… viciante. Mas ela sabia que todo homem bonito demais escondia alguma coisa. E Theo escondia muito mais do que um abdômen trincado. Escondia uma farda. E um plano. ---